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2 DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

2.3 O dever do Estado diante dos princípios constitucionais que regem o

2.3.2 Princípios doutrinários

Os princípios da universalidade e da igualdade do direito fundamental à saúde, previstos expressamente no artigo 196 da CF/88, conjuntamente, pautam o reconhecimento desse direito a todas as pessoas, sem distinção, em todos os níveis de complexidade do sistema. Revela-se essencial a observância do dever fundamental de não discriminação no acesso aos bens e aos serviços de saúde, conforme definido pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas no Comentário Geral nº 14.

Essa acessibilidade inclui quatro dimensões: a) não discriminação, ou seja, os serviços e bens de saúde devem ser acessíveis a todas as pessoas sem qualquer distinção; b) acessibilidade física, que assegura o alcance de toda a população a tais bens e serviços, inclusive acesso físico aos portadores de alguma necessidade especial; c) acessibilidade econômica, não se exigindo a gratuidade, mas eventual pagamento deve se dar mediante a equidade, de modo que todos possam custear, até mesmo os grupos sociais em desvantagem econômica; d) acessibilidade de informação, garantindo o direito de pesquisar, de fornecer e de receber informações a respeito de questões de saúde, não prejudicando a confidencialidade dos dados pessoais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009).

Ao lado da universalidade, portanto, permanece sempre o princípio da igualdade de assistência à saúde, pois somente há lógica no acesso a todos quando não há discriminação, isto é, quando há o reconhecimento de que todos são iguais. Assim, a negação da universalidade reflete na negação da igualdade.

Não são raras as denúncias de agentes políticos que utilizam o cargo para ―furar‖ filas de atendimento no sistema público de saúde de sua respectiva região. Pacientes procuram a ajuda desses políticos para terem prioridade no atendimento. Cite-se, a título de exemplo, o caso relatado por Tomazela (2012), de repercussão nacional, que ocorreu na cidade de Sorocaba-SP, em que os pacientes procuravam vereadores para antecipar o atendimento no sistema público de saúde em procedimentos como cirurgias oftalmológicas e ortopédicas.

Por respeito a esse princípio, em 2011, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) posicionou-se contra a Lei Complementar nº 1.131, de 27 de

dezembro de 2010, que autoriza os hospitais públicos administrados por Organizações Sociais de Saúde (OSS) a vender até 25% dos seus serviços a usuários de planos privados de saúde e particulares. A referida lei fora alcunhada pelos movimentos sociais de saúde de Lei da Dupla Porta (LEMES, 2011).

Vale ressaltar que a segurança no acesso universal e igualitário busca superar os modelos institucionais anteriores à Lei Maior vigente, quando era restrito apenas aos trabalhadores formais, na condição de segurados da Previdência Social, e respectivos dependentes. Sob o fulcro da Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado para ser utilizado de maneira universal e independente de contribuição à Previdência.

Essa conquista tornou-se uma das principais bandeiras do Movimento de Reforma Sanitária, prevalecendo como alicerce da estrutura de funcionamento e prestação de serviços do SUS, o qual se propõe a ser uma estrutura descentralizada, com direção única em cada esfera do governo, oferecendo atendimento integral e contando com a participação da comunidade (art. 198, CF). Esse progresso reflete o objetivo de inclusão social do País, elegendo a ideia de cidadania como elemento norteador da política de saúde.

Apesar de muitas discussões jurisprudenciais, revela-se sedimentado o entendimento de que o direito fundamental à saúde detém titularidade universal, isto é, simultaneamente individual e coletiva (bem como difusa). O problema surge quanto aos impactos sobre o sistema público de saúde decorrentes de concessões individualizadas de prestações estatais. Por outro lado, negar a tutela individual geraria uma dupla discriminação, conforme Sarlet (2011, p. 31):

[...] a primeira, na esfera da exclusão de um determinado número de pessoas do acesso às prestações já disponibilizadas, pois, em geral, aciona o Poder Judiciário quem não lograr obter o atendimento na rede pública da saúde. A segunda, em decorrência da negativa de acesso à justiça, sob o argumento de que se estará prejudicando quem não acionou o Poder Judiciário.

Nesse contexto, impera relembrar que os direitos fundamentais incorporam e expressam determinados valores objetivos fundamentais da comunidade, logo, devem ter sua eficácia valorada não só sob um ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, já que se cuida de valores e fins que essa deve respeitar e concretizar. Por conta disso Sarlet (2011, p. 171-172) defende a ideia de que direitos fundamentais são sempre direitos transindividuais, haja vista a responsabilidade comunitária dos indivíduos. Com efeito, o doutrinador explana:

[...] a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui função axiologicamente vinculada, demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos individuais está condicionado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e da qual não pode ser dissociado, podendo falar-se de uma responsabilidade comunitária dos indivíduos. Por tais razões, parece correto afirmar que todos os direitos fundamentais (na sua perspectiva objetiva) são sempre, também direitos transindividuais. É neste sentido que se justifica a afirmação de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não só legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no interesse comunitário prevalente, mas também que, de certa forma, contribui para a limitação do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficar preservado o núcleo essencial destes, de tal sorte que não se poderá sustentar uma funcionalização da dimensão subjetiva (individual ou transindividual) em prol da dimensão objetiva (comunitária e, neste sentido, sempre coletiva), no âmbito de uma supremacia apriorística do interesse público sobre o particular.

Assim, revela-se de extrema importância a atividade do intérprete e aplicador do Direito, no momento de julgamento das lides. A técnica de sopesamento dos valores e dos princípios constitucionais colidentes deve ser empregada de acordo com cada caso concreto.

Ademais, a universalidade e a igualdade do direito à saúde também podem ser observadas, embora de maneira implícita, no artigo 5º, caput, da Constituição, que estabelece serem titulares dos direitos e garantias fundamentais os brasileiros e os estrangeiros residentes no País. Com efeito, tem prevalecido, em âmbito doutrinário e jurisprudencial, a concepção de que os titulares dos direitos fundamentais, inclusive o da saúde, são todas as pessoas, estrangeiras ou não, residentes ou não no Brasil.

Cabe ressaltar que os estrangeiros que se encontrem provisoriamente no País são titulares desse direito apenas no que concerne aos casos de urgência, tendo como fundamento dessa interpretação a incidência conjunta das normas internacionais de proteção à saúde das quais o Brasil revela-se signatário, como a Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas (DUDH/ONU, art. 25.1) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc, art. 12.1).

Além disso, projetos como o Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras (SIS- Fronteiras, implementado pela Portaria GM nº 1.120, de 6 de julho de 2005 do Ministério da Saúde), que prevê o atendimento, por meio do SUS, à população brasileira e estrangeira que habita na longa zona de fronteira terrestre do País, respaldam a interpretação extensiva no que diz respeito ao caráter universal do direito à saúde.

Nessa toada, cabe pontuar que o princípio da igualdade decorrente da Constituição vigente não equivale ao princípio da equidade, que fundamenta o direito sanitário, mas a ele se vincula em busca de uma seleção e distribuição de políticas públicas justa. Do ponto de vista etimológico, aproximam-se, e, por isso, são frequentemente utilizadas como sinônimos.

Consoante Paim e Silva (2010), porém, a equidade implica a diminuição das diferenças evitáveis e injustas ao mínimo possível. No cenário da oferta de serviços de saúde, impera em função das necessidades e da capacidade de pagamento.

Em que pese ser um conceito aberto, a equidade em saúde, conforme Margaret Whitehead20 (1992), tende a se referir a uma justiça distributiva, adotando como referência doutrinária o pensamento de John Rawls, que pode ser interpretada como o resultado de políticas que tratam indivíduos com necessidades diferentes de maneira diferente. Assim, depreende-se que a equidade equivale ao aspecto material do princípio da igualdade, assunto que ainda será discutido de maneira pormenorizada no último capítulo.

De outro giro, Granja et al. (2010) identificam os seguintes valores balizadores para a construção da equidade na saúde: a) a justiça social, que não se restringe à ideia de alocação de recursos por meio de exclusão seletiva de procedimentos, mas sim pela priorização dos mais vulneráveis e daqueles que mais necessitam de assistência à saúde; b) a igualdade, que representa a possibilidade de todos desenvolverem a capacidade de serem saudáveis e de viverem a vida com dignidade, e de fortalecer a população para gozar de autonomia e participar nas decisões; c) o acesso universal, que se relaciona à consolidação do SUS e da saúde como direito social de cidadania, pois significa distribuição igualitária e universal dos recursos disponíveis em saúde, sem discriminação; e d) e a priorização dos que mais precisam e a redução das iniquidades, em que a equidade assume uma dimensão ética e política, ao propor a diminuição de diferenças evitáveis e injustas por meio de uma assistência à saúde compatível com a dignidade humana.

Dessa maneira, assim como a igualdade, a equidade também possui relação direta com a universalidade para poder ter sua completa eficácia, embora nenhum dos três princípios se confundam. A busca pela promoção de um sistema de saúde de qualidade a todas as pessoas fomenta o afastamento das iniquidades, na medida em que o valor da vida imbricado ao da saúde não tem diferença entre os indivíduos.

Outro ponto a ser destacado diz respeito à integralidade da assistência que o Estado deve fornecer à população. Como resolver, por exemplo, a questão dos medicamentos não previstos na lista do SUS, ou a necessidade de um tratamento vital a uma pessoa que exija custos exorbitantes, fora do planejamento estatal? O SUS tem o dever de fornecer todo e qualquer tipo de tratamento ou medicamento que o indivíduo necessitar?

20Em 1990, Whitehead elaborou documento de consultoria para a Organização Mundial da Saúde (OMS),

posteriormente publicado no International Journal of Health Services, no qual propunha distinguir diferenças ou disparidades em saúde de iniquidades em saúde.

Sob o fulcro do artigo 198, II, c/c 7º, II, da Lei nº 8.080/90, revela-se diretriz constitucional do SUS o atendimento integral, entendido como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema.

Cabe mencionar também o Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 201121, que criou uma Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases), abrangendo todas as ações e serviços que o SUS oferece aos seus usuários. Almeja promover o atendimento da integralidade da assistência à saúde, que se inicia e se completa na Rede de Atenção à Saúde. Os entes federativos pactuam suas responsabilidades em relação ao rol de ações e serviços constantes na Renases, inclusive sobre o financiamento.

A respeito da interpretação da assistência integral, Carvalho e Lenir Santos (1995) explicam que deve partir de uma combinação, de maneira harmônica e igualitária, entre as ações e os serviços de saúde preventivos com os assistenciais ou curativos. Registre-se que, no antigo sistema de saúde (Lei nº 6.229, de 17 de julho de 1975), havia uma dicotomia entre as ações e os serviços de cunho preventivo e os curativos. De um lado, o Ministério da Saúde (MS) detinha a atribuição de desenvolver atividades preventivas; de outro, o Ministério da Previdência e Assistência Social com as ações e os serviços assistenciais, ambos executados pelo antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).

Esse princípio, contudo, não significa totalidade. Lenir Santos (2007) estabelece alguns limites de interpretação respondendo às perguntas ―para quem? Com que recurso? Qual assistência? Quais os critérios de planejamento e elaboração de planos de saúde‖?

A advogada especialista em direito sanitário e participante da criação do SUS explana que todos têm o direito de ingressar no SUS, porém, ao optarem pelo sistema público, não poderão ter vínculo com a rede particular22. O paciente não poderá, mediante prescrição privada, ir pleitear serviços públicos, evitando-se, assim, que este se torne complementar àquele, em vez de o contrário, já que:

Isso rompe com o conceito da integralidade da assistência, uma vez que os profissionais de saúde do SUS não poderão ficar à mercê da terapêutica exigida pelos profissionais de saúde do setor privado, complementando-o. Ou se adentra ao SUS e submete-se aos seus parâmetros técnicos, científicos e administrativos; ou se opta pelos serviços privados.

21Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de

Saúde (SUS), o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências.

22No caso de determinadas ações preventivas, como a vacinação, se esgotar em apenas uma ação, isso não

Em que pese essa limitação defendida pela autora aparentar um tanto drástica, haja vista ser comum pessoas detentoras de planos de saúde se utilizarem também de consultas ou tratamentos disponibilizados pelo SUS, permite uma reflexão acerca dessa conduta social hodierna. Até que ponto essa atitude rotineira dos brasileiros, em regra de classe média, não prejudica a eficiência da organização e a estrutura do sistema público? O SUS emerge como uma política pública que busca diminuir as desigualdades sociais no âmbito do acesso a cuidados com a saúde, mas parece ser utópico23 compreendê-lo como um conjunto de ações e serviços estatais infinitos para os milhões de indivíduos residentes no Brasil. Os critérios de delimitação dos princípios que regem essa política fazem-se fundamentais para que ela possa ser eficaz.

O segundo contorno da integralidade se refere à limitação das fontes de recursos. A Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, que alterou o artigo 198 da CF/88, impôs percentuais mínimos de aplicação das receitas dos entes federados em políticas públicas da saúde. Já o artigo 36 da Lei nº 8.080/90 prevê que o planejamento e a orçamentação da saúde deverão compatibilizar as necessidades da política de saúde com as disponibilidades de recursos em planos de saúde dos entes federados, o que demonstra um reconhecimento da finitude dos recursos ainda que haja infinidades das indigências.

Outra delimitação pauta-se pela competência dos entes federados de impor regulamentos técnicos e científicos, protocolos de conduta, limites para a incorporação de tecnologias e protocolos farmacológicos. O conceito de integralidade da assistência não admite, portanto, toda e qualquer terapêutica existente ou demandada por um paciente ou profissional de saúde. O controle do Poder Público revela-se importante para balizar o valor de mercado dos medicamentos, bem como certificar-se da qualidade das inovações. Caso contrário, ―se não houver prudência na adoção de tecnologias – crescentes e onerosas, voltadas muito mais para a garantia do capital do que para o bem-estar do cidadão – esta, por si só, porá fim aos recursos da saúde‖ (SANTOS, 2007, p. 925).

Por fim, Lenir Santos (2007), sob o fulcro dos artigos 7, VII, e 35, II, da Lei nº 8.080/90),24 determina a utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades,

23Para o renomado doutrinador Ricardo Lobo Torres (2004, p. 287), ―o acesso universal e igualitário às ações e

serviços de saúde, assegurado no art. 196 da Constituição, transformado em gratuito pela legislação infraconstitucional, é utópico e gera expectativas inalcançáveis para os cidadãos‖.

24―Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram

o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: [...] VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; [...]‖

alocação de recursos e orientação programática como quarta e última delimitação da interpretação do princípio da integralidade. Relembre-se que o dever do Estado em garantir o direito fundamental da saúde é realizado por meio de políticas sociais e econômicas previamente estabelecidas. Por conta disso, são realizados estudos para cada região do País, tendo em vista as enfermidades e as carências populacionais variarem por diversos fatores, como o climático, o financeiro, a densidade demográfica, e o nível de saneamento básico. A partir dessa análise, são planejadas as políticas públicas e suas respectivas receitas orçamentárias e valores de transferência. Assim, revela-se dificultoso garantir esse direito quando reclamado por meio de demandas judiciais com exigências sem previsão nos planos estatais de saúde.

A saúde não constitui área que pode ser demandada de maneira irrestrita pela população, com a garantia do Judiciário. Com efeito, Limberger e Saldanha (2010, p. 111) inferem:

Nenhum país do mundo, por mais rico que seja, tem condições de suportar qualquer tratamento médico ou fornecimento de medicamento, considerando o avanço da medicina nos dias atuais e a longevidade das pessoas. A totalidade das possibilidades é impagável, seu custo extrapola qualquer parâmetro do razoável, mesmo nos países mais ricos.

Embora haja uma evidente preocupação do poder constituinte, inclusive o derivado, em dar plena efetividade às ações e programas nessa área, é preciso a colaboração em conjunto do trabalho do legislador, do planejamento e da execução de políticas públicas, bem como da atuação do intérprete judicial diante das lides (individuais ou coletivas). O trabalho em equipe das três esferas de governo é essencial para se atingir o estado ideal de coisas proferido pelo direito fundamental à saúde sob a perspectiva universal, igualitária e integral.

3 O CONTEÚDO DO DIREITO À SAÚDE: ELEMENTOS QUE PREENCHEM E