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Não há acordo entre os lingüistas quanto a uma teoria, se não unificada, pelo menos razoavelmente articulada, para dar conta dos fenômenos ditos de gramaticalização. Nem poderia ser diferente, dada a complexidade da matéria e as naturais divergências sobre o que se pode entender por língua e por gramática (CASTILHO, 1997, p. 49).

Algumas conclusões podem ser tiradas das palavras de Castilho acima. Por exemplo, há necessidade de se buscar generalizações, ou princípios, que abarquem os diversos processos de gramaticalização observados. Várias propostas têm esse intuito, mas não é fácil harmonizá-las entre si. Uma “teoria articulada”, como deseja Castilho, não parece estar no horizonte, pois, na base da variedade dos princípios propostos para a gramaticalização, estão

questões fundamentais ainda não unanimimente resolvidas quanto ao entendimento de língua e gramática.

Apresentam-se duas das mais conhecidas propostas de princípios de gramaticalização: a de Lehmann (1982 apud CASTILHO, 1997) e a de Hopper (1991). Em seguida, apresenta-se a argumentação de Castilho (1997), que, por um lado, tentou “articular” diferentes pontos de vista e que, por outro, apresentou uma nova proposta, aumentando, assim, o leque de opções teóricas, e, conseqüentemente, a polêmica em torno da gramaticalização, no que se refere aos seus princípios.

Os seguintes princípios foram identificados por Lehmann (1982 apud CASTILHO, 1997):

1) Paradigmatização: diz respeito à tendência de integração das formas gramaticalizadas em novos paradigmas progressivamente menores e homogêneos.

2) Obrigatoriedade: princípio que se refere à existência, dentro de um paradigma, de regras gramaticais que determinam a escolha dos seus membros.

3) Condensação: princípio que especifica a diminuição da complexidade das formas gramaticalizadas e dos constituintes com os quais elas se combinam.

4) Coalescência: que ressalta o desaparecimento conjunto de formas adjacentes.

5) Fixação: esse princípio se estabelece a partir da perda da variabilidade sintagmática. O signo gramaticalizado tende a ocupar uma posição fixa inicialmente na sintaxe e depois na morfologia, tornando-se um preenchedor de espaços gramaticais (slots).

Hopper (1991) considerou a proposta de Lehmann deficiente, pois, segundo ele, esses princípios aplicam-se somente aos estágios bem avançados de gramaticalização. Hopper, então, apresentou a sua proposta de princípios de gramaticalização:

1) Estratificação – Dentro de um domínio funcional amplo, novas camadas emergem continuamente. Quando isso acontece, as camadas mais antigas não são necessariamente descartadas, mas podem continuar a coexistir e a interagir com as camadas mais novas. Esse princípio é a constatação de que uma das conseqüências da gramaticalização é a

convivência de soluções gramaticais distintas, num mesmo corte sincrônico. A gramaticalização origina a variação, que é considerada o gatilho da mudança diacrônica.

2) Divergência – Esse princípio remete ao fato de a instauração do processo de gramaticalização licenciar a convivência da forma em vias de gramaticalização com a forma original que impulsionou o processo de mudança categorial. A divergência evidencia que as formas possuem uma mesma origem etimológica, apesar de poderem ser funcionalmente diferentes.

3) Especialização – dentro de um domínio funcional, é possível haver em determinado estágio uma variedade de formas com nuances semânticas diferentes; quando a gramaticalização ocorre, estreita-se essa variedade de escolhas formais, ou seja, dá-se a especialização, e um número menor de formas selecionadas assume significados semânticos mais gerais. Como observa Rumeu (2004), o princípio da especialização poderia também corresponder ao princípio da obrigatoriedade, de Lehmann. Poggio (2004) dá o seguinte exemplo: quando a palavra amor passa a compor a locução prepositiva por amor de, há um estreitamento no significado desse nome ao figurar em um novo contexto.

4) Persistência: quando uma forma se gramaticaliza, passando de uma função lexical para uma função gramatical, tanto quanto isto seja gramaticalmente viável, alguns traços do seu significado lexical original tendem a aderir à nova forma gramatical. Em virtude da gramaticalização, pode ocorrer a coexistência entre valores novos e valores antigos em um mesmo item lingüístico e a permanência de propriedades lexicais nas formas gramaticalizadas. O princípio da persistência refere-se, portanto, à conservação, por parte da forma que sofreu gramaticalização, de alguns traços semânticos da forma fonte. O que está implícito nessa caracterização, conforme Naro e Braga (2000), é que, em numerosos casos, uma mesma forma pode abrigar valores/usos/instâncias com variados graus de gramaticalização.

5) Descategorização: formas em processo de gramaticalização tendem a perder ou a neutralizar as marcas morfológicas e as propriedades sintáticas das categorias plenas Nome e Verbo, e a assumir atributos característicos das categorias secundárias, tais como o Adjetivo, o Particípio, a Preposição etc.

Os princípios três e quatro de Hopper (1991) captam alterações semânticas observadas no processo de gramaticalização. Nota-se ainda que os princípios de Hopper não se aplicam a todos os casos ou a todas as etapas da gramaticalização. Por exemplo, não se pode afirmar que a estratiticação vale para todos os casos. Às vezes, algumas soluções gramaticais são descartadas no decorrer do processo de gramaticalização. Pode-se dizer o mesmo da persistência. Nem sempre “vestígios” do significado original permanecem nas formas gramaticalizadas. Os princípios de Lehmann (1982 apud CASTILHO, 1997), contudo, parecem ter uma aplicação mais ampla.

Castilho (1997), por sua vez, aponta princípios que, para ele, de fato, captam generalizações:

A ANALOGIA - é a extensão de regras a itens não atingidos, uniformizando as formas da língua. Pereira (2004) explica que o mecanismo da analogia é o responsável pela manutenção da regularidade quando há discordância entre a tradição e o sistema. Opera, assim, no eixo paradigmático. Segundo Castilho (1997), analogia é uma sorte de aproximação psicológica entre categorias em ausência, ou seja, situadas no eixo paradigmático. Um dos exemplos mais citados de ocorrência de um processo analógico é a formação de futuro com o verbo ir. Ir mais verbo de movimento no infinitivo passou a assinalar futuridade. Por analogia, verbos não de movimento também passaram a apresentar o verbo ir como auxiliar, consumando a noção de futuridade associada ao verbo ir.

REANÁLISE – mudança de percepção de como os constituintes estão ordenados no eixo sintagmático, decorrente de um tipo de raciocínio denominado abdução. Costa (2003) explica que a abdução envolve a observação de um fenômeno, a atribuição de uma regra baseada nessa observação e, por fim, uma aplicação da mesma regra a estruturas superficialmente semelhantes. “Um dos tipos mais freqüentes de reanálise é a fusão de duas ou mais formas fronteiriças na cadeia da língua” (COSTA, 2003, p. 73). Ocorre, portanto, através da reanálise, o desenvolvimento de novas estruturas a partir de estruturas antigas.

CONTINUIDADE E GRADUALISMO – a gramaticalização tende

continuamente à inovação da estrutura das línguas em um processo contínuo. Ou seja, a gramaticalização não é um processo que possa se extinguir, sendo muito difícil identificar claramente suas fases. Ela é recorrente e interminável. Esse postulado goza de grande aceitação entre os lingüistas. A constatação desse princípio favorece, segundo Castilho (1997), o conceito de gramática emergente formulado por Hopper (1988 apud CASTILHO, 1997), que acredita numa contínua re-estruturação da gramática de uma língua. Conforme

Lopes (2003), autores como Lichtenberk (1991) também defendem ser o gradualismo inerente aos fenômenos de gramaticalização. Pode-se depreender que, por ser um fenômeno contínuo, a gramaticalização não é um processo que possa se extinguir.

UNIDIRECIONALIDADE – talvez seja um dos princípios mais questionados na literatura contemporânea sobre gramaticalização. Segundo esse princípio, a gramaticalização é um processo irreversível, que se desenvolve ao longo do tempo, sempre da esquerda para a direita, conforme expresso, por exemplo, pelo cline proposto por Givón (1971 apud CASTILHO, 1997) discurso>sintaxe>morfologia>morfofonêmica>zero. De acordo com essa trajetória unidirecional de gramaticalização,

Alguns itens lexicais passam a ser utilizados em contextos nos quais desempenham certa função gramatical, ainda não fixada. Progressivamente, via repetição, seu uso torna-se mais previsível e regular, resultando numa nova construção sintática com características morfológicas especiais, podendo, posteriormente, desenvolver-se para uma forma ainda mais dependente, como um clítico ou afixo, com eventuais adaptações fonológicas (CUNHA; COSTA; CEZÁRIO, 2003 p. 54).

Martelotta (2003a) explica que a proposta de gramaticalização, por volta do início da década de 90, é a de que a mudança é unidirecional e sucessiva, caracterizando-se por uma evolução linear ao longo do tempo, sendo que um valor novo implica sempre na existência de um valor anterior.

Castilho (1997) cita autores que apóiam o princípio da unidirecionalidade. Hopper-Traugott (1993, p.95) explicam que, a um estágio A, deve seguir-se um estágio B, e não o contrário. Para Heine-Claudi-Hünnemeyer (1991), estruturas menos gramaticais podem tornar-se mais gramaticais, mas o processo contrário não acontece de um modo significativo. Conforme esclarece Castilho (1997), o processo que alguns autores chamam de desgramaticalização é, na verdade, ganho de propriedades discursivas. Afirma-se também que a metáfora constitui um processo unidirecional de abstratização crescente. Ou seja, um item lingüístico, usado inicialmente em um sentido concreto, pode, através de processos metafóricos unidirecionais, ser usado para expressar sentidos mais abstratos7.

Trabalhos recentes, contudo, questionam a ênfase que vem sendo dada ao princípio da unidirecionalidade. Por exemplo, para Mattos e Silva (2002), esse princípio é uma herança neogramática. A predizibilidade de categorias maiores para menores soou para autora como um contraponto às leis fonéticas. O próprio Castilho (2003) argumenta que a

unidirecionalidade só pode ser comprovada no tratamento das palavras no interior de cada um dos subprocessos de gramaticalização: a fonologização, a morfologização e a sintaticização. Schlieben-Lange (2004) questiona se os processos de gramaticalização se dão sempre na mesma direção (unidirecionalidade) ou se poderia haver reversões.

Essas dificuldades relacionadas com o princípio da unidirecionalidade contribuíram para Castilho propor um estudo multissistêmico da mudança lingüística, considerado no item 2.5.