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No Brasil, desde a década de 1930, Flávio de Carvalho – artista, arquiteto, engenheiro e escritor – já realizava pesquisas sobre o comportamento do público diante da performance. Um indicador das primeiras e significativas manifestações da performance no país, a julgar pelo conteúdo expresso por Walter Zanini no texto introdutório do catálogo da 17ª Bienal de São Paulo (1983). Nesse artigo, Zanini refere-se à dimensão pública da obra de Flávio como exemplo de transcendência e deslocamento da atuação do artista de ateliê: “as novas gerações, enriquecidas pela problemática conceptual, encontram sem dúvida nesse homem/ideia toda uma riqueza precursora que o torna referência fundamental para nossa atualidade” (ZANINI, 1983, p. 14).

Neste mesmo período, ao desenvolver práticas artísticas de efeito provocativo, por exemplo, a “Experiência nº 2” – em que o artista andou em sentido contrário a um grupo de fiéis, em uma procissão, usando um chapéu verde-musgo sobre a cabeça – procurou desestabilizar padrões e sistemas instituídos, fazendo uma análise do comportamento das massas.

Tanto as ações na rua quanto as intervenções nos museus evidenciam mecanismos que questionam a instituição, o espaço e as convenções tradicionais do sistema de arte. Das interferências no andamento corriqueiro da galeria a ações realizadas fora do espaço expositivo, o ponto em comum é o transtorno de ordem burocrática de instituições preparadas e organizadas em torno dos limites dos suportes tradicionais (COCCHIARALE et al, 2005, p. 41).

Outra emblemática manifestação do artista, denominada “Experiência nº 3” e realizada em 1956 (Figura 9), correspondia a um desfile do artista pelas ruas do centro da capital paulista vestindo saia com o comprimento acima dos joelhos, blusa com mangas bufantes, meia arrastão e sandálias. Este traje, Flávio denominou “New

Look”, uma proposta de vestimenta masculina mais adequada ao clima tropical do

país. O registro dessa ação mostra-nos que, diferentemente de sua primeira experiência, Flávio deambula à frente de um público que o segue pelo caminho.

Se na primeira o artista confronta um grupo impaciente no contrafluxo de uma procissão, na segunda é acompanhado por seguidores. De acordo com Ana Maria Maia e Renato Rezende, organizadores do livro que leva o nome do artista, “Flávio de Carvalho foi um midiático” (2015, p. 8), que utilizara os meios de comunicação, como a imprensa, para manifestar suas opiniões e provocar debates. Esse público, que outrora era provocado, estimulado a reagir com escárnio frente aos manifestos de vanguarda, conforme descreve Sheila Leirner, é conduzido, nesse momento, a uma posição diferenciada, incentivado pela respectiva abertura da obra de arte, uma obra que nasce inacabada. Portanto, na participação do espectador emancipado, descrito por Jacques Rancière (2012, p.17) como um sujeito que ao mesmo tempo é distante e intérprete ativo, evidencia-se a prática da performance, nesses moldes, como um “instrumento de pedagogia revolucionária” (ECO, 2012, p. 50).

O espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual. Ele observa, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compõe seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si. Participa da performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por exemplo, à energia vital que esta supostamente deve transmitir para transformá-la em pura imagem e associar essa pura imagem a uma história que leu ou sonhou, viveu ou inventou (RANCIÈRE, 2012, p. 17).

Para além da emancipação do espectador descrito por Rancière, Hélio Oiticica propunha um estado de participação objetiva do público diante de sua obra. Ele reivindicou uma nova postura do espectador, opondo-se à “pura contemplação transcendental” (OITICICA, 1967, p. 162), uma resposta ao fenômeno de “desintegração do quadro tradicional”, iniciado por Lygia Clark (1954). Essa tomada de decisão na arte brasileira da virada dos anos 50 para os 60, nomeada por Oiticica como “Nova Objetividade” – reconhecidamente apoiada no movimento antropofágico –, imprimiu novo sentido à relação do público com a arte. Percebe-se, portanto, que a proposição vivencial junto ao objeto de arte corresponde (e só ganha significado) ao campo da experiência, pois é da ordem dos sentidos, da sensibilização existente na manipulação e na interação do corpo com a obra. Tal posição pode ser observada em proposições como “Bichos” (1965), de Clark, e “Parangolés” (década de 1960), de Oiticica, obras que, segundo Regina Melim, podem ser entendidas enquanto “paráfrases de um corpo” (2008, p. 25).

Figura 9: New Look, Flávio de Carvalho, registro de autor

desconhecido. 1956, Fundação Bienal de São Paulo, São Paulo – Brasil.

A participação do espectador é fundamental aqui, é o princípio do que se poderia chamar de “proposições para a criação”, que culmina no que formulei como antiarte. Não se trata mais de impor um acervo de ideias e estruturas acabadas ao espectador, mas de procurar pela descentralização da “arte”, pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial; dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de “experimentar a criação”, de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado (OITICICA, 1986, p. 111).

Recentemente, em 2017, na 35ª edição do panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, esse conceito foi revisitado pelo artista Wagner Schwartz, na performance “La Bête” (Figura 10), apresentada na abertura da Mostra13.

Ao inspirar-se na obra de Clark, o artista apropriou-se não somente da experiência sensorial promovida pelo contato com a obra, potencializando esse contato do próprio corpo como objeto a ser manipulado (objeto/suporte), como também do papel de espectador-participador. Sendo assim, novas alternativas de abertura da obra de arte podem ser solicitadas no processo de proposição e comunicação entre o corpo e o objeto.

13

Na abertura da 35ª edição da Mostra Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o artista Wagner Schwartz realizou a performance “La Bête”, que consistiu na interação de seu corpo nu com uma citação da obra “Bichos”, de Lygia Clark. Sua proposta era tomar o lugar daquele objeto, colocando-se à disposição do público e ter seu corpo manipulado. A performance gerou debate e manifestações reacionárias por parte de grupos políticos conservadores, uma vez que uma criança, acompanhada por sua mãe, participou da proposta.