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Dois princípios de tolerância são usualmente classificados na literatura técnica: o princípio da tolerância tradicional ou cartesiana, limitada pela representação da forma da peça e os valores de suas dimensões com tolerância para mais e para menos (+/-) e o princípio denominado de zona de tolerância moderna ou simplesmente tolerância geométrica (FENG e HOPP, 1991, MAVROIDIS et al., 2002, KANDIKJANA et al., 2001) definida nas normas ISO/GPS e ASME/GD&T.

O filósofo e cientista René Descartes foi um dos precursores da especificação geométrica de produtos com a publicação, em 1637, do livro “Geometrie”, introduzindo o conceito de coordenadas cartesianas. Três séculos depois o engenheiro Stanley Parker, trabalhando em uma fábrica de torpedos da Marinha Britânica durante a Segunda Guerra Mundial, constatou que peças boas tinham sido rejeitadas quando da avaliação de tolerância de posição de furos com a cotagem cartesiana. Stanley Parker verificou que a característica crítica na montagem era o afastamento em relação ao centro do furo e, portanto, o campo de tolerância deveria ser circular e não quadrado que limita a zona de tolerância de um valor 57% menor em relação a zona de tolerância circular.

Stanley Parker provou que a forma correta da zona de tolerância de posição de um furo deveria ser cilíndrica e não retangular, introduzindo o conceito de cotação funcional (WANDECK e SOUSA, 2008).

Na figura 3.3 está ilustrado o ganho em termos de variação possível da tolerância do furo sem que se perca a funcionalidade do produto. Verifica-se na figura que, por exemplo, o ponto “Q” não está numa condição limite como é o caso do ponto P. Entretanto, para a especificação de tolerância cartesiana, o ponto Q reprovaria a peça com respeito à tolerância de posição do furo, por exemplo. Esse foi o argumento utilizado por Parker para propor a cotação funcional.

Figura 3.3 – Tolerância linear versus tolerância geométrica

Além da limitação da zona de tolerância linear, a especificação de tolerância pelo método tradicional não satisfaz totalmente as exigências e tecnologias atuais de projeto, fabricação e metrologia (ISO/TC 213, 2010, WANDECK e SOUSA, 2008). Apenas tolerâncias de tamanhos e casos simples de tolerâncias de posição são consideradas no método tradicional e por não abordar tolerâncias de forma, os requisitos de montagem e alinhamento não são possíveis de representar ou verificar. Outra limitação é a representação pobre nos desenhos face às potencialidades atuais dos sistemas CAD (FENG e HOPP, 1991).

A partir dos estudos do engenheiro Stanley Parker que constatou a limitação da cotagem cartesiana deu-se início ao desenvolvimento de uma nova forma de especificação geométrica dos produtos que contemplasse as variações de forma e funcionalidade do

produto (WANDECK e SOUSA, 2008). Para especificar e expressar de forma adequada as características geométricas do produto foi necessário desenvolver uma linguagem padronizada que considerasse a simbologia para indicação gráfica e o que cada símbolo significa para interpretação do desenho técnico.

Essa linguagem associada aos desenhos tipicamente em duas dimensões foi amplamente difundida no meio industrial e ficou conhecida como GD&T (Geometrical Dimensioning and Tolerancing). O uso intenso dessa linguagem induziu o desenvolvimento de várias normas nacionais e internacionais com o objetivo de transmitir de forma clara, objetiva e uniforme as intenções do projeto.

Ao longo dos anos diversos fatores como, por exemplo, o uso intenso de computadores para auxílio aos projetos e a tecnologia para medição por coordenadas contribuíram para a fundamentação matemática do dimensionamento e especificação de tolerância. As normas atuais descritas na seção seguinte incorporaram diversos conceitos, a condição de independência, a zona de tolerância projetada, as zonas de tolerâncias compostas, referências, etc.

Nas figuras 3.4 e 3.5 consta um exemplo didático para ressaltar as diferenças entre os dois princípios de tolerância (tradicional e geométrica) e os possíveis erros de avaliação de conformidade devido à falta de referência para a inspeção (CHIABERT et al., 1998).

Figura 3.4 – Desenho de uma placa simples com dois furos (adaptada de CHIABERT et al., 1998).

À primeira vista, o desenho representado na figura 3.4 (a) parece fácil entender. A placa tem 6 mm de espessura com 16 mm de largura e 70 mm de comprimento. Possui dois furos simétricos com 7 mm de diâmetro. A distância entre os centros dos furos é de 50 mm. A tolerância (simétrica) permitida para as dimensões lineares é de ± 0,2 mm e para as dimensões angulares ± 5º.

Por outro lado, analisando a figura 3.4 (b) a representação parece mais complicada e mais difícil entender (sem um conhecimento básico de GD&T ou GPS). Então porque a figura 3.4 (b) representa melhor as tolerâncias da peça em questão? A resposta está na possibilidade de uma correta e completa informação sobre a intenção do projeto, considerando os requisitos funcionais e de inspeção (ASME, 1994, ASME, 2009, CHIABERT et al., 1998).

Por exemplo, nas duas situações (a) e (b) da figura 3.4 a tolerância dimensional da espessura da placa está definida como (6,0 ± 0,2 mm). Entretanto, nada é dito sobre a variação de retitude da placa. A espessura da placa pode estar dentro dos valores de tolerância dimensional, no entanto, se possuir uma curvatura significativa pode comprometer sua montagem. Por outro lado, na figura 3.4 (b) a tolerância geométrica de retitude está claramente definida.

Com relação a localização dos furos na figura 3.4 (a), devido a acumulação de tolerância (soma linear), a máxima tolerância para o furo superior passa a ser de ± 0,4 mm, ao invés de ± 0,2 mm. Essa situação é desejável para o setor de fabricação, mas corre o risco das peças não se ajustarem na montagem. Considerando isso, o projetista assume desnecessariamente tolerâncias mais apertadas como prevenção para fabricação, mas que podem impactar nos custos de fabricação.

Finalmente, a falta de referência para a seqüência de inspeção na figura 3.4 (a) pode levar a uma avaliação equivocada da peça com respeito aos requisitos de conformidade. Na figura 3.4 (b), a seqüência de inspeção está defina pelos planos de referência A-B-C, onde a peça é apoiada em pelo menos três pontos no plano “A” e depois apoiada em pelo menos dois pontos no plano “B” e finalmente apoiada em pelo menos um ponto no plano “C”. Isto garante que os seis graus de liberdade da peça no espaço estejam devidamente fixados. Na medição por coordenadas, esse alinhamento é denominado de 3- 2-1.

Na figura 3.5 consta um exemplo de diferentes resultados da inspeção devido à seqüência diferente de posicionamento (referências) da placa para a inspeção.

Figura 3.5 – Resultados diferentes devido a seqüência diferente de posicionamento para inspeção (adaptada de CHIABERT et al., 1998).

Hoje o projetista tem que observar uma quantidade de normas e regras técnicas relativas às tolerâncias geométricas e dimensionais, as quais são necessárias para produzir um projeto que não deve apenas ser consistente com a função da peça, mas também com as restrições de manufatura, limitações de montagem, plano de inspeção (metrologia) entre outros requisitos. Estas condições mais tarde determinam essencialmente a economia da indústria na fabricação das peças (GIGO, 1999).

A tolerância geométrica, portanto, fornece um conjunto compreensivo de símbolos e controles para especificar a geometria (forma, posição, orientação, etc.) de uma peça e garantir os requerimentos de funcionalidade, intercambiabilidade, montagem e alinhamento (CHIABERT et al., 1998). Ela é usada em conjunto com as práticas tradicionais da tolerância dimensional e permite ao projetista comunicar as características importantes da peça de uma forma clara para a fabricação e inspeção (FLACK e BEVAN, 2005).

Segundo FENG e HOPP (1991), o fundamento da tolerância geométrica está baseado em dois importantes princípios: o princípio Taylor e o princípio da independência nas normas ISO. Esses dois princípios fazem a diferença entre as duas normas internacionais de representação de tolerâncias, que serão abordadas neste capítulo.