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Principais conclusões

No documento Os escravos que Saint-Hilaire viu (páginas 32-35)

Quais os escravos q u e Saint-Hilaire viu? O levantamento sistemático das referências sobre escravidão nos seus minuciosos (e sem dúvida fidedignos) relatos de viagem, feito acima, deixa claro um p o n t o : o Viajante teve pouquíssimas oportunidades, ao l o n g o de quase cinco anos e 15 mil quilômetros de j o r n a d a s pelo C e n t r o - S u l do Brasil, de testemunhar o escravismo de plantation. Ou seja, m ã o - d e - o b r a escrava aplicada à p r o d u ç ã o agrícola (tipicamente, de lavouras c o m o açúcar, café, algodão), conduzida em escala suficiente para permitir u m a o r - ganização do trabalho em turmas de escravos, dedicadas à execução de tarefas intensivas em esforço, a cada t u r m a correspondendo um supervisor direto, que dita e fiscaliza o r i t m o e a eficácia da execução das tarefas. Um a r r e m e d o de linha de m o n t a g e m , em que a cadência do trabalho é dada não pela velocidade da correia transportadora, mas pela ação coercitiva do feitor, q u e é exercida pela ameaça, potencial ou efetiva, de castigos físicos.

O escravo típico dos relatos de Saint-Hilaire, representativo dos que ele e n c o n t r o u em suas viagens e descreveu, é b e m diferente desse. O que transparece em seus livros é que a escravidão predominante, modal

— p o r t a n t o "típica" — era, nas áreas q u e percorreu, associada a tarefas intensivas em habilidade nas fazendas de p r o d u ç ã o diversificada, na criação de porcos ou de gado leiteiro, nos pequenos engenhos de açúcar, e m e s m o na mineração; a dos cativos trabalhando ao lado do senhor, às vezes convivendo c o m ele, ou m e s m o trabalhando sozinhos, sem qualquer vigia, eventualmente fazendo as vezes de administradores da propriedade.

Isto é, em si, um fato significativo. É c o m u m , c o m o se sabe, associar- se a escravidão negra à produção agrícola para exportação, em grandes propriedades rurais. O t r i n ô m i o "latifúndio-monocultura-escravidão" costuma ser apresentado, em livros escolares, c o m o u m a síntese das características do sistema produtivo n u m p e r í o d o amplo de nossa his- tória econômica; no imaginário popular, sem dúvida, a figura típica do escravo é a de um negro trabalhando, sob a ameaça do chicote do feitor, n u m a plantação de açúcar ou de café. Em contraste c o m isso, o quadro descrito pelo Viajante — aparentemente, aplicável a u m a extensa região do País, no início do século X I X — é o de u m a outra escravidão.

C a b e referir que o pressuposto de que a forma básica de escravidão negra corresponde à utilização de m ã o - d e - o b r a cativa em regime de

plantation não se restringe à visão leiga, mas costuma aparecer t a m b é m

na literatura técnica sobre escravismo, explicita ou implicitamente. A verificação da existência de formas alternativas de uso da força de trabalho escrava é, às vezes, apregoada c o m o um desafio à visão tradicional sobre o escravismo, c o m o evidência de u m a outra, ou " n o v a " escravidão.2 0 O debate suscitado, na década de oitenta, pelo artigo de M a r t i n s Filho & Martins (1983) sobre o escravismo em Minas Gerais no século X I X , é um exemplo disso. E m b o r a a tese central do artigo — de que o uso da m ã o - d e - o b r a escrava, no caso, não estivesse ligado ao setor exportador da economia — tenha sido rebatida de várias formas, em geral os críticos concordaram c o m os Martins quanto ao fato de que a economia mineira seria um caso excepcional, no que respeita à pouca importância relativa da escravidão em regime de plantantion.2 1 Na conclusão de seu trabalho, um dos críticos afirmou: "Seja a Província u m a e c o n o m i a autárquica ou profundamente ligada às atividades de exportação, certamente é um caso à parte, e um desafio aos modelos existentes da escravidão m o d e r n a " . (Slenes, 1985:63). O r a , os relatos de Saint-Hilaire sugerem j u s t a m e n t e

2 0 N o t a r , p o r e x e m p l o , o s u b t í t u l o d e u m l i v r o s o b r e e s c r a v o s d e g a n h o , p u b l i c a d o

n o s a n o s o i t e n t a : A Nova Face da Escravidão ( S i l v a , 1 9 8 8 ) .

2 1 V e r M a r t i n s F i l h o & M a r t i n s ( 1 9 8 3 , 1 9 8 4 ) ; S l e n e s e t al. ( 1 9 8 3 ) ; S l e n e s ( 1 9 8 5 ) .

que a escravidão "não-plantation" era a regra, e não a exceção, na Minas do início dos oitocentos.

Pode-se indagar da representatividade do quadro traçado p o r Saint- Hilaire, c o m respeito à escravidão brasileira em geral no período. Afinal, ele praticamente não viu cafezais — já que o café apenas começava a expandir-se pelo vale do Paraíba — e, dos vários engenhos de açúcar que m e n c i o n a , p o u c o s (basicamente, os da região de C a m p o s , no R i o de Janeiro) t i n h a m u m a escala de p r o d u ç ã o característica das regiões de maior produção. S e m ter p e r c o r r i d o regiões o n d e prevaleceram as duas grandes lavouras escravistas de nossa história e c o n ô m i c a , os relatos do Viajante seriam u m a amostra viesada do escravismo brasileiro. Sem d ú - vida, essa é u m a questão cuja resposta satisfatória demandará maiores pesquisas.

Por o u t r o lado, é preciso não esquecer que as províncias percorridas por Saint-Hilaire detinham quase a metade do estoque global de escravos do Brasil, na época: de um total de cerca de 1,1 milhão de cativos, es- timado para o País em 1819, aproximadamente 487 mil, ou 44%, estavam nos atuais Estados de Minas Gerais, R i o de Janeiro, Espírito Santo, Goiás, São Paulo,Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (IBGE, 1990:32, Tabela 1.4). Ou seja: o t e s t e m u n h o do Viajante traz consigo a sugestão de que uma parte m u i t o substancial dos escravos brasileiros, no início do século X I X , era, p o r sua inserção no processo produtivo, de um tipo diferente daquele usualmente considerado o escravo "representativo".

Se os escravos que o Naturalista viu não se dedicavam tipicamente a tarefas intensivas em esforço, então não seria de se esperar que o uso sistemático da coerção e castigos físicos, p o r parte dos senhores, fosse o m é t o d o p r e d o m i n a n t e de induzir nos escravos o d e s e m p e n h o desejado. Ao contrário, deveria haver, nesses casos, u m a prevalência de incentivos positivos. As opiniões de Saint-Hilaire sobre o caráter suave ou b e n i g n o da escravidão brasileira são, assim, coerentes c o m o q u e ele observou.

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