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A percepção, no âmbito das ciências, foi estudada pela Gestaltheorie, tornando-se um dos seus temas centrais. A psicologia da forma acreditava que seu estudo era o ponto de partida para a compreensão do homem, porque, para ela, a maneira de uma pessoa se comportar dependia, em grande parte, da maneira pela qual percebe o meio ambiente. Nesse contexto, a percepção foi definida como um processo, inerente ao homem, de organização e interpretação dos dados sensoriais recebidos, para formar a consciência do ambiente que o cerca. Trata-se, portanto, do modo de organização e de recepção do exterior e de como se dispõe a realidade percebida na consciência, ou, então, de saber como é que o homem pode chegar a conhecer seu próprio mundo. Mesmo no campo da ciência, como se vê, a temática da percepção diz respeito ao problema da verdade. Mas, o que se quer afirmar aqui é o fato dela não ser a verdade e sim o que possibilita a verdade.

Para os estudos da fenomenologia, a percepção se constituiu pedra angular da compreensão e concepção da realidade e do conhecimento, porque é a corrente de pensamento fenomenológica que, ao partir de uma noção própria de fenômeno, pergunta: o que se mostra no fenômeno? Ou, a quem isso que aparece se mostra? De que modo aparece e como, isto que aparece, se expõe e se mantém no modo de expor-se?53. A percepção, portanto, é enfocada por Husserl como um fenômeno complexo, pois, tem a ver com a descrição da experiência de apreensão de uma coisa.

Na filosofia de Merleau-Ponty, que faz uma interpretação particular da fenomenologia husserliana, a percepção é o acesso à experiência originária, onde se unem consciência e mundo; considerou-se seu primado, entendido como fundamento tanto do percebido como do que percebe, em que, um e outro, surgem da mútua união da consciência e do mundo54. Assim entendida, é ela que abre ao homem o contato original com o mundo. Numa fenomenologia existencial, a percepção possibilita o acesso à experiência originária do sujeito encarnado no mundo.

Merleau-Ponty se recusa a ver no ato perceptivo uma operação meramente sensitiva, sem nenhuma intencionalidade. Também, não aceita que seja apenas uma operação intelectual, que é o modo como uma doutrina de inspiração criticista trata a

53 BICUDO, M. A Virggiani. A percepção em E. Husserl e em Merleau-Ponty. Veritas, Porto Alegre, v.42, no 1, março 1957, p. 80.

percepção, onde os dados inextensivos (as sensações) são postos em relação e explicados, de tal sorte que acabam por constituir um universo objetivo. Não se trata, portanto, de um conhecimento do mundo, mas, do que torna possível o conhecimento. Mesmo sabendo que o pensamento não é elaborado no âmbito do funcionamento do sistema nervoso, como queriam as pesquisas científicas da neurologia e da fisiologia, Merleau-Ponty não deixa de lançar mão às pesquisas experimentais, quando se trata de compreender a natureza da percepção. Daí a necessidade, para ele, de um estudo novo sobre a percepção e da percepção do corpo em especial. Num projeto de pesquisa, escrito em 1933, ele argumentava sobre a necessidade de:

(...) estudar particularmente a literatura recente da ‘percepção do corpo próprio’ [que caso o estudo dos documentos confirmasse suas observações] (...) obrigaria pois a voltar aos postulados da concepção clássica da percepção (...). Em resumo, [conclui] no estado presente da filosofia, seria o caso de se tentar uma síntese dos resultados da psicologia experimental e da neurologia, no que tange ao problema da percepção, e determinar, pela reflexão, o seu sentido exato e, talvez, reformular certas noções psicológicas e filosóficas correntes55.

Os resultados desses estudos vão aparecer na “Phénoménologie...”, em que faz da experiência perceptiva o objeto central de sua fenomenologia existencial. A primeira grande idéia, portanto, da fenomenologia de Merleau-Ponty está no fato de ser a percepção quem faz surgir o mundo, que então aparece tal como foi percebido, isto é, como mundo fenomenal; a segunda, de que possibilita o acesso às próprias coisas e ao mundo real; a terceira, o fato de ser uma fenomenologia estrutural na medida em que concebe o homem como ser-no-mundo e o mundo como mundo humano e simbólico, não sendo um exterior ao outro, mas relativos transcendentalmente, na totalidade de uma existência dinâmica que transforma a natureza em mundo: uma multiplicidade aberta e indefinida onde as relações são de implicação recíproca, não se tratando, portanto, de um objeto. A quarta e última grande idéia é a dimensão dialética: o homem não é apenas ser- no-mundo, mas, também ser-ao-mundo, numa dialética fundamental, fazendo com que a estrutura — homem–mundo — se constitua dialeticamente na relação da existência e da significação. O que significa que a consciência perceptiva é ao mesmo tempo consciência de si e consciência do mundo56.

55 MERLEAU-PONTY, M. Projeto de trabalho sobre a natureza da percepção. In: O Primado da percepção

e suas conseqüências filosóficas. Trd. Constança M. César. Campinas-SP: Papirus, 1990, p. 10-13.

56 MERLEAU-PONTY, M. Ponty na Sorbonne: resumo de cursos de filosofia e linguagem.Trad. Constança M. César. Campinas-SP: Papirus, 1990, p.12-15.

Retomar a percepção do ponto de onde ela foi esquecida e trazê-la para o debate filosófico atual, como fez Merleau-Ponty, significou questionar a distinção que é feita entre mundo interno e mundo externo; por outro, significou questionar as formas de absolutismos, especialmente em epistemologia ao separar o objeto observado do observador. Um pensamento absoluto, que ora centra-se no objeto ora no sujeito, impede que se perceba como o sentido resulta da relação. Neste ponto, a própria consciência aparece como dialética vivida em ato do ser-no-mundo e do ser-ao-mundo57, consciência de um corpo, sujeito-corporal, pois, é ele (o corpo) que põe o sujeito permanentemente em contato com o mundo e marca a presença do mundo no homem. A filosofia fenomenológica de Merleau-Ponty, ao trazer para o debate filosófico a experiência perceptiva, obriga a filosofia racionalista a representar a subjetividade humana de forma mais abrangente que a pura consciência racional; ela envolve aspectos e dimensões não especificamente inteligíveis e que são relevantes para própria ordem do conhecimento. Trata-se aqui da dimensão corporal especificamente, que Merleau-Ponty utilizou para resolver o mistério da relação consciência-mundo e a superação do dualismo das filosofias da consciência.

Na “Phénoménologie...” é dedicado um longo e exaustivo capítulo ao estudo do corpo a partir da centralidade da percepção correlativamente. Na obra vê-se transparecer aquilo que é característica fundamental de sua filosofia: a afirmação de que o sentido que se encerra na percepção nunca é absoluto, sendo sempre atual, é uma operação, por definição, inacabada.

Nas palavras de P. Ricoeur, o que Merleau-Ponty está propondo com a filosofia da percepção é, além de toda psicofisiologia da sensação, uma maneira de ver o mundo e de ver a si mesmo no mundo. A percepção tornar-se, assim, a pedra de toque da verdadeira condição do homem.

Na teoria fenomenológica do conhecimento, a percepção foi considerada originária e fundante do conhecimento humano, porém, com uma estrutura diversa do pensamento enquanto realidade inteligível e campo das idéias. Ver-se-á adiante, na presente pesquisa, que ela não dá a realidade por completo, mas, em perspectiva, isto é, não se percebe de uma só vez o objeto. Já, no âmbito do pensamento, o intelecto percebe a idéia por inteiro, de uma só vez; assim, o sentido é dado na sua totalidade, enquanto na percepção não. Perceber, então, é diferente de pensar, mas não é uma forma inferior e deformada de pensamento, como afirma a tradição racionalista. Abordar a percepção, portanto, é tratar da relação entre o homem-sujeito (corporal) e as coisas percebidas: uma

relação possível porque, para Merleau-Ponty, as coisas são corpos e o homem, também, existe como corpo.

O capítulo que doravante segue fará uma contextualização da “Phénoménologie...” no âmbito da evolução intelectual de Merleau-Ponty. Considerase esse capítulo central, porque a referida obra completa e aprofunda as conclusões a que o filósofo chegara na “Structure...”, que são, após ter passado pela “Phénoménologie...”, radicalizadas com as reflexões ontológicas do “Le visible...”; também, porque a presente pesquisa está circunscrita basicamente às reflexões dessa obra.