• Nenhum resultado encontrado

Capítulo III – O SUJEITO DA PERCEPÇÃO ENQUANTO “SPIRITUS

4. Síntese do corpo próprio e a percepção

Deve ter ficado claro que a noção de corpo próprio não se sustenta no dualismo consciência-corpo. O corpo é possuidor de uma intencionalidade operante que o insere no âmbito de um pacto com o mundo e que faz brotar o sentido. Tem-se, dessa forma, um sujeito perceptivo definido como corpo próprio e um mundo (objeto) definido como fundo ou horizonte, que faz aparecer o corpo relação gestáltica figura-fundo. Trata-se, então, de uma coexistência onde não há mais realidades autônomas. O corpo faz-se carne207 com

o mundo; estabelece uma comunicação pré-reflexiva com ele, compreendendo-o sem

precisar passar por ‘representações’, sem subordina-se a uma ‘função simbólica’ ou objetivante208 . A intencionalidade operante é um movimento de presença no mundo e ao

mundo, definida pela situação do corpo frente a uma tarefa e não pela sua posição objetivamente determinada em relação a outras posições, como visto. A intencionalidade, característica fundamental do corpo próprio, não é um ato, mas um status ontológico do corpo-sujeito e o mundo; é motora, mas não sinônimo de adaptação mecânica ao

espetáculo do mundo. Daí que a motricidade, tomada no estado puro, está já dotada do poder elementar de dar sentido (...) numa correspondência imediata e préconsciente do corpo próprio às solicitações do mundo que o rodeia209 .

O corpo próprio forma com o mundo um sistema; ele está no mundo, assim como o coração no organismo. Isso é possível porque pela experiência perceptiva o corpo é um com o mundo na sua espessura, é carne. A percepção acontece, então, porque há mundo: o algo da percepção exterior. Nesse sentido, retomando o contato com o corpo e com o mundo, é o sujeito perceptivo que se encontrará, já que se percebe com o corpo; ele é um eu natural e como que o sujeito da percepção.

No estudo da espacialidade do corpo próprio evidenciou-se o nó que há entre essência e existência, encontrado na percepção do espaço e das coisas, quando não se separa a espacialidade da coisa e sua percepção. Segundo Merleau-Ponty a tradição cartesiana e kantiana já ensinava isso quando fazia das determinaçõesespaciais a essência do objeto; da dispersão espacial o único sentido possível da existência em si. Mas, retruca o filósofo:

ela a tradição esclarece a percepção do objeto pela percepção do espaço, enquanto que

207 Uma expressão husserliana que Merleau-Ponty retoma para designar o ser próprio do visível, do corpo vivo distinto do corpo objetivo.

208 MERLEAU-PONTY, M. PhP., op., cit., 164. 209 CANTISTA, M. J. , op., cit., p. 395.

a experiência do corpo próprio nos ensina a enraizar o espaço na existência210. Enquanto

o intelectualismo reduz o motivo da coisa ao motivo do espaço, a experiência do corpo próprio revela, sob o espaço objetivo, uma espacialidade primordial que se confunde com o próprio ser do corpo, como foi demonstrado anteriormente ao considerar o corpo não primeiramente presente no espaço — espacialidade de localização — e, sim, sendo no espaço — espacialidade de situação.

Sabe-se, agora, que não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado. Sendo mais apropriado compará-lo, segundo Merleau-Ponty, à obra de arte211. Um poema, um quadro, um romance são indivíduos, isto é, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto. A obra de arte irradia significação do seu lugar espacial e temporal, num modo inesgotável. Como ela, a percepção supõe um sujeito situado espácio-temporalmente, isto é, supõe um corpo. Foi nesse sentido, pois, que o filósofo comparou o corpo à obra de arte: tomou o corpo como um conjunto de significações vividas em que, em momento algum, se separa sua espacialidade do seu ser próprio. O que é ser corpo senão estar atado a um certo mundo; e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço212,

afirma Merleau-Ponty designando, assim, a síntese do corpo próprio. O filósofo vê na espacialidade do corpo o desdobramento de seu ser de corpo, isto é, a maneira pela qual ele se realiza como corpo. Essa é uma dimensão fundamental da síntese geral do corpo que possibilita a percepção do que é exterior a ele, pois, toda percepção exterior é, imediatamente, sinônimo de uma certa percepção do corpo que sou eu, assim como toda percepção do corpo próprio se explicita na linguagem da percepção exterior. Isso explica a referência ao corpo como uma unidade expressiva, comparando-o à obra de arte.

As reflexões acima permitem concluir que a espacialidade e a percepção não são problemas distintos, por isso, ser corpo é estar atado a um certo mundo. O ser de corpo desdobra-se na sua espacialidade. Foi o que se procurou dizer sobre a síntese corporal. A análise da espacialidade do corpo já antecipava, então, a análise da sua unidade enquanto corpo próprio, unidade definidora da relação entre o sujeito encarnado e seu mundo.

A meta da fenomenologia existencial de Merleau-Ponty é pôr em evidência a função primordial da percepção e descrever o corpo enquanto o lugar dessa apropriação perceptiva, que, como foi visto, é espacial. As análises precedentes, que almejaram superar a visão da fisiologia mecanicista do corpo, consideraram criticamente os achados

210 MERLEAU-PONTY, M. PhP., op., cit., p. 173. 211 Cf., id., ibid., p. 176.

da psicologia, revelando, em seguida, a espacialidade e a intencionalidade motora do corpo próprio, redescobrindo não só o sujeito encarnado, mas, outrossim, a relação entre ele e seu mundo. Merleau-Ponty sabia que a redescoberta dessa relação não seria tranqüila, porque ela se transforma por si mesma no puro comércio do sujeito

epistemológico e do objeto213, um ato de transcendência em que o sujeito se arrebata a si

mesmo porque, com efeito, o mundo natural se apresenta como um em si para além de sua existência para mim e o sujeito se encontra em presença de uma natureza que não precisa ser percebida para existir. Todavia, mesmo assim, foi o que ele procurou fazer e descrever neste capítulo: pôr em evidência a gênese do ser ou como um objeto põe-se a existir para o sujeito.

213 id., ibid., p. 180.