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Após a etapa de transcrição integral das sessões do grupo de reeducação alimentar foi iniciado um processo de leitura atenta dos textos e em seguida a busca dentre as narrativas, daquelas que trouxessem uma configuração de acontecimentos ou incidentes relativos ao ser obeso, bem como ao processo de emagrecimento. Foram compreendidas como narrativas: falas ou trechos de falas que formassem uma totalidade inteligível, na qual podiam ser identificados personagens, interações e circunstâncias que, segundo Ricoeur (2010), fazem parte do Muthos, ou seja, da configuração da rede de intrigas em torno do tema proposto, que no caso específico deste trabalho foi a obesidade, caracterizando assim uma narrativa.

Em seguida, foram extraídas e separadas por encontro as narrativas de cada participante selecionado no estudo, no intuito de trabalhar mais detalhadamente tais narrativas construídas. Estas foram utilizadas como nossas unidades de análise. A partir daí, foi iniciada a análise das narrativas, utilizando especificamente as narrativas dos participantes que estiveram presentes em todos os encontros. As narrativas selecionadas foram analisadas através da análise de posicionamento proposta por Bamberg que pode ser entendida como uma “tentativa sistemática de relacionar os significados narrativos utilizados na expressão e

no fazer sentido a tipos específicos, senão totalmente exclusivos, de experiências9” (Bamberg, 2012, p.78). Para tanto foram privilegiadas as narrativas que tratassem dos cuidados com o corpo e com a imagem que fizessem menção à obesidade, o que temos chamado aqui de biodiscurso, visto que tais narrativas são ao mesmo tempo que pessoais, norteadas pelo discurso dominante ou narrativas mestras sobre a obesidade como colocado pelo próprio Bamberg.

Para a análise de posicionamento das participantes no grupo utilizamos marcadores que consistem em indicadores espaço-temporais e personagens, visto que as relações estabelecidas numa narrativa são dadas a partir de personagens desenvolvendo alguma ação com algum fim. No que diz respeito aos marcadores espaço-temporais, temos: tempos verbais e expressões em geral que indiquem tempo e locais, que se referem, por exemplo às narrativas que trazem o grupo, a casa, o hospital, etc.. Com relação aos personagens, estes podem ser pessoas ou entes abstratos tais como Deus, o grupo ou a família, que figuram nas narrativas desempenhando algum papel na trama.

Com base neste material, foi realizada também uma categorização relacionada aos quatro elementos ligados ao que Moutinho (2010) traz como sendo norteadores do posicionamento do sujeito frente ao biodiscurso e que neste trabalho serão utilizados para auxiliar na compreensão do sentido de obesidade de P3 e P5, através dos posicionamentos morais do sujeito, a saber: Reflexividade (RF), Autonomia (AT), Vontade (VT) e Emocionalidade (ED). Os verbos complementam esta análise, visto que possibilitam identificar os elementos de Reflexividade (pensar, achar, dentre outros), Atitude (principalmente os verbos utilizados na primeira pessoa ou terceira pessoa), Vontade (verbos como querer, desejar, sonhar, etc.) e Emocionalidade (estar feliz, alegre, triste, dentre outros), funcionando como indicadores do posicionamento do sujeito, capazes de subsidiar um sentido de todo.

De acordo com Moutinho (2010), podemos entender por Reflexividade como “quaisquer atos realizados por um personagem, dirigidos a objetos, e que estejam relacionados à vigilância pessoal pelo respeito a referenciais médicos, estéticos e/ou de saúde presentes nos recursos explicativos associados a uma ação e/ou ao objeto da ação” (p. 98). Por Autonomia, pode-se dizer que seria a “realização de ações voltadas ao cumprimento de

orientações médicas, estéticas e/ou de saúde” (p. 98) ou o descumprimento destas, a Vontade poderia ser definida como “reconhecimento na narrativa de impulso, desejo ou qualquer outro elemento desencadeador de uma ação e/ou relacionado a um objeto” (p. 98) e a Emocionalidade, seria “o reconhecimento pelo narrador do(s) sentimento(s) ou emoções vivido(s) pelo personagem na narrativa e que estejam relacionados a referenciais médicos, estéticos e de saúde” (p.135).

Em seguida, foi feita uma relação destes elementos com os processos de prefiguração, configuração e refiguração, buscando compreender como se construiu a noção de obesidade destes participantes com base no posicionamento por eles adotado. Buscou-se com isso, compreender a dinâmica existente na construção destas narrativas construídas no grupo, a fim de se observar, à luz do conceito de tríplice Mímesis de Paul Ricoeur, o posicionamento do sujeito e sua agentividade (Bamberg, 2005). Assim, foram levados em conta:

1) os elementos de prefiguração, que seriam para Ricoeur (2010) os elementos culturais que embasam as narrativas, ou nas palavras de Bamberg, as narrativas mestras, que nesse caso específico, foram os discursos sociais atrelados à obesidade que estariam permeando a construção narrativa dos participantes;

2) os elementos de configuração, que são as narrativas sobre obesidade propriamente ditas, compartilhadas no grupo ou as pequenas histórias como trata Bamberg (2007);

3) os elementos de refiguração, que podem ser entendidos como a reorganização das narrativas dos sujeitos com base no que foi colocado no grupo, que geraram ou não mudança nestes discursos, organizadores assim, dos posicionamentos adotados pelos participantes.

Dessa forma, com base no entrelaçamento de prefiguração, configuração e refiguração é possível entender como se dá o posicionamento do sujeito, indicando uma aderência ou não às narrativas mestras, possibilitando visualizar, neste sentido, a agentividade do sujeito. Podemos dizer que estes elementos da tríplice Mímesis foram os elementos que possibilitaram a compreensão de como os sujeitos constroem narrativamente a noção de obesidade, visto que entendemos a narrativa como produtora de realidades, considerando que o sujeito se constrói narrativamente, intermediando as narrativas sociais e suas idiossincrasias.

Feita essas análises, em um segundo momento, partimos para a análise relacional das narrativas, considerando que, de acordo com Bamberg (2005), o posicionamento se dá na interação. Desta forma, buscamos compreender como se construíam estas narrativas, principalmente através dos pontos de tensão existentes nas mesmas, tanto no diálogo entre

participantes, entre participantes e equipe, mas também nos momentos permeados, principalmente pela reflexividade, nos quais o participante se colocava como em conflito consigo próprio através de elementos não palpáveis, tais como “o bicho que tá pegando” trazido pela participante 5 (P5), por exemplo. Tal aspecto relacional nos possibilitou perceber que o posicionamento do sujeito também está associado à forma como se dá a relação entre ele e o grupo, contribuindo assim para a construção do posicionamento deste sujeito como mais ativo ou passivo em relação aos seus objetivos.

Com base neste material, após a categorização relacionada aos quatro elementos Reflexividade (RF), Autonomia (AT), Vontade (VT) e Emocionalidade (ED), identificamos os posicionamentos das participantes, no que diz respeito à noção de obesidade, como Posicionamento Agentivo de Atitude e Posicionamento Agentivo de Passividade. Tal categorização se deu, visto que entendemos tais participantes como possuindo uma agentividade mais ou menos ativa em relação ao seu processo de emagrecimento, de acordo com suas construções narrativas no grupo.

Como Posicionamento Agentivo de Atitude, entendemos que é aquele no qual o sujeito se coloca como alguém que diante de uma narrativa social dominante a questiona, sem, contudo, se opor efetivamente a esta, atuando de forma a comandar os eventos em função de seus objetivos. O Posicionamento Agentivo de Passividade, por sua vez, pode ser entendido como aquele no qual o sujeito, mesmo que questionando parcialmente as narrativas sociais dominantes, coloca-se de forma dependente de outras pessoas ou eventos no que diz respeito aos seus objetivos. Ambos os sujeitos possuem objetivos claros, no caso específico de emagrecimento, mas a forma como conduzem o processo é de maior independência ou dependência de pessoas ou eventos externos a si mesmos ou mesmo que considere impossíveis de controlar. Assim poderíamos considerar os sujeitos como sendo mais ativos no processo ou mais passivos.

Diante do caráter interacional próprio do contexto desta pesquisa, podem ser vistos não apenas os participantes do grupo, mas também coordenadoras e alunas. Assim, com o intuito de facilitar a identificação dos sujeitos no momento da análise, decidimos denominá- los como Participantes = P; Coordenadoras = C; Alunas = A, seguido dos números 1, 2, 3 e assim sucessivamente, de acordo com a ordem em que estavam dispostos em sala (ver anexo 3, reprodução feita a partir das notas de campo), num sentido horário e subsequentemente na ordem em que apareciam nos encontros seguintes.

Foram feitos usos das notas de campo, do diário de campo e dos dados dos documentos verificados, visando auxiliar no processo de compreensão e interpretação do material construído sobre as narrativas, buscando contextualizar a construção das mesmas.

Em momento posterior à análise e defesa da dissertação, os resultados desta pesquisa serão devolvidos em forma de oficinas para os profissionais da instituição e no formato de palestras para os participantes do grupo, buscando contribuir para um maior conhecimento do fenômeno e refletir acerca do trabalho realizado, aperfeiçoando a prática de campo.

CAPÍTULO 3.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Para fins de análise, foram privilegiadas as narrativas das participantes P3 e P5 que em sua interação com o grupo puderam nos auxiliar a compreender, através dos seus posicionamentos, como foi construída narrativamente a noção de obesidade. Optamos por focar nas narrativas norteadas por estas participantes, visto que apenas elas compareceram a todos os quatro encontros agendados, que eram parte do delineamento desta pesquisa, possibilitando assim uma visão mais ampla do processo. Para tanto, foram feitas análises específicas com cada uma das participantes em separado para que pudessem ser evidenciadas as nuances desta construção. Os dados, em cada caso, serão apresentados da seguinte forma: Inicialmente será feita uma contextualização, situando o leitor a partir dos dados clínicos e sócio-econômicos de cada participante, seguido da análise de posicionamento, trabalhando com os elementos Reflexividade, Autonomia, Vontade e Emocionalidade, e por fim a análise relacional da tríplice Mímesis, tendo como base os elementos de prefiguração, configuração e refiguração. Num momento posterior será feito um entrelaçamento dos casos estudados, possibilitando assim a visualização ou não de uma mudança.