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3 RETEXTUALIZAÇÃO DO DISCURSO PARLAMENTAR: UMA ANÁLISE

3.3 Procedimentos de análise

A apresentação do corpus respeita os seguintes critérios: disposição dos textos, numerados de cinco em cinco linhas, em duas colunas: na primeira, encontra-se o texto transcrito de acordo com as normas do Projeto NURC/SP (Anexo B), ao qual chamaremos de “texto transcrito (TT)”; na segunda, está o texto retextualizado (TR).

Com a finalidade de resguardar os nomes das pessoas envolvidas nos discursos, os oradores serão identificados simplesmente por “ORADOR” ou “ORADORA”, e as pessoas citadas serão representadas por letras, em ordem crescente. Quando uma pessoa for citada mais de uma vez no mesmo texto, será identificada com a letra que a classificou pela primeira vez.

Após a apresentação do corpus no formato acima descrito, procederemos à análise com o intituito de responder às seguintes questões de pesquisa: Que alterações os retextualizadores promovem na passagem de discursos parlamentares para a modalidade escrita? Que implicações essas alterações trazem para o sentido do texto?

Para a contextualização dos fenômenos ocorridos na retextualização dos textos analisados e melhor entendimento dos comentários, destacamos as seguintes variáveis que podem interferir na transposição do texto oral para o escrito, conforme Marcuschi (2003a, p. 54) e de acordo com observações de profissionais da área da retextualização:

 Conhecimentos do retextualizador. Alguns retextualizadores dos textos analisados têm formação de nível médio e outros, de nível superior. Consideramos que os conhecimentos essenciais ao retextualizador não estão apenas em seu nível de escolaridade, mas também e principalmente no conhecimento prévio, que envolve o conhecimento enciclopédico adquirido fora das instituições de ensino; no conhecimento partilhado, proporcionado pelo convívio orador-retextualizador; e nos conhecimentos interacional e operacional, adquiridos no contexto de trabalho.

O conhecimento é a condição primeira para a compreensão que, por sua vez, é a condição primeira da boa retextualização. É oportuna, aqui, a transcrição do seguinte trecho de Marcuschi:

Há nestas atividades de retextualização um aspecto geralmente ignorado e de uma importância imensa. Pois para dizer de outro modo, em outra modalidade ou em outro gênero o que foi dito ou escrito por alguém, devo inevitavelmente compreender o que foi que esse alguém disse ou quis dizer. (MARCUSCHI, 2003a, p. 47) (grifo do autor).

Ainda sobre a influência dos aspectos cognitivos na retextualização, Marcuschi (2003a) observa que, assim como dois falantes só interagem na suposição de uma certa compreensão mútua, um indivíduo só pode retextualizar na suposição de compreensão do texto de origem. O autor adverte que o não-entendimento de um texto não impede a retextualização, mas pode conduzir a uma transformação problemática, que pode chegar ao falseamento.

A importância da compreensão na passagem do texto oral para o escrito vem sendo apregoada desde há muito tempo por profissionais da área da retextualização, como se observa no texto de Jos Schaerlaekens, professor belga de taquigrafia.

A prática da estenografia requer atenção permanente do profissional. Este não age como mecânico, a registrar séries de sons ou palavras justapostas para reprodução posterior. O que ele anota são idéias expressas por sons e palavras e o que dele se espera é a reprodução fiel dessas idéias. Tal objetivo o estenógrafo não alcançará plenamente a não ser que, ao longo do apanhamento, esteja em condições de compreender o sentido do que estenografa e, quando da tradução, fixe particularmente sua atenção no sentido. Isto lhe permitirá produzir cópia exata do que foi dito (ou ditado). (SCHAERLAEKENS, 1949) (grifo nosso).

O conhecimento é essencial para uma boa retextualização e disso não há dúvida. Sabemos, porém, que é impossível o domínio do retextualizador sobre todos os assuntos que retextualiza, principalmente no contexto parlamentar devido à multiplicidade de domínios discursivos. Nesse ambiente, muitas vezes o profissional terá a seu encargo a retextualização de assuntos dos quais jamais tenha ouvido falar e textos que contenham vocabulário especializado ou itens passíveis de dúvidas. Cabem, então, pesquisas, que suprirão a falta de conhecimento momentânea e contribuirão para a formação do retextualizador.

 Relação entre o produtor do texto e o transformador. Em nosso

corpus, os

produtores dos textos são vereadores da Câmara Municipal de Guarulhos e os transformadores são taquígrafos com pouco contato com os oradores nos exemplos colhidos nas atas de 2001 e maior aproximação nas outras amostras. O distanciamento entre os retextualizadores e os oradores nos exemplos de 2001 deve-se ao fato de que, na época, a Câmara não dispunha de corpo taquigráfico próprio e utilizava serviços de empresas terceirizadas, o que concorria para o revezamento de profissionais nos trabalhos de retextualização. A partir de 2002, porém, a Casa passou a contar com corpo taquigráfico próprio. Sendo assim, os retexualizadores dos demais textos contam, no mínimo, com três anos de convívio com os oradores. Tendo-se em consideração os conhecimentos partilhado, interacional e operacional, os retextualizadores dos textos de 2005 e 2007 são beneficiados

pelo tempo de trabalho na Câmara Municipal de Guarulhos devido ao convívio com os oradores43 e com os trâmites regimentais dos eventos da Edilidade.

 Propósito. O propósito da retextualização do material analisado é a elaboração de atas de sessões ordinárias da Câmara Municipal de Guarulhos. A variável “propósito” tem papel fundamental nos processos de retextualização, uma vez que o nível de intervenção do retextualizador depende daquilo a que se destina o material retextualizado. Na retextualização de textos produzidos no parlamento, por exemplo, há tratamento diferenciado para os eventos. O Manual de procedimentos nos dá prova disso:

A Taquigrafia tem como tarefa habitual a transcrição de fitas gravadas nas reuniões das comissões permanentes, audiências públicas, comissões parlamentares de inquérito e de estudos, reuniões de estudos, etc. O taquígrafo não deve ater-se somente à transcrição: deve observar a fidelidade e boa redação (exceto nas CPIs). (SÃO PAULO, 2002, p. 22) (grifo do manual).

No trecho acima, destaca-se o enunciado “e boa redação (exceto nas CPIs)”, em que se percebe a recomendação de tratamento diferente para as CPIs, para as quais não seria preciso “observar boa redação”, ou seja, entende-se que o nível de retextualização seja restrito nos textos produzidos nas CPIs. O Manual do Detaq também orienta para o tratamento diferenciado dos eventos retextualizados, como descrito no tópico em que tratamos dos manuais de procedimentos, em que está explícita a restrição a mudanças dos textos relativos às CPIs.

 Processos de formulação. Na Câmara Municipal de Guarulhos, a maioria dos discursos é formulada de improviso. Isso favorece a presença de maior quantidade de elementos característicos da fala (repetições, autocorreções, hesitações, digressões etc) e a frouxidão do discurso no tocante a aspectos formais. Van Dijk atesta esse fato:

Os debates parlamentares são públicos, oficiais. Isso significa que ambos, conteúdo e estilo, são estritamente controlados, especialmente nos discursos escritos. Há menos formalidade no debate espontâneo, com grande variação de acordo com os países. Na França tais debates podem ser acalorados, com muitas interrupções e muitos estilos retóricos, diferentemente da Holanda e da Espanha, onde os debates parlamentares são formais e polidos. (VAN DIJK, 2008, p. 153)

Informados os procedimentos de análise, feitas as considerações sobre o gênero textual ata e descrita a constituição do corpus, passaremos agora à análise. Ressalvamos que

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O convívio com os oradores contribui para a qualidade da retextualização não só pelo hábito à pronúncia como também pelo conhecimento da ideologia do orador, das áreas geográfica e temática de sua atuação, de seu estilo oratório e do vocabulário que costuma utilizar, ou seja, o conhecimento partilhado é um dos princípios da boa retextualização.

não é nossa intenção fazer uma análise exaustiva do corpus, já que a multiplicidade de fatores que envolvem os discursos parlamentares e sua retextualização inviabilizam qualquer pretensão nesse sentido.