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CAPITULO VI: AS PALAVRAS QUE RECORTAM O COTIDIANO ESCOLAR:

6.6 Procedimentos metodológicos

6.6.1 O Registro dos depoimentos

Os depoimentos de alunos, professores ouvintes e educadores surdos foram gravados em áudio em duas etapas: no final do ano letivo de 2002 e em meados de 2004, para complementação de informações já que esses registros se revelaram fundamentais para o propósito desse estudo tornando-se a base de toda a reflexão aqui desenvolvida. Ao todo são vinte e um depoimentos: dez referentes aos alunos, nove relativos aos professores ouvintes e dois dos educadores surdos.

Quanto aos alunos, em 2002, os registros foram gerados tendo como ponto de partida as seguintes perguntas:

Conte um momento significativo de aprendizagem do português. Como você se sente quando está lendo ou escrevendo?

O que você acha que te ajuda a aprender português?

Como você se sente quando você sabe a matéria, mas você vai ser cobrado por escrito e não em língua de sinais?

Essas perguntas foram elaboradas por mim em parceria com duas professoras da turma - a professora de língua de sinais e a professora de inglês com a qual já havia trabalhado por vários anos no projeto de português como segunda língua no INES. Escolhi essas duas profissionais para pensar comigo as perguntas por duas razões: a professora surda pelo conhecimento que tem dos surdos, da própria turma e da língua de sinais poderia me ajudar a construir perguntas significativas para eles e também teria condições de avaliar as possibilidades de tradução de uma língua para outra, o que poderia facilitar depois o trabalho de tradução simultânea realizado por ela para esta pesquisa; e a professora de inglês por nossas afinidades profissionais certamente seria uma ótima parceira para pensar questões pertinentes a essa pesquisa.

As entrevistas foram realizadas com cada aluno individualmente, em uma sala de aula do INES, no horário em que esses alunos freqüentam a escola – à noite. Aproveitei dias de prova, janelas do horário, dias de Conselho de Classe para não forçar a ausência dos alunos em sala de aula. Em pouquíssimos casos, solicitei ao professor que estava dando aula para a turma a dispensa de um aluno para entrevista. E quando isso foi necessário, me certifiquei com o professor se haveria algum prejuízo na rotina escolar.

Com exceção de dois alunos, que não quiseram participar, os demais colaboraram com muito interesse. Não tive problema algum para realizar essa atividade. Dez dos doze alunos fizeram questão de dar seus depoimentos participando com muita seriedade. Era notório o valor que atribuíram a essa oportunidade, comparecendo no local e na hora marcada, afirmando terem prazer em participar. Houve momentos em que alunos que já tinham dado seus depoimentos pediam para assistir os depoimentos dos outros, no que foram atendidos.

Cada aluno foi entrevistado por mim através da professora surda que fez as perguntas em língua de sinais e a tradução simultânea das respostas em português gravada em áudio.

Aqui cabe uma consideração especial sobre o trabalho de tradução e a escolha da intérprete69. Coerentemente com a visão de linguagem seguida em todo esse estudo, apóio- me na concepção de tradução de Arrojo (2002: 22, 23) segundo a qual

“traduzir não pode ser meramente o transporte, ou a transferência de significados estáveis de uma língua para outra, porque o próprio significado de uma palavra, ou de um texto, na língua de partida, somente poderá ser determinado, provisoriamente, através de uma leitura.”

Como gesto de leitura, a tradução é um ato de interpretação e como tal se constitui na produção de significados determinados por fatores da história pessoal, social e coletiva de seu intérprete. Sendo assim cada tradução, ao exigir do tradutor “a capacidade de confrontar áreas específicas de duas línguas e duas culturas diferentes” (Arrojo, 2002: 78)

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Os intérpretes de língua de sinais no Brasil são pessoas ouvintes que aprenderam a língua informalmente e/ou através dos cursos da FENEIS. Ainda não há no país curso superior para formação de tradutor e intérprete de LIBRAS. Novas definições para essa atividade encontram-se no texto dodecreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamentou o decreto-lei nº 10436, sancionado em 24 de abril de 2002, a partir do qual a LIBRAS passou a ser reconhecida como sistema lingüístico próprio das pessoas surdas do Brasil.

será sempre um embate único, não podendo esse trabalho, como defende a autora, ser prescrito por fórmulas infalíveis.

Assumindo essa visão de tradução, escolhi trabalhar com uma pessoa surda bilíngüe por vários motivos: sua alta proficiência em LIBRAS, sua experiência como coordenadora dos cursos de intérprete da FENEIS, sua forte inserção na comunidade surda do Rio de Janeiro, além de ser professora de língua de sinais da turma com a qual mantinha um ótimo relacionamento. Todos esses fatores reunidos, a meu ver, deixariam os alunos mais à vontade durante a gravação e mais seguros de que suas falas seriam compreendidas.

Quanto aos professores ouvintes, diferentemente do procedimento adotado com os alunos, não propus nenhuma pergunta; apenas lhes pedi que falassem de suas impressões sobre os alunos desta classe e a respeito do trabalho desenvolvido ao longo do ano. Todos se dispuseram a prestar seus depoimentos com muito boa vontade e interesse. A receptividade bastante positiva dos professores rendeu de um modo geral longos relatos. Tive a impressão de que se sentiram mais do que à vontade, parecia que tinham muita necessidade de falar sobre o assunto. Pareceu-me também que se sentiram valorizados por estarem sendo ouvidos, considerados, convidados a falar.

É conveniente lembrar que a escola não promove muitos espaços de reflexão. Não há reuniões pedagógicas gerais que envolvam todo o corpo docente e nos encontros obrigatórios previstos na carga horária do professor não há a participação dos responsáveis pela direção e coordenação pedagógica. Esses espaços são as reuniões semanais por equipe de cada disciplina com duração de dois tempos de 45 minutos em horário contrário ao que o professor leciona e os conselhos de classe bimestrais organizados por segmento escolar em cada turno em que se dá a avaliação de todas as turmas do mesmo. Como são muitas turmas a serem tratadas em um único momento, esses encontros não são suficientes para reflexão e encaminhamento de problemas ou de projetos. Em geral, pelo que vivi como professora, e a pesquisa de campo confirmou, os conselhos de classe tendem à burocratização: praticamente só se fala de notas. E quando alguém levanta alguma questão mais relevante, há um certo descrédito no ar talvez porque os encaminhamentos dos conselhos anteriores dificilmente são atendidos, sobretudo no turno da noite caracterizado por todos como um turno abandonado. Há uma história de desconsideração, descaso. As queixas se acumulam e se repetem. Os professores falam entre si para si mesmos. Há uma

profunda sensação de solidão. Para quem se dirigem suas vozes? Como transformar a catarse, como em geral se observa nesses momentos, em reflexão de tópicos relevantes ao trabalho pedagógico?

Nesse contexto, creio que valorizar a voz do professor ganha um significado especial. A oportunidade de se sentir legitimado para opinar, avaliar e falar de suas aflições com liberdade certamente instigou o interesse dos professores em colaborar com a pesquisa.

Um outro aspecto que, a meu ver, contribuiu para que os professores se sentissem à vontade para participarem dessa pesquisa pode estar relacionado ao fato de que sou professora da instituição desde 1991 e portanto além de colega, compartilho há muito tempo o mesmo contexto de trabalho. As dificuldades, as angústias, as inúmeras perguntas sem resposta, inquietações e frustrações fazem parte do meu / nosso cotidiano profissional. Além de professora, faz parte de minha história na instituição ter dirigido um de seus departamentos e ter participado da primeira consulta para escolha da direção geral, em 1998, encabeçando a lista tríplice, mas impedida de assumir, fato já mencionado no capítulo I.

A proximidade entre nós ainda se torna mais intensa pois, como esses professores, leciono no turno da noite em que funcionam a Educação de Jovens e Adultos e parte do Ensino Médio, cursos que recebem alunos adultos assolados pela pobreza, subempregos e desemprego, como ocorre em todas as escolas públicas que oferecem cursos noturnos.

Familiarizada com os professores, com o contexto escolar geral e específico em que a pesquisa estava sendo realizada, minha solicitação de que falassem livremente sobre a turma foi atendida na maioria dos casos com tranqüilidade.

A princípio havia pensado uma conversa coletiva com os professores, mas além da dificuldade de encontrar um horário comum a todos, alguns não apreciaram essa idéia; afirmaram a preferência por encontros individuais aproveitando algum tempo livre no horário de trabalho na instituição.

Utilizamos em comum acordo tempos livres em que o professor não estava dando aula para uma de suas diferentes turmas. Como são todos professores horistas, há às vezes as chamadas janelas – um ou mais tempos vagos de sua carga horária. Outro recurso foi aproveitar momentos em que o professor já havia concluído a aplicação de provas ou sua

participação em conselho de classe já que as entrevistas foram realizadas no fechamento do quarto bimestre.

Em apenas um caso, a pedido da professora, o depoimento não foi registrado na escola. A professora de português me solicitou que gravasse seu relato em sua casa, pois se sentiria mais tranqüila, mais à vontade. E também propôs a participação de uma outra professora de português da escola, nossa parceira de muitas lutas relacionadas ao ensino de português como segunda língua na instituição, que no ano dessa pesquisa não integrava mais a equipe de língua portuguesa; fora deslocada, contra sua vontade, para dar aula de inglês, inaugurando a disciplina no currículo da escola, pois era a única docente do quadro efetivo com formação acadêmica para assumir a disciplina.

A participação dessa colega na entrevista da professora de português ajudou a descontraí-la que em relação aos demais me pareceu a mais tensa. Afinal foram as suas aulas que freqüentei e filmei o ano. Era natural que se sentisse mais exposta que os outros.

Houve ainda outros relatos que se deram na presença de outro professor da turma. A professora de ciências e um dos professores de informática chegaram quase na mesma hora para dar seus depoimentos e, consultados por mim, não se importaram em falar um diante do outro. Já as professoras de inglês e história resolveram espontaneamente dar seus depoimentos juntas no horário que havia sido combinado com a primeira.

6.6.2 Filmagens em vídeo das aulas de português

Para gerar registros em uma sala de aula em que todos se comunicam em uma língua visual-espacial, é fundamental a utilização de filmagem. Nenhum outro meio técnico pode substituir essa estratégia já que todos os diálogos ocorrem através de expressão facial e configurações de mão que são componentes formacionais da língua de sinais. Essa foi, portanto, a principal razão das filmagens para esta pesquisa.

As filmagens das aulas de português foram realizadas por mim ao longo do ano letivo de 2002. Com exceção dos dias de prova, datas de conselho de classe e dos quinze dias em que substituí a professora de português dando aula em seu lugar, procurei fazer o máximo possível de registros, devidamente autorizada pelos alunos e pela escola. Essa atividade, porém, nem sempre ocorreu sem problemas. Por não ter filmadora, operei com

equipamento cedido pela instituição, o qual em diversos momentos não estava disponível, apesar de meu agendamento prévio. Por essas razões o material gravado em vídeo totaliza apenas cerca de trinta e três horas correspondentes às aulas de português em duas turmas: a turma de sexta série escolhida pela professora e sua outra turma do segundo ano do ensino médio. Esta última, embora não fosse o foco da pesquisa, esteve o tempo todo interessando a professora que me convidou várias vezes para que eu assistisse e filmasse essas aulas também.

Uma última consideração sobre as filmagens diz respeito a aspectos técnicos. Como só havia uma filmadora, tive que escolher determinados ângulos em detrimento de outros, já que é impossível uma única câmera registrar todas as cenas que ocorrem ao mesmo tempo. Tive, portanto, que estabelecer alguns critérios de acordo com a situação. Exemplificando, em alguns momentos a câmera privilegia a interação entre os alunos quando eles estão discutindo o significado de uma palavra, frase; em outras ocasiões, o foco está no monitor explicando um conceito para a turma. Isto é, tive que fazer escolhas no momento exato em que as cenas ocorriam, dada a impossibilidade de gravar o todo. O que orientou minhas opções o tempo todo foi a tentativa de registrar possíveis estratégias de ensino e de aprendizagem que pudessem posteriormente apontar pistas para a discussão do ensino de português no contexto dessa instituição.

6.6.3 Transcrição das gravações em áudio e vídeo

Aqui cabe uma consideração importante sobre a transcrição das fitas de áudio e vídeo traduzidas de LIBRAS para o português pela intérprete com quem trabalhei todo o tempo que era a professora de língua de sinais da turma, como já mencionado. Optei por transcrever suas traduções tal como ela verbalizou. Não vou usar aqui os padrões já existentes de transcrição da língua de sinais, pois o objetivo da pesquisa realizada não foi a análise dessa língua propriamente dita. Escolhi, então, trabalhar com a tradução em português das falas dos sujeitos surdos – alunos e monitor – pois o que está em foco nesse estudo são suas concepções e opiniões e não a análise gramatical ou do uso de língua de sinais.

CAPÍTULO VII : A PALAVRA “DADA” E AS POSSIBILIDADES DE OUTROS