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PROCESSO COLETIVO, BREVE HISTÓRICO E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS PECULIARES

A preocupação com a proliferação de demandas individuais, provocando, dentre outros males, a repetição desnecessária de instruções e julgamentos a respeito de objetos semelhantes ou mesmo idênticos, o que, além de atravancar a atividade jurisdicional, também potencializa a ocorrência de decisões contraditórias, gerando insatisfação do jurisdicionado e descrédito do Poder Judiciário1,

acentuou a preocupação com a efetividade da tutela jurisdicional.

Cappelletti2, nos idos de 1970, já registrava que a concepção tradicional do processo civil não

deixava espaço para a proteção dos direitos difusos.

O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema.

As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas de interesses difusos intentadas por particulares. A par do afirmado, basta conferir o art. 6º do CPC/1973, pois, em regra, somente é possível atuar em juízo na defesa de um direito próprio.

Por tais motivos, a regulamentação das ações coletivas se mostrou necessária. Analisando a obra de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes3, podemos observar que a defesa judicial dos

interesses coletivos, no Brasil, passa, numa primeira etapa, pelo surgimento de leis extravagantes e dispersas, que previam a possibilidade de certas entidades e organizações ajuizarem, em nome  próprio, ações para a defesa de direitos coletivos ou individuais alheios.

A Constituição da República de 1934, no art. 113, item 38, estatuiu que “qualquer cidadão será  parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da

União, dos Estados e dos Municípios”.

Era a chamada “ação popular”, que, em seguida, seria suprimida pela Carta de 1937, mas, reintroduzida em 1946, para se manter, a partir de então, em todas as Constituições, até os dias de hoje. Todavia, a ação popular ganhou amplitude significativamente maior apenas com a sua regulamentação, que veio a ocorrer em 1965, com a edição da Lei 4.717, de 29 de junho.

O ideal democrático no Brasil se aflorava. Propostas de participação popular, de preocupação com o meio ambiente, de fortalecimento e surgimento de novos direitos foram apresentadas. O Ministério Público começa a assumir nova postura diante da sociedade, chamando para si outras responsabilidades, além da tradicional persecução penal e proteção de incapazes. São aprovadas a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e a Lei Orgânica do Mistério Público, prevendo a legitimidade do Parquet , respectivamente, para promover a propositura de ação de responsabilidade  por danos causados ao meio ambiente e a ação civil pública, nos termos da lei.

A Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, disciplina a ação civil pública de responsabilidade por  danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Três anos depois, ocorre o coroamento da redemocratização no Brasil, com a promulgação da CR/1988, traduzindo os valores sociais, dedicando nítida relevância para a proteção jurisdicional dos interesses coletivos, manifesta em diversos dispositivos normativos.

O Código do Consumidor passou a representar o modelo estrutural para as ações coletivas no Brasil, na medida em que encontra aplicabilidade não apenas para os processos relacionados com a  proteção do consumidor em juízo, mas, também, em geral para a defesa dos diretos e interesses

difusos, coletivos e individuais homogêneos, por determinação expressa do art. 21 da Lei 7.347/1985, acrescentado em razão do art. 117 da Lei 8.078/1990.

Tal lei regulou os aspectos mais importantes da tutela jurisdicional coletiva, desde a  problemática da competência e da legitimação até a execução, passando pela coisa julgada e seus

efeitos, além da questão da litispendência e das definições conceituais pertinentes aos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Por fim, há que se constatar que as ações coletivas continuam sendo tratadas apenas por leis extravagantes, enquanto o CPC/1973 e o CPC/2015 praticamente nada regulam sobre o assunto, salvo a previsão genérica de legitimidade extraordinária, contida no art. 6º do CPC/1973 (art. 18 do CPC/2015).

Cumpre registrar que o CPC/2015 pretender regulamentar a conversão da ação individual em coletiva, contudo, o dispositivo foi vetado (art. 333), havendo quem concordasse com tal veto4.

de relevância social e •dificuldade de formação de litisconsórcio, pudesse qualquer legitimado para a ação civil pública requerer que uma determinada demanda individual fosse convertida em demanda coletiva.

Esta conversão não seria possível, porém, quando o direito social em questão fosse o individual homogêneo ou quando já tivesse sido iniciada a audiência de instrução e julgamento.

Outras situações que também não autorizariam a conversão ocorreriam quando já existisse  processo coletivo com idêntico propósito ou o juízo não tivesse competência para o processo

coletivo que viesse a ser formado.

Mas, nesses casos de conversão, previa o dispositivo que o requerente iria emendar a inicial apresentada, bem como que o demandado apresentaria resposta em 15 dias, ficando o autor  originário na condição de litisconsorte unitário ativo e dispensado de recolher qualquer outra despesa processual.

O dispositivo busca evitar a extinção da ação individual por ilegitimidade ativa, pois, a rigor, se tratava de ação pseudoindividual, onde uma ação individual pretende atingir efeitos coletivos.  Não se pode esquecer que o indivíduo, como sujeito de direitos, pode ser analisado como titular 

individual ou como membro da coletividade e, nessa última hipótese, não possui legitimidade para demandar em juízo, pois o direito não é individual.

 Não me parece que o dispositivo vetado seria subversivo ao sistema das tutelas coletivas e desnecessário para a ordem jurídica5, pois poderia ser aproveitada a ação individual, evitando-se,

inclusive, a multiplicidade de processos.

O STJ 6, inclusive, já decidiu que “ajuizada ação coletiva atinente à macrolide geradora de

 processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva”.

Por outro lado, cumpre registrar que o art. 139, X, do CPC/2015 já determina que, na hipótese de o juiz se deparar com processos que potencialmente caracterizam uma lesão social, deverá oficiar  aos legitimados para o processo coletivo para que tenham ciência desta circunstância e adotem as  providências necessárias cabíveis.

O Direito Processual Civil precisa, assim, incorporar ao seu principal texto legislativo as conquistas já realizadas para que seja inserido nas normas pertinentes ao processo coletivo. Seria, dessa forma, a oportunidade para que se avançasse na sistematização das regras voltadas para as ações coletivas, almejando que os instrumentos hoje existentes sejam aperfeiçoados, obtendo-se resultados geralmente mais positivos para o acesso à justiça, para a economia judiciária e para a melhoria da prestação jurisdicional7.

 Nesse sentido, uma grande tendência da processualística moderna é o uso das ações coletivas, reduzindo quantitativamente o número de ações “padrão” e melhorando qualitativamente a prestação

São inúmeros os benefícios trazidos pelas ações coletivas, dentre os quais podemos citar uma maior segurança jurídica para os litigantes, por não estarem sozinhos na lide; questões que não seriam demandadas por ninguém no Judiciário, pois não haveriam titulares determinados, podem ser  demandadas pela coletividade previamente estabelecida por lei, pois existem lesões que individualmente são quase que irrisórias, todavia, para um todo tem um significado maior.

Assim, um mecanismo que seja capaz de reduzir a quantidade de demandas, indubitavelmente, representará um avanço na prestação jurisdicional, o que tem sido, a todo momento, objeto de incansáveis mudanças legislativas, como a trazida pela Lei Federal 11.448/2007, que ampliou a legitimidade para a ação civil pública, inserindo no rol do art. 5º da Lei 7.347/1985 a Defensoria Pública.

 Não se olvide que tem sido uma tendência do sistema processual brasileiro buscar ampliar a legitimação para a propositura de ação civil pública, sob a influência da doutrina mais especializada no tema8. Não obstante o Brasil, no campo do processo coletivo, possuir farta legislação, com

inúmeros instrumentos aptos a proteger os interesses coletivos (ação popular, ação civil pública, mandado de segurança coletivo etc.)9, existem propostas de um Código Brasileiro de Processo

Coletivo (CBPC), tendo por finalidade compilar, em um Código próprio, as ações coletivas em geral.

Só para ilustrar o acima referido sobre a ampliação do prisma coletivo sobre o enfoque individual, podemos citar vários mecanismos constantes no processo individual que buscam uma solução coletiva, institutos esses trazidos em reformas legislativas, como o art. 285-A (julgamento liminar de mérito em processos repetitivos), o art. 518, § 1º (súmula impeditiva de recursos) e a repercussão geral (art. 543-A do CPC/1973).

De igual modo, o Novo CPC amplia, ainda mais, tais institutos, como o tão propalado incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976 do CPC/2015), no qual de imediato se firmaria um  precedente para ser seguido.

 Nesse sentido, o referido Código Brasileiro de Processo Coletivo prevê para a defesa dos direitos e dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos todas as espécies de ações e de  provimentos capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela, vindo a revogar, por exemplo, na

íntegra, a Lei de Ação Civil Pública, bem como várias regras processuais de outros Códigos, entre outros, o Código de Defesa do Consumidor (art. 53 do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo).

De forma simples e efetiva, o Código proposto disciplina os pressupostos processuais e as condições de ação coletiva, bem como sua adequada representatividade e a criação de órgãos udiciários especializados próprios para julgamento, além de resolver a polêmica quanto è conexão, à continência, à litispendência e ao sistema integrado entre ação coletiva e ação individual.

1.

diversos dispositivos, proporcionando um maior e melhor gerenciamento da demanda pelo juiz, em  busca da efetividade da tutela jurisdicional, minimizando os efeitos, muitas vezes distorcidos, da  preclusão, da disposição e da eventualidade10.

TEORIA DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA E O PROCESSO COLETIVO

Feitas tais considerações, retornando para o tema a que nos dispusemos, a prova no anteprojeto  para o CBPC vem disposta de forma interessante, em notória adoção da teoria ora defendida.

A mesma regra vem tratada no Projeto do Código Modelo de Processo Coletivo do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual11.

O modelo brasileiro proposto não é diferente, na essência, do modelo Ibero-Americano. Até  porque as razões deste repousam em texto originalmente proposto por Ada Pellegrini Grinover,

KazuoWatanabe e Antônio Gidi12.

O ponto de maior relevo para o presente trabalho é, sem dúvida, a nítida adoção da teoria dinâmica do ônus da prova, ao afirmar que incumbe à parte que detiver melhores conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos ou maior facilidade em sua demonstração.

De igual modo, adota expressamente a ideia que se trata de uma regra de procedimento, não de ulgamento, prestigiando o devido processo legal, principalmente o contraditório. Os redatores, atentos ao contraditório, até porque é mandamento constitucional, impõem ao magistrado que esta  produção seja realizada na decisão saneadora, pois é na decisão saneadora que serão fixados os  pontos controvertidos e que será determinada às partes a produção das provas necessárias. Logo, o ulgador atento ao interesse público das ações coletivas, porque trarão resultado para uma grande quantidade de indivíduos, deverá buscá-las.

Todavia, pela natureza pública das ações coletivas, o sistema privado não mais satisfaz o Direito, pois, a partir do momento que se permite que um legitimado proponha a ação coletiva em  benefício da coletividade, não pode o juiz julgar improcedente o pedido apenas porque a parte não  produziu as provas necessárias, até porque talvez não tenha condições para tanto. Não se trata, como  pode aparentar, da inversão do ônus da prova, já prevista na Defesa dos Consumidores.

Cediço que em relação aos consumidores presume-se a hipossuficiência destes em face aos fornecedores, todavia, tal premissa não pode ser adotada nas ações coletivas, pelo menos como regra.

Até pode haver uma ação coletiva em que haverá a desproporcionalidade de forças, porém, o importante é a diligência do magistrado, que detém o nobre poder de julgar e de conduzir o processo e a instrução probatória. Ao perceber que uma prova seria mais fácil de ser produzida pela outra  parte, deverá o juiz determinar que esta parte produza a referida prova.

 preclusões, eis que, havendo no curso da instrução uma modificação de fato ou de direito relevante  para o julgamento da causa, poderá o juiz rever a distribuição do ônus da prova, motivando a sua

decisão, fixando prazo razoável para a produção da prova, em nítido prestígio ao contraditório.

De igual modo, o anteprojeto deixa bem claro que o juiz tem liberdade na determinação de  produção de provas, podendo, inclusive, buscar a prova que entender necessária ao seu

convencimento, independentemente de esta atuação ser ou não subsidiária a dos litigantes.

Todavia, a essa atividade inquisitorial é imposto o respeito ao contraditório, concedendo prazo razoável para a produção probatória, observado o contraditório à parte contrária13.

Assim, resta claro que o interesse público, através do devido processo legal imposto pela Constituição, deve se sobrepor à preclusão, não devendo, sequer, o processo ser extinto sem resolução de mérito por falta de provas.

Com esse objetivo, o CBPC, além de clamar pela necessidade de uma nova normatização, almeja mais um passo na construção de um verdadeiro acesso à justiça. A mudança, em nossa opinião, deve ser adotada não só no código coletivo, mas no sistema normativo individual, aplicando-se a teoria dinâmica em todos os processos.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13  __________ 

FONSECA NETO, Ubirajara da; ALMEIDA, Marcelo, Pereira de; e CHAVES, Roberto Monteiro. Curso de Direito Processual  Civil: tutela coletiva e o fenômeno do acesso à justiça . Coordenação: Adriano Moura da Fonseca Pinto. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2007, p. 3.

CAPPELLETTI, Mauro; e GARTH, Bryant.  Acesso à justiça. Tradução brasileira de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 49.

MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro.  Ações coletivas no Direito comparado e nacional . Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil. Vol. 4. São Paulo: RT, 2002, p. 191, et seq., apud   BERNÁRDEZ, José Antonio Ocampo.  A teoria da carga dinâmica da prova como forma de acesso à justiça e efetividade da tutela jurisdicional . Dissertação de mestrado em Direito (Universidade Estácio de Sá), 2006, p. 97-98.

HARTMANN, Rodolfo. O Novo CPC (Lei nº 13.105/2015) e os seus vetos. Disponível em: < www.conjur.com.br >. Acesso em: 25 mar. 2015.

HARTMANN, Rodolfo. O Novo CPC (Lei nº 13.105/2015) e os seus vetos. Fonte: www.conjur.com.br , acessado em 25.03.2015. STJ, 2ª S., REsp 1.110.549/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 28.10.2009.

MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro.  Ações coletivas no Direito comparado e nacional . Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 2002. Vol. 4. p. 191, et seq, apud   BERNÁRDEZ, José Antonio Ocampo.  A teoria da carga dinâmica da prova como forma de acesso à justiça e efetividade da tutela jurisdicional . Dissertação de mestrado em Direito (Universidade Estácio de Sá), 2006, p. 97-98.

PINTO, Adriano Moura da Fonseca; LUCAS, Isabella Pena; ALMEIDA, Marcelo Pereira de; e FONSECA NETO, Ubirajara da.  Na marcha da reforma processual : comentários às Leis 11.382/06; 11.417/06; 11.418/06; 11.419/06; 11.441/07; 11.448/07 e outras

anotações. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2007, p. 125.

“Não se sabe de outra legislação com o acervo tão rico e multifário, que modifica o seu figurino tradicional, de roupagem individual- conservadora, para identificar-se com as aspirações contemporâneas de igualdade real e de efetivo acesso a uma Justiça justa, rápida e eficaz.” (TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A reforma processual na perspectiva de uma nova justiça.  Reforma do Código de Processo Civil . Coordenação: Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 888)

Comentário haurido de GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo.  Direito  Processual coletivo e o anteprojeto brasileiro de processos coletivos . Coordenação: Ada Pellegrini Grinover, Aluísio Gonçalves

de Castro Mendes e KazuoWatanabe. São Paulo: RT, 2007, p. 78.

A redação final do Código Modelo, aprovado em outubro de 2004, contou com a participação dos brasileiros Ada Pellegrini Grinover, Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, Antonio Gidi e Kazuo Watanabe.

R. SJRJ, Rio de Janeiro, n. 12, 2004, p. 19-126.

RODRIGUES, Marcelo Abelha.  Direito Processual coletivo e o anteprojeto brasileiro de processos coletivos . Coordenação: Ada Pellegrini Grinover, Aluísio Gonçalves de Castro Mendes e Kazuo Watanabe. São Paulo: RT, 2007, p. 250.

i) ii)

iii)

CONCLUSÃO

Ao longo de toda obra procurou-se investigar a distribuição do ônus adotado no Direito  brasileiro, buscando uma melhor forma de compatibilizar o art. 333 do CPC/1973 com a ordem

constitucional. Conforme exaustivamente abordado, algumas ideias merecem destaque:

Ao se buscar uma correta prestação jurisdicional, visando a sua efetividade, a questão  probatória ganha ares centrais.

O Judiciário, data venia, não pode ignorar a gravidade de se atribuir procedência ou improcedência a uma pretensão, por mero apego a formalidades abstratamente construídas, em um juízo de incerteza, até porque o sistema processual é um meio, um instrumento, de realização da justiça e esta não pode ser sacrificada por conta de meras formalidades. São muitas as desigualdades inerentes ao ser humano, o ônus da prova não pode ser um fator de agravamento dessas desigualdades, pelo contrário, seu objetivo deve ser, no mínimo, amenizá-las.

A coisa julgada, como mecanismo de segurança jurídica, liga-se diretamente à prova. Se o escopo político da coisa julgada é trazer segurança jurídica, à prova tem que ser dado o devido importe, pois, sem ela ou com a sua indevida distribuição, o objetivo principal da função jurisdicional será frustrado. Do contrário, a “relativização” da coisa julgada  prevista para os processos coletivos, quando julgados com base non liquet , pelo art. 333

(vide art. 18 da Lei 4.717/1965; art. 16 da Lei 7.347/1985; art. 103, I e II, da Lei 8.078/1990), a denominada coisa julgada  secundum eventum littis, deveria ser estendida aos processos individuais, desativando a sua imutabilidade, sob pena de grave descumprimento do acesso à justiça.

iv) Existem diversas situações de direito material que exigem para a formação do convencimento judicial uma maior sensibilidade do magistrado, flexibilizando a regra do art. 333 do CPC/1973. Sem, por óbvio, termos a pretensão de exaurir as hipóteses, vejamos alguns casos:

a) lesões pré-natais:  a prova de que a doença do recém-nascido deriva do acidente que a sua mãe sofreu quando em gestação1, não pode ser dela exigida, para a procedência da ação ressarcitória;

b) atividades perigosas ou de responsabilidade pelo perigo:   tal hipótese não pode ser tratada como as outras, pois, guarda inúmeras peculiaridades, não podendo do autor se exigir a prova da causalidade entre a atividade e o dano;

c) responsabilidade por violação de dever legal:   de igual modo, ao autor não pode ser imposta prova do nexo entre a violação do dever legal e o dano sofrido;

d) hipóteses, como a ventilada no REsp 316.316/PR:   na qual a participante de um bingo em um clube afirmava ter   preenchido todos os algarismos de sua cartela, quando faltou energia elétrica que ocasionou uma falha no sistema eletrônico,

tendo o clube continuado com o sorteio sem computar os números da autora da demanda. O ministro Ruy Rosado aplicou a teoria dinâmica, para que o réu comprovasse que a autora não estava entre as pessoas sorteadas, não aplicando a inversão do ônus da prova, até por que não tínhamos uma relação de consumo e, como cediço, majoritariamente, a inversão só se aplica nessas relações;

e) a piscina de um clube que não informou ser inadequada para pessoas que não sabiam nadar 2: o autor da ação indenizatória afirma que a vítima morreu afogada, o clube afirma que a vítima morreu de colapso. A perícia não conseguiu  provar uma coisa ou outra. Não se trata de relação de consumo. Diante de tal situação de incerteza probatória, ao réu deve

ser direcionado o ônus da inexistência do fato constitutivo do autor, demonstrando que em suas instalações existem claras informações sobre o perigo de afogamento;

 f) responsabilidade profissional:   sendo hipótese de responsabilidade subjetiva, aplicável ao médico, ao dentista, ao engenheiro etc. Ações decorrentes da prestação direta e pessoal pelo médico, na condição de profissional liberal, a prova da culpa não é fácil de ser produzida, pois a solidariedade e o corporativismo profissional ainda predominam, e geralmente se  busca isentar o colega demandado. Nesse sentido, o profissional da saúde, bem como sua equipe, deverão realizar a prova de

que não agiram com culpa3;

 g) hipóteses de doenças preexistentes:  uma pessoa contrata um plano de saúde e, posteriormente, vê negado o custeio, pela operadora do plano, de algum tratamento, sob o fundamento de que a doença é preexistente à celebração do contrato. A quem

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