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PROCESSO DE HOSPITALIZAÇÃO E O BRINCAR NA ASSISTÊNCIA DA CRIANÇA EM SITUAÇÃO

No documento V.28 (2) abril-junho 2014 (páginas 87-91)

ARTIGO ESPECIAL

PROCESSO DE HOSPITALIZAÇÃO E O BRINCAR NA ASSISTÊNCIA DA CRIANÇA EM SITUAÇÃO

DE ESCALPELAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES

O tratamento do escalpelamento demanda um tempo considerável de internação, representando uma

ruptura do contexto sociocultural e familiar da criança. Essas rupturas afetam não só a criança, mas também seus familiares que, por sua vez, têm sua rotina alterada, pre

-cisando se afastar do lar, se dividindo entre os cuidados com a criança hospitalizada e as demandas da família. O

hospital passa a ser um novo contexto sociocultural da

família. Com o cuidado exigido pela criança hospitalizada, os familiares geralmente têm dificuldades para gerenciar as

obrigações e compromissos que assumem, especialmente

relacionados ao trabalho. Há uma maior dificuldade em conciliar o cuidado aos outros filhos e a atenção à criança

hospitalizada17. Rearranjos e reorganizações da vida e

da estrutura familiar passam a ser necessários devido ao

tratamento.

Silva18 aponta os seguintes aspectos enfrentados por familiares e crianças no processo e hospitalização:

dor, incapacidades e outros sintomas vividos pela criança no adoecimento; submissão a exames, por vezes a proce-dimentos invasivos e dolorosos; o relacionamento com

a equipe de saúde; a ameaça da perda; e a própria rotina

hospitalar, horários determinados para realização de me-dicação, banho e alimentação; a dieta que é brutalmente

modificada; dentre outros que implicam em modificação/

criação de novos hábitos.

As rupturas do contexto sociocultural e ocupacio-nal representam um problema latente na vida das crianças

em situação de escalpelamento e de suas famílias. Com

o passar do tempo, as consequências causadas por estas rupturas tornam-se, para equipe de saúde, um dos mais relevantes pontos do tratamento.

O profissional de saúde percebe que, para a criança, é difícil entender e aceitar que além de tamanho sofrimento físico, imposto pelos ferimentos e mutilações,

ela ainda tenha que ser privada da convivência com sua

família; de se alimentar das comidas que gosta e com quais

está acostumada; a brincar com seus brinquedos pessoais e

habituais, enfim, de se ver distante de todo seu cotidiano.

Durante a internação, a criança também estará sujeita a

perda da individualidade, ocasionada muitas vezes pela

forma de tratamento no contexto hospitalar.

O contexto hospitalar apesar de possuir diversos

efeitos negativos para a criança, também pode

configurar-se num espaço de descobertas, de novas experiências, de desenvolvimento de novas habilidades ou resgatar pecu-liaridades do seu cotidiano.

Telmo19 afirma que a criança é o conjunto de suas

experiências vividas nos diversos espaços sociais, e expres-sa sua crença, seus valores e sua visão do mundo a partir do brincar. No processo de hospitalização, a criança depara-se

com o desconhecido: os procedimentos; os profissionais; até os próprios brinquedos, muitos industrializados, são

inseridos nas suas brincadeiras neste momento. No en-tanto, mesmo com essas adversidades, o brincar possibilita

que a criança resgate sua historia, sua memória e a base do seu grupo; por mais que a forma da brincadeira não seja a mesma, na maioria das vezes, devido aos objetos que foram

ou que estão sendo, ou que serão manipulados

consistirem-se diferentes. O significado que a criança atribui à brin

-cadeira pode ser o mesmo. Logo, falar do brincar implica em compreender e possibilitar novas formas de participar

do contexto em que se encontra inserida, agregando novos

sentidos e significados.

O brincar, na Terapia Ocupacional, se insere no contexto da relação terapêutica, onde é compreendido e observado na tríade (terapeuta-criança-atividade) como

experiência fundamental para o desenvolvimento global

da criança20.

Para a Associação Americana de Terapia Ocupa-cional (AOTA)21, o profissional de Terapia Ocupacional facilita o engajamento em ocupações para dar suporte à

participação do indivíduo no contexto ou em contextos.

Dessa forma, quando se destaca a atuação deste profissional

no contexto hospitalar, percebe-se que suas intervenções estão voltadas para a promoção da saúde e no engajamento em suas ocupações cotidianas. O terapeuta ocupacional terá que assistir não apenas essas crianças, mas também

sua família, orientando sobre os aspectos da patologia, tratamento e prognóstico no que tange os fatores físicos

e psicossociais. O processo do tratamento demanda do terapeuta ocupacional, entre outros aspectos, intervenções

no campo da reabilitação física das áreas lesionadas e a

minimização das consequências causadas pela ruptura do contexto sociocultural e ocupacional.

Levando em consideração que a ocupação

principal na infância é o brincar e a mesma encontra-se diretamente influenciada e enraizada por fatores sociais

ocupacional se apropria desta ação significativa e, indepen

-dente do contexto que ela esteja inserida, este profissional

busca resgatar estes aspectos determinadores. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao considerar o brincar enquanto instrumento

terapêutico ocupacional, favorecemos a (re)significação

ocupacional da criança ribeirinha em situação de escalpela-mento e hospitalização. Entende-se que o acompanhaescalpela-mento nos casos de escalpelamento implica em um longo processo de hospitalização, que por sua vez causa mudanças do ambiente de origem para uma nova realidade, a hospitalar,

repleta de normas que acarretam modificações da reali

-zação de suas ocupações, dentre elas, o próprio brincar.

O brincar envolve a espontaneidade e a criati-vidade, elementos característicos de um viver criativo,

auto curativo, terapêutico e configura-se como sinal de saúde. Em suma, o brincar no hospital é uma forma da

criança lidar criativamente com a sua realidade22. Nessa perspectiva, o brincar aparece como uma possibilidade

de expressão de sentimentos, preferências, receios e hábitos; mediação entre o mundo familiar e situações

novas ou ameaçadoras; e elaboração de experiências des-conhecidas ou desagradáveis23. Para que isto aconteça,

faz-se necessário que reconheçamos que cada criança partilha de uma cultura lúdica. Essa cultura é formada

a partir da introjeção de regras oriundas do meio social

que são particularizadas pelo indivíduo24.

A promoção do brincar na hospitalização infantil pode facilitar a continuidade da experiência de vida da pessoa internada. Para além desse significado percebido,

propomos que o brincar nesse ambiente também seja um espaço revelador da normatividade social na qual essa

criança se insere. Dessa forma, a equipe de profissionais

de saúde disporia de um instrumento capaz de olhar para

além do substrato físico e psíquico da doença, buscando seus significados ulteriores, inscritos numa ordem biop -sicossocial.

A experiência também nos aponta para a possibili-dade da promoção do brincar no espaço da hospitalização

infantil como facilitador de uma dinâmica de interações que (re)significa suas experiências vividas e o seu próprio

brincar dentro do hospital.

Assim, considera-se o brincar essencial para

promover a (re)significação do fazer ocupacional, onde a Terapia Ocupacional, por meio do próprio brincar da crian

-ça escalpelada, pode proporcionar um novo significado para a experiência hospitalar, ajudando-a à enfrentar suas

angústias e medos, a reestruturar as rupturas causadas pela hospitalização nas várias dimensões de sua vida e ajudá-la numa maior adesão ao tratamento, minimizando assim seu tempo de permanência no hospital, que deixa de ser um ambiente hostil e passa a ser uma experiência

potencial-mente enriquecedora e significativa para a criança.

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Endereço para correspondência

Rua Augusto Corrêa, 01 – Universidade Federal do Pará, Setor Profissional, Saúde, Faculdade de Fisioterapia e Terapia Ocupacio -nal- Belém- Pará

Telefones: (91)8806-9889,

e-mail: victorcavaleiro@gmail.com

No documento V.28 (2) abril-junho 2014 (páginas 87-91)

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