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PROCESSOS DE RUMINAÇÃO: UM DEVIR-NIETZSCHE COMO METODOLOGIA DA PESQUISA EDUCACIONAL

CAPÍTULO II ESCOLHAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS: PENSANDO COM O PENSADOR DE TODAS AS SOLIDÕES

2.1 PROCESSOS DE RUMINAÇÃO: UM DEVIR-NIETZSCHE COMO METODOLOGIA DA PESQUISA EDUCACIONAL

Podemos dizer que Nietzsche está presente nos estudos foucaultianos como uma inspiração metodológica e um instrumento de trabalho perspectivista13, ao modo de fazer filosofia. Em Microfísica do Poder (2013) ao se referir a Nietzsche, Foucault escreve:

Hoje fico mudo quando se trata de Nietzsche ... Se fosse pretencioso, daria como título geral ao que faço ‘Genealogia da Moral’ ... Nietzsche é aquele que ofereceu como alvo essencial, digamos ao discurso filosófico, a relação do poder. A presença de Nietzsche é cada vez mais importante. Mas me cansa a atenção que lhe é dada para fazer sobre ele os mesmos comentários que se fez ou se fará a Hegel ou Mallarmé. Quanto a mim, os autores que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar... Que os comentadores digam se é ou não fiel isto não tem o menor interesse. (p.143).

A partir desta descrição, o filósofo francês demonstra que não está interessado em realizar um empreendimento historiográfico ou tão somente interpretativo dos textos do pensador alemão, embora este último seja uma parte relevante para o trabalho que desenvolve. A fidelidade atribuída à Nietzsche por Foucault concentra-se em converter seus conceitos em ferramentas de trabalho, isto é, o movimento filosófico de apropriação, utilização e de atualização dos conceitos com vistas a “[...] situar sua voz no presente, abrindo, dessa forma, novas e múltiplas possibilidades de interpretação e de ferramentalização de seus escritos” (OPRALLO, 2005, p. 8). Assumimos, pois, uma postura frente aos estudos foucaultianos procurando “ser fiel infielmente, conforme o próprio Foucault esperava que fossem aqueles que escolhessem utilizá-lo”, sendo essa “[...] uma forma produtiva de compreender o presente,

13 Nietzsche não admite antíteses em sua filosofia: os duplos, luz e sombra, justo e injusto, saúde e doença, morte e vida, bem e mal, por exemplo, não são admitidos como polos diferentes. Essas dualidades são, para ele, participantes de um mesmo novelo: a vida (OPRALLO, 2005, p. 177). Dai decorre o caráter perspectivista de sua filosofia, sendo que privar o conhecer de uma visão perspectiva nada mais seria do que “castrar o intelecto” (NIETZSCHE, GM, III, 12).

as linhas de força que o atravessam e os modos de vida que o caracteriza” (MENEZES, 2011, p. 36).

Tendo isso em vista é válido lembrarmos a diferenciação feita por Foucault entre o que significa ser influenciado pelo pensamento de outrem e se apropriar do pensamento de outrem. Apropriar-se de um conceito implica um “voltar-se a si mesmo”, uma espécie de dobra no pensamento provocada pelo ato de atualizarmos e adaptarmos o pensamento de outros ao nosso modo próprio de pensar, visando o estudo e diagnóstico do tempo presente. À luz dessa compreensão, incorporamos em nossa pesquisa, a analogia de que conceitos e teorias são como caixas de ferramentas com as quais devemos utilizar, trabalhar, pô-las em operação. A respeito desse assunto, Deleuze em diálogo com Foucault, em Intelectuais e o

Poder, sublinha que:

Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada e que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas... A teoria não totaliza, a teoria se multiplica e multiplica. (FOUCAULT, 2013, p. 71).

É neste sentido e não em nenhum outro que dizemos que Nietzsche se apresenta ao pensamento de Foucault como um “modelo”, uma “metodologia” para o desenvolvimento das suas pesquisas. É válido, contudo, ressaltar, como sugere Veiga-Neto (2007), que ao se tratar de Foucault, essa palavra “metodologia” deve ser cercada de ressalvas, visto que “[...] é preciso dar a ela uma conotação bastante menos rígida do que a tradição moderna vem fazendo de Descartes para cá” (p. 37).

Assim, “[...] quando falamos de um ‘modelo Nietzsche’, portanto, não devemos entender o modelo no sentido platônico, ou seja, como a relação entre um paradigma e sua imitação, mas como um trabalho diferencial, descentralizado e relacional” (OPRALLO, 2005, p. 9). Tratar Nietzsche como modelo significa, portanto, pôr em operação a tarefa filosófica de fazer seu pensamento “ruminar”.

Buscaremos situar, então, com auxílio da dissertação de mestrado de Maria Cristina Oprallo, intitulada A presença de Nietzsche no discurso de Foucault (2005), o que seria o “Modelo Nietzsche” como uma metodologia para orientação de trabalhos empíricos que surge como inversão do “Modelo Platão” e de toda tradição racionalista da filosofia ocidental. Essa compreensão nos permitirá apresentar, de modo mais concreto, o que estamos chamando de “processos de ruminação”. Isto implicará, em última instância, em uma nova maneira de pensar e se relacionar com a história e com a filosofia, sem que haja subordinação de uma a

outra, justamente o que Nietzsche entendia como sendo tarefa da/do genealogista. Isto é, uma tarefa “[...] empenhada em desenvolver uma história do pensamento humano a partir da história das práticas discursivas, bem como, considerar essa história sem regularidades, linearidades e continuidades” (OPRALLO, 2005, p. 17).

O “Modelo Platão” ou a noção platônica de metodologia remonta a uma ideia de

metodologia que será fortemente combatida por Foucault, uma vez que apresenta uma reflexão a respeito de como devemos compreender e fazer história operando a partir da interpretação, da semelhança e da analogia, marginalizando sempre as diferenças (OPRALLO, 2005, p. 19). Além disso, o “Modelo Platão” pode ser descrito a partir de conceitos-chaves, quais sejam, “origem, finalidade, verdade, conhecimento e sujeito do conhecimento” que fundamentam uma maneira de pensar a história e a filosofia desde a metafísica.

Podemos dizer, portanto, que o “Modelo Platão” nos orienta à busca pelas origens; pelas causas de um acontecimento histórico as quais permitirão, por sua vez, que se trace uma trajetória linear de tais acontecimentos sendo que sejamos capazes de determinar-lhes também finalidades. Desse modo, o sujeito que se lança em uma pesquisa que busca pelas causas, pela origem de um acontecimento e consegue determinar-lhe fins específicos, apossa-se da verdade do acontecimento e torna-se, assim, um sujeito que conhece: sujeito do conhecimento.

No modelo platônico, o começo histórico é pensado como uma espécie de fundamento, contendo em germe uma sucessão de eventos. Assim, a descoberta da origem já é, de alguma maneira, a antecipação e compreensão do significado de um período histórico determinado. A origem seria, nessa concepção, um marco inicial que sustenta toda a série de eventos completos e fechados em si mesmos. (OPRALLO, 2005, p. 20).

A noção de verdade aparece, pois, nessa grade de leitura como correspondência, conformidade ou adequação entre o que se diz de um objeto e sua essência. Como trataremos a seguir, todos esses conceitos fundamentais de “origem, finalidade, verdade, conhecimento e sujeito do conhecimento” sofrerão uma inversão 14

no “Modelo Nietzsche”, o qual serve de inspiração para Michel Foucault, no desenvolvimento de seus estudos, sobretudo, aqueles nos quais se debruça sobre o poder.

Tal inversão se dá no movimento de retirar dos eventos históricos a busca pela essência, pela verdade única e centralizada. Conforme Oprallo (2005, p. 25), “[...] a inversão

do platonismo visa principalmente os questionamentos permanentes, a ‘ruminação’ como tarefa filosófica fundamental, operando sempre com as descentralizações discursivas”.

O Modelo Nietzsche nos oferece, então, duas possibilidades complementares: modos de compreender e fazer história e filosofia. No que tange a dimensão da história, a genealogia aparece como grade de leitura, que inversamente ao modelo platônico, recusará a finalidade, a linearidade e a compreensão da origem e destacará a verdade como uma produção histórica, o conhecimento como invenção e o sujeito que conhece como fabricação proveniente de regimes discursivos.

Já no âmbito do fazer filosófico, teremos o processo de ruminação como operação fundamental, o qual se refere ao processo permanente de apropriação e atualização do pensamento de outrem. Fazer um pensamento ruminar, não se trata mais de tomar uma autora ou um autor para exclusivamente realizar exegese de seu pensamento, mas sim, utilizá-la/o como possibilidade de superação, de modificação, de invenção, de torná-lo um porvir.

O filósofo do porvir [...] que sabe direcionar suas forças para somar e não para subtrair e, principalmente, é aquele que não tem a preocupação de definir, nem de erigir sistemas, mas que questiona, diagnostica os riscos e perigos, “problematiza”; é este o filósofo desprovido de amarras, situado para ‘além do bem e do mal’, aquele que ‘elege, concede, confia, fareja, sabe esquecer’ [...] capaz de superar seu tempo, “seu romantismo”, com mão bastante para deslocar perspectivas e “usar o machado para cortar pela raiz a necessidade metafísica”. (OPRALLO, 2005, p. 173).

Diz Nietzsche, no Prólogo de Genealogia da Moral (2001), que faltaria ao homem moderno na arte da leitura, as qualidades bovinas do processo de wiederkäuer – ruminação. Com essa afirmação ele nos apresenta a compreensão de um fazer e pensar filosófico que demanda do sujeito a apropriação de conceitos e teorias, com vistas a pensar o tempo presente. Tal processo de apropriação se concentra no ato de mastigar e remastigar, engolir e regurgitar os conceitos de outrem. De modo que seja possível, portanto, “vomitar” um pensamento atualizado e genuinamente novo.

Encontramos nesse processo uma possibilidade real de não recairmos e ficarmos somente na tradição da leitura, repetição e comentário de textos filosóficos. Nietzsche está trazendo à tona aquilo que mais tarde será retomado por Foucault e Deleuze: a importância e a necessidade da invenção e da criação no modo em que nos relacionamos com a filosofia, com o filosofar e com sua tradição.

Dessa forma, o pensar filosófico só pode ser compreendido como perspectivo ao ser relacionado com o pensamento da diferença, “a experimentação constante do tentar pensar de outra maneira”, a inserção do questionamento permanente neste eterno presente, feito acontecimento, inscrito no “talvez”. (OPRALLO, 2005, p. 65).

Processos de ruminação como um devir-Nietzsche à pesquisa, significa, pois, o movimento de se apropriar e pôr em operação conceitos que não são nossos e que, no entanto, são passíveis de um tornar-se à medida que os usamos como instrumentos para pensar as questões de nosso tempo que nos afetam, que nos instigam, que nos inquietam e que nos movimentam.

Trata-se, antes de tudo, do movimento de abrir a caixa de ferramentas e compreender as teorias como convites ou “ideias forças” (GALLO, 2015) para se pensar com elas. Esmagar, dobrar, esticar, tramar os conceitos; fazê-los ser, como pensava Nietzsche, um eterno porvir.

O filósofo do porvir, descrito por Nietzsche, será, para Foucault, aquele que analisa as configurações de forças presente no “instante”, diagnostica a saúde ou a doença da atualidade problematizando seus sintomas, é capaz de girar o caleidoscópio repetidamente aceitando seu jogo sempre diferente, aleatório contingente, selecionando seu retorno pela via labiríntica. (OPRALLO, 2005, p. 66).

Assim ao pensar na trama histórica que produz regimes discursivos de verdade que constituem os processos de subjetivação que conduzem este ou aquele modo de compreender e se relacionar com a filosofia e seu ensino, buscamos ruminar os estudos foucaultianos, com a finalidade de compreender os acontecimentos em suas descontinuidades, em suas rupturas e dispersões, construindo possibilidades de sermos outra coisa diferentemente daquilo que estávamos sendo e pensando.

Desenvolvemos, deste modo, uma pesquisa de cunho “mercurial” conforme escreve Foucault, em A Ordem do discurso (2010). Mercurial porque desmonta “[...] a soberania do significante” (FOUCAULT, 2010, p. 70), por não procurar compreender os acontecimentos como um jogo de causas e efeitos na esteira linear da história; por ousar não pensar com as noções de sujeito fundante, continuidade e estrutura, e, portanto, por ousar sacudir o primado da Verdade e de seus universalismos. Importa destacar que no pensamento foucaultiano não existe a verdade, visto que, verdade é sempre histórica, territorializada, construída e produzida dentro dos limites e possibilidades de enunciação do discurso.

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças à múltiplas coerções e nele

produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ele acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2013, p. 35, grifo nosso).

É sabido que é impossível reunir em uma unidade o mercúrio que cai sobre o chão, se esparrama e se divide em incontáveis partes. Dele só é possível catar alguns pontos e mesmo assim, estes pontos, uma vez que tocados, se dividirão novamente em outras tantas partes. Desse modo, no processo de coleta de pontos de mercúrio a posição de quem os “cata” se apresenta como um fator fundamental, de maneira que, outra pessoa, posicionada em outro local poderá catar outros tantos pontos do mesmo mercúrio e todos serão igualmente mercúrio. Assim, pois, pensamos nossa pesquisa. As lentes teórico-metodológicas utilizadas permitirão captar alguns pontos de emergência sobre os interesses da pesquisa. Contudo, sempre haverá inesgotáveis possibilidades de leitura e compreensão desse mesmo tema. Nossa pesquisa se apresenta como um caminho dentre tantos outros possíveis, e, portanto, não se esgota em si mesma. Nela escolhemos deixar de correr em linha reta pelas ruas de clareira; escolhemos passear pelas esquinas cinzas do acaso, dos encontros, das afecções, das descontinuidades, das dispersões, dos devires.

Para andar por esses caminhos descontínuos se fez necessário um empreendimento de estudos de reconfiguração da ontologia. O pensamento iconoclasta de Michel Foucault abriu possibilidades para desencantá-la, devolvendo-lhe uma historicidade presentificada. Por isso, na seção seguinte, nos concentraremos em delinear contornos sobre a genealogia nietzschiana que serve de inspiração para Foucault desenvolver seus estudos genealógicos.

2.2 A RECUSA DA PESQUISA DAS ORIGENS: DESENCANTANDO A ONTOLOGIA