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A RECUSA DA PESQUISA DAS ORIGENS: DESENCANTANDO A ONTOLOGIA COM NIETZSCHE E FOUCAULT

CAPÍTULO II ESCOLHAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS: PENSANDO COM O PENSADOR DE TODAS AS SOLIDÕES

2.2 A RECUSA DA PESQUISA DAS ORIGENS: DESENCANTANDO A ONTOLOGIA COM NIETZSCHE E FOUCAULT

[...] Pois é óbvio que uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da moral: o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente havido [...]. (NIETZSCHE, 2001, p. 7).

Foucault toma o conceito de genealogia emprestado de Nietzsche como “método” para desenvolver seus estudos sobre o poder15. Nietzsche chega à compreensão de genealogia percorrendo um caminho em que distingue História, Filosofia da História e Filosofia Histórica – esta última que será mais tarde denominada por ele de genealogia.

A filosofia histórica aparece para Nietzsche como uma alternativa de fazer história unindo história e filosofia sem que haja subordinação de uma à outra16

. Também a filosofia

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O domínio genealógico dos estudos de Michel Foucault, de acordo com Veiga-Neto (2007, p. 55) “[...] tem início com A ordem do discurso (1971), e vai até o primeiro volume de História da Sexualidade – a vontade de saber (1976), passando por Vigiar e Punir: uma história das prisões (1975)”.

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A referência ao pensamento de Nietzsche é algo central nos textos de Foucault. Esse ponto da filosofia nietzschiana que trata sobre um modo de fazer história (a genealogia) sem a subordinação da história à filosofia,

histórica ou genealogia deve recusar buscar fora do mundo da vida as suas “fundamentações”. Portanto, a genealogia nietzschiana é a recusa de qualquer projeto metafísico na busca de essências, isto é, das “[...] origens originalmente originais” (VEIGA-NETO, 2007, p. 57).

O filósofo alemão nas obras Humano Demasiado Humano (2001), Genealogia da

Moral (2001) e A gaia ciência (2001), distingue alguns termos que serão conceitos chaves

para o desenvolvimento do “método genealógico”17

, sendo eles: Ursprüng (origem); Herkunft (proveniência) e Entestehung (emergência).

Foucault (2013) se opondo à compreensão da história como busca da “origem” – assim como fizera Nietzsche – afirma que “[...] procurar uma origem é tentar reencontrar o que era imediatamente o aquilo mesmo de uma imagem exatamente adequada de si [...] é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira” (p.58). Deste modo, retoma os termos Ursprüng, Herkunft e Entestehung, a fim de demonstrar que na genealogia, que se ocupa em “[...] descrever a antítese das essências, o que se tem de fazer é mapear as proveniências (Herkunft), na forma de condições de possibilidades para a emergência (Entestehung) do que é dito, pensado e feito” (FOUCAULT, 1999a, p. 14).

Herkunft designa proveniência e é admitida primeiramente como uma relação que

possibilita demarcar os indivíduos de uma mesma estirpe. Em segundo lugar, ela se refere à proliferação dos acontecimentos, à exterioridade dos acidentes dos percursos históricos. Desse modo, a proveniência permite ao genealogista realizar a demarcação “[...] desses acidentes, dos desvios, das inversões, dos erros, das falhas de apreciação, dos maus cálculos que foram responsáveis por tudo que vem de nós” (OPRALLO, 2000, p. 29). Quanto a isso, Foucault (2013) diz que:

Lá onde a alma pretende se unificar, lá onde o Eu inventa para si uma identidade ou uma coerência, o genealogista parte em busca do começo – dos começos inumeráveis que deixam esta suspeita de cor, esta marca quase apagada que não saberia enganar um olho, por pouco histórico que seja; a análise da proveniência permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares e recantos de sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos. (p. 62).

e vice-versa, é uma questão que Foucault irá incorporar de modo substancial em seus estudos. Nesse sentido, é importante lembrar que no pensamento do filósofo francês, sujeito, verdade e discurso são acontecimentos históricos que nos permitem realizar uma “ontologia do presente”.

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A propósito da expressão método, é importante notar algumas observações que Veiga-Neto aponta: “[...] a rigor, não existe algum método foucaultiano, a menos que se tome a palavra método num sentido bem mais livre do que os sentidos que lhe deu o pensamento moderno, principalmente a partir de Ramus e Descartes. Se entendermos ‘método’, então, como uma certa forma de interrogação e um conjunto de estratégias analíticas de descrição, podemos dizer que a arqueologia e a genealogia são mesmo métodos [...] que Foucault tomou emprestado de Nietzsche para desenvolver suas análise históricas. (VEIGA-NETO, 2007, p. 17).

Nesse sentido, a genealogia não se propõe “[...] trazer o passado para o presente” (OPRALLO, 2000, p. 29), senão buscar agitar o terreno movediço, heterogêneo e fissurado da história:

A proveniência permite também reencontrar, sobe o aspecto único de um caráter ou de um conceito, a proliferação dos acontecimentos através dos quais (graças aos quais, contra os quais) eles se formaram. A genealogia não pretende recuar no tempo para reestabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando-o em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos uma forma bem delineada desde o início. (FOUCAULT, 2013, p. 62-63).

Mapear as proveniências significa “[...] descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos não existe a verdade e o ser, mas a exterioridade e o acidente” (idem, p. 63). Significa também, romper com a aparente dualidade da primazia do sujeito racional, que há séculos insiste em negar o corpo como fonte de conhecimento.

O corpo: superfície da inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está, portanto, no ponto de articulação do corpo com a

história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história

arruinando o corpo. (FOUCAULT, 2013, p. 66, grifo nosso).

A Entestehung, por sua vez “[...] designa de preferência emergência, o ponto de surgimento. É o princípio e a lei singular de um aparecimento” (FOUCAULT, 2013, p. 65). Dessa maneira, Entestehung pode ser também compreendida como origem, caso atribuamos ao termo “origem” um significado bem menos duro daquele legado pela tradição desde o “Modelo Platão”. A respeito disso, poderíamos dizer que origem como ponto de surgimento, de aparecimento e de erupção de um dado acontecimento é o que caracterizaria a Entestehung, algo bastante distante, portanto, da procura metafísica pelas “origens originalmente originais”.

A emergência se produz sempre em um determinado estado de forças. A análise da Herkunft deve mostrar seu jogo, a maneira como elas lutam umas com as outras, o seu combate ante circunstâncias adversas, ou ainda a tentativa que elas fazem – se dividindo – para escapar da degenerescência e recobrar o vigor a partir do próprio enfraquecimento [...]A emergência é, portanto, a entrada em cena das forças; é sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua juventude. (FOUCAULT, 2013, p. 67).

Sendo assim, conduzir a pesquisa a partir de um olhar genealógico requer que busquemos mapear as proveniências que se caracterizam como condições de possibilidades de emergência para os discursos que foram conduzindo modos de ser professora-estagiária/o de filosofia na UFSM. Discursos esses, que em sua trama histórica se articulam num jogo complexo de forças que se inscrevem em termos de relação de saber-poder. Assim, a análise

de discurso dos arquivos que compõe essa pesquisa, se dá em um processo necessário, demorado e que não se preocupa com a previsibilidade e linearidade. Isso, tendo em vista que, “[...] a genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” (FOUCAULT, 2013, p. 55).

De acordo com Foucault (2005b, p. 142), “[...] o exercício do poder cria perpetuamente saber, e o saber acarreta efeitos de poder de modo que não é possível que o poder se exerça sem saber, e não é possível que o saber não engendre o poder”. Devemos considerar, contudo, que esse poder exercido pelo saber não se trata de um poder repressor e sim produtor de práticas, sujeitos e por fim, da própria realidade: “[...] o poder longe de impedir o saber, o produz” (ibidem, p. 148).

Foucault nos mostra que em uma sociedade há regimes de verdade que qualificam e acolhem determinados discursos como sendo verdadeiros, de modo que, é preciso reconhecer esse regime interno ao discurso para compreender as discursividades que são acolhidas e que se fazem circular por ele como verdadeiras. Esse regime de verdade pode ser descrito como uma vontade de verdade que institui aquilo que pode ser dito e pensado em uma determinada época.

Tendo isso em vista, nossa pesquisa se ocupa em compreender os regimes discursivos de verdade que qualificam e acolhem os discursos verdadeiros sobre filosofar e sobre a tradição filosófica. Isso nos permite compreender, ainda que temporariamente, as discursividades que são acolhidas no espaço formativo do Curso de Licenciatura em Filosofia da UFSM e que circulam como se estivessem desde sempre aí no mundo, conduzindo as relações estabelecidas pelas estagiárias e pelos estagiários com a filosofia e seu ensino e produzindo, assim, tipos de sujeitos-professoras/es-estagiárias/os de filosofia.

Não existe verdade fora do poder, ou verdade sem poder (FOUCAULT, 2013, p. 51); há sempre um jogo de forças em combate “pela verdade”, em torno de um estatuto do verdadeiro e do papel econômico-político que os regimes de verdade desempenham. E no quesito da delimitação dos regimes discursivos, a disciplina exerce um papel fundamental, sobretudo a partir de um instrumento disciplinar que ela comporta, o exame.

O exame opera mecanismos de seleção, separação e classificação dos discursos, desenvolvendo hierarquias e estatutos pedagógicos aos saberes, pondo em circulação regimes de verdade. Em um regime discursivo de produção de verdades, no entanto, o que existe são vontades de verdade, como dissemos anteriormente, um desejo de saber que circula nos discursos. Desse modo, em Foucault, “[...] a verdade está circularmente ligada a sistemas de

poder, que a produzem e a apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a produzem. Regimes da verdade” (FOUCAULT, 2013, p. 55).

Diz-nos Foucault,

[...] que a verdade como relâmpago, não nos espera onde temos paciência de emboscá-la e habilidade de surpreendê-la, mas que tem instantes propícios, lugares privilegiados, não só para sair da sombra como realmente se produzir. Se existe uma geografia da verdade, é a dos espaços onde reside, e não simplesmente a dos lugares onde nos colocamos para melhor observá-la. Sua cronologia é a das conjunções que lhe permitem se produzir como acontecimento, e não a dos momentos que devem ser aproveitados para percebê-la, como por entre nuvens. Poderíamos encontrar na nossa história toda uma tecnologia da verdade: levantamento de suas localizações, calendário de suas ocasiões, saber dos rituais no meio dos quais se produz. (2013, p. 192).

Em face do exposto, dizemos que a tecnologia disciplinar em operação no campo do saber possibilita a emergência discursiva de um conjunto de regras, de estratégias, de procedimentos, de articulações, que permitem, a partir de rituais da palavra, a produção do acontecimento “verdade”. Por isso, escolhemos trabalhar com a caixa de ferramentas de Michel Foucault18

para conduzir uma análise que se pretende histórica sobre os regimes de verdade, as discursividades, as proveniências enquanto condições de emergência dos discursos sobre a filosofia e seu ensino como prática e como saber, que produzem um determinado tipo de sujeito-professora-estagiária/o.

Para isso, no próximo capítulo, intitulado Estágio Curricular Supervisionado em

Filosofia e os zumbidos de uma tradição formativa, começamos a realizar o empreendimento

analítico dessa pesquisa. Iniciamos situando alguns aspectos da história da consolidação do Estágio Curricular Supervisionado até se tornar um saber autônomo e independente nas políticas curriculares dos cursos de formação de professores. Relacionaremos essa história de constituição e consolidação com a atual configuração, do ponto de vista de um saber, do Estágio Curricular Supervisionado em Filosofia. Assim, passamos a demonstrar e problematizar, a partir de fragmentos dos Projetos e Relatórios de Estágio, materialidade dessa pesquisa, os discursos sobre o ECS que são assumidos, resgatados, utilizados pelas estagiárias e estagiários na elaboração e fundamentação de suas práticas de estágio de docência.

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Recupera-se a expressão do artigo Utilizando algumas ferramentas da caixa de ferramentas de Michel Foucault na pesquisa em educação, autoria de SILVA-MIGUEL & TOMAZETTI (2016).

CAPÍTULO III - ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO EM FILOSOFIA E