• Nenhum resultado encontrado

Produção teórica: enciclopédias, dicionários e manuais

No documento Genealogias da fundamentação em arquitectura (páginas 120-128)

Capítulo 2 Fundamentação epistemológica

2.3 Produção teórica: enciclopédias, dicionários e manuais

Até meados do séc.XVIII em França a antiga divisão das artes, em liberais e mecânicas ou úteis, mantinha-se. Assim, a arquitetura permanecia categorizada como uma arte útil, excluída das artes liberais ou belas-artes. Foi através da obra do abade Charles Batteux (1713-80), Les beaux-arts réduits à un même principe (1746), que pela primeira vez se procedeu à divisão entre belas artes e artes mecânicas. A estas acrescentou uma categoria intermédia entre «l’agréable» e «l’utile», na qual incluiu a retórica e a arquitetura.39 A divisão de Batteux ganhou proeminência, sendo que a arquitetura, no discurso preliminar da Encyclopédie de D’Alembert, surge já explicitamente incluída no grupo das belas-artes, pelo que o seu estudo teorico e a definição da sua terminologia conduziu a uma classificação e organização do respectivo discurso através de enciclopédias, dicionários e manuais que, como nas restantes áreas, substituiriam o conhecimento intelectual pessoal, conforme apresentado nos tratados ou ensaios filosóficos, com o objectivo de reunir e sistematizar o conhecimento disperso através de multiplas e interdisciplinates colaborações. Todos eles, de alguma forma, continham implícito um argumento e uma visão de transformação social e cultural baseada no racionalismo estrutural e unidade estilística, entendendo o passado como um instrumento crítico e positivo para o presente, e sobretudo para os estudantes.

Efetivamente, a produção teórica, até ao séc.XVII surge essencialmente sob a forma de tratado, tendo as enciclopédias, dicionários e manuais pouca expressão, à excepção do referido dicionário de Grapaldi. O Cours d’Architecture de N.F Blondel, publicado entre

39 A razão pela qual a arquitetura não se incluía no grupo das belas artes prendia-se com o facto de esta não ser considerada uma arte imitativa por natureza, como a poesia, a música, a dança, a pintura e a escultura. Esta era já uma questão antiga, que remontava ao ceticismo de Perrault sobre o carácter imitativo da arquitetura e que seria apenas desafiada por Quatremère, cujo tema da imitação foi central à teoria da arquitetura que desenvolveu.

1675 e 1683, inaugura de alguma forma e é representativo desta nova tradição teórica. A obra, composta por cinco volumes, compila os ensinamentos das suas aulas e apresenta a arquitetura como o desenvolvimento no sentido da perfetibilidade, adotando contudo uma posição conservadora quanto à autoridade da arquitetura antiga como modelo. A obra de Charles d’Aviler (1653-1701), por seu turno, já continha um dicionário — que correspondia ao segundo volume —, mas esta ainda considerava a arquitetura como uma arte utilitária que, tal como o seu desenho, que deveria simplesmente ser uma representação do projeto. d’Aviler divide a disciplina em duas partes: civil e hidráulica. Por sua vez, a arquitetura civil tinha três componentes: a “art du bâtiment”, a “art de la distribution”, e a “art de la décoration” (Fig. 2.11).

1612 Baldi, Bernardino: De verborum Vitruvianorum significatione.

Alemanha 1675-

83

Blondel, Nicolas-François: Cours d'Architecture França

1691 Aviler, Augustin Charles de: Cours d’architecture. vol. I: Cours d’architecture qui comprend les ordres de Vignole… vol. II: Dictionnaire d’Architecture ou explication de tous les termes.

França

1694 Corneille, Thomas: Dictionnaire des arts et des sciences. França

Fig. 2.11 Produção teórica na Europa sob a forma de enciclopédias, dicionários e manuais nos séculos XVI e XVII.

A partir desta altura, estes formatos aumentam exponencialmente e de forma mais sistemática (Fig. 2.12). As enciclopédias permitiam a classificação e catalogação do mundo material e arquitetónico, à semelhança do que acontecia nas ciências — por oposição à forma do tratado —, de uma série diversificada de temas, designadamente a catalogação de tipos arquitetónicos pelo seu uso. Os manuais constituíam-se como uma importante ferramenta didática para alunos e profissionais, de suporte ao ensino. O dicionário40 pretendia simultaneamente a construção de um vocabulário próprio da

40 O Dicionário tem uma história muito mais curta do que o Tratado, e os primeiros reduziam-se a definições limitadas de alguns termos técnicos, ao passo que nesta altura aumenta a sua componente teórica e histórica. Efetivamente, apesar de o dicionário se organizar através de uma listagem de termos organizados por ordem

disciplina, bem como a definição precisa de todos os seus termos, dando-lhes um nome próprio para evitar confusões, incluindo por vezes a sua própria etimologia, como no caso do Dictionnaire étymologique des termes d’architecture et autres termes qui y ont rapport

publicado por Denis-François Gastelier de la Tour (1709-81), em 1753. Outro objetivo de alguns destes dicionários era a explicitação de termos provenientes das ciências, cujo conhecimento era considerado, de alguma forma, imprescindível ao exercício da profissão, como acontecia, por exemplo no Dictionnaire portatif de l’ingénieur, où l’on explique les principaux termes des sciences les plus nécessaires à un ingénieur (1755) de Bernard Forest de Bélidor (1698-1761). Em 1770-71, C. F. Roland de Virloys (1716-72) procura substituir o dicionário de d’Aviler numa edição de três volumes ilustrados que pretendia abarcar toda a terminologia usada nos mais relevantes idiomas europeus: Dictionnaire d’architecture, civile, militaire et navale, antique, ancienne et moderne…dont tous Les Termes sont exprimés, en François, Latin, Italien, Espagnol, Anglais et Allemand, definindo entre outros termos — como correção, bom gosto, elegância, carácter, diversidade, expressão e perspetiva —, o desenho de arquitetura e as qualidades que deveria ter para que fosse “perfeito”.

1703 Neve, Richard: The City and Country Purchaser, and Builder’s Dictionary: or, the Compleat Builders Guide. (1726: 2ª edição revista e alargada).

Inglaterra

1714 Cordemoy, Jean-Louis: Dictionnaire de tous les termes d’architecture dont on s’est servi dans ce traité (integrante da nova versão de Nouveau traité de toute architecture de 1706)

França

1718 Sturm, Leonhard Christoph: Kurtze Vorstellung der gantzen Civil-Bau-Kunst.

Alemanha 1734 Toms, W. H. (William Henry); Devoto, John: The Builder’s Dictionary, or, Gentleman

and architect’s companion…

Inglaterra

1734 Aquino, Carlo d‘: Vocabularium architecturae aedificatoriae. Itália

1744 Penther, Johann Friedrich: Erster Theil einer ausführlichen Anleitung zur bürgerlichen Bau-Kunst enthaltend ein Lexicon Architekto-nicum…

Alemanha

1746 Marsy, François-Marie de: Dictionnaire abrégé de peinture et d’architecture. França alfabética, na verdade, a definição de cada um constituía verdadeiros ensaios teóricos, históricos e práticos, pelo que a escolha do seu formato residia simplesmente no facto deste simplificar a sua consulta.

1747 Blondel, Jaques-François:Discours sur la Manière d’étudier l’Architecture França

1752 Lacombe, Jacques: Dictionnaire portatif des beaux-arts, ou abrégé de ce qui concerne l´architecture, la sculpture, la peinture, la gravure, la poésie et la musique…

França

1752-56 Blondel, Jaques-François: L’Architecture Françoise França

1753 Gastelier de la Tour, Denis-François: Dictionnaire etymologique des termes d’architecture et autres termes qui y ont rapport.

França

1755 Bélidor, Bernard Forest de: Dictionnaire portatif de l’ingénieur, où l’on explique les principaux termes des sciences les plus nécessaires à un ingénieur.

França

1770-71 Roland Le Virloys, Charles F.: Dictionnaire d'architecture, civile, militaire et navale, antique, ancienne et moderne…

França

1771-77 Blondel, Jaques-François: Cours d’architecture França

1781 Voch, Lukas: Allgemeines Baulexicon, oder Erklärung der deutschen und französischen Kunstwörter, in der bürgerlichen, Kriegs- und Schiffbaukunst…

Alemanha

1792-98 Stieglitz, Christian Ludwig: Encyklopädie der bürgerlichen Baukunst, in welcher alle Fächer dieser Kunst nach alphabetischer Ordnung abgehandelt sind.

Alemanha

1788-1825 Quatremère de Quincy, Antoine Chrysostome: Encyclopédie méthodique, Dictionnaire d'Architecture.

França

1799-1801 Durand, J-N-L: Recueil et parallèle des édifices de tous genres, anciens et modernes… França

Fig. 2.12 Produção teórica na Europa sob a forma de enciclopédias, dicionários e manuais no séc.XVIII.

Mantendo a classificação do séc.XVIII de belas artes e artes mecânicas, Charles- Joseph Panckoucke (1736-98) encomenda, para a sua Encyclopédie Méthodique41, a

41 O seu título original era L'Encyclopédie méthodique ou par ordre de matières par une société de gens de

lettres, de savants et d'artistes; précédée d'un Vocabulaire universel, servant de Table pour tout l'Ouvrage, ornée des Portraits de MM. Diderot et d'Alembert, premiers Éditeurs de l'Encyclopédie, uma versão revista alargada e organizada por assuntos, da Encyclopédie, tendo contado com mais de 14 colaboradores. Esta integrava um conjunto de 26 temas (Matemática; Física; Medicina; Anatomia e Fisiologia; Cirurgia; Química e Farmácia; Agricultura; História Natural — Zoologia; Botânica; Mineralogia; Geografia Física; Geografia Antiga e Moderna; Antiguidades; História; Teologia; Filosofia; Metafísica; Lógica e Moral; Gramática e Literatura; Direito;

composição do Dictionnaire d'Architecture — em três volumes — a Quatremère42; e a Jacques Lacombe (1724-1811) os volumes consagrados às Arts et métiers Mécaniques. O primeiro volume do dicionário é publicado em 1788; o segundo, dividido em duas partes, respetivamente em 1801 e 1820; e o terceiro volume surge finalmente em 1825, perfazendo mais de 40 anos de investigação43. Em 1832 Quatremère publica uma versão alargada e revista em dois volumes, chamando-lhe Dictionnaire historique d’architecture, comprenant dans son plan les notions historiques, descriptives, archéologiques, biographiques, théoriques, didactiques et pratiques de cet art. Uma figura incontornável no debate artístico de toda a arquitetura oficial e académica francesa da época, Quatremère refere explicitamente no seu dicionário — cujas matérias se encontravam organizadas de acordo com critérios de natureza histórica, didática e prática —, que este não propõe regras, nem apresenta uma análise histórica, o que considera consagrado aos tratados, visando antes ser estudado pelos princípios que propõe, pois o que faltava aprofundar era a natureza teórica da arquitetura, aquela que revela os seus princípios e a sua essência, aí residindo o carácter inaugural do seu dicionário:

[…] todas as teorias têm como objetivo o ensino. Só se ensina aquilo que se pode provar. Só se prova à luz da razão ou inteligência. Pois, se pedirmos ao raciocínio que se encarregue de convencer o sentimento, este pedirá a explicação de cada uma das explicações, a prova de cada uma das provas. Em todos os assuntos existe um fim para todo o raciocínio, que a teoria deve respeitar, e que nós só tentaremos ultrapassar se formos

Finanças; Economia Política; Comércio; Marinha; Arte Militar; Belas Artes; Artes e Ofícios), perfazendo um total de 206 volumes, que foram sendo publicados entre 1782 e 1832.

42 É o ensaio que realiza em 1803, Mémoire sur l’architecture égyptienne, e cuja publicação duma versão revista quase 20 anos mais tarde sob o título De l’architecture égyptienne considérée dans son origine, ses principes et son goût, et comparée sous les mêmes rapports à la architecture grecque — baseado não na sua experiência, mas em descrições e desenhos de viagem de terceiros — e que lhe mereceu um prémio da Académie des Inscriptions et Belles-lettres, que chamará a atenção de Panckoucke, razão pela qual é convidado para escrever o Dictionnaire d’Architecture.

43 Os artigos relacionados com questões construtivas contaram com o contributo de J.-B. Rondelet, ao passo que J. N. Huyot e A. L. Castellan colaboraram com vários artigos no 3.º volume.

imprudentes. É aqui que reside o insolúvel. Além dele, não é possível passar. É a linha matemática. É, se quisermos, a região do mundo imaginário, onde o raciocínio nos abandona, onde mais ninguém nos poderá acompanhar. É também a região de Ícaro, onde as asas do espírito quase sempre o abandonam.44

Fig. 2.13 Primeiro volume do Dictionnaire d’Architecture de Quatremère de Quincy, integrante da Encyclopédie Méthodique

editada por C. J. Panckouke.

De acordo com Samir Younés, o influente Dictionnaire de Quatremère foi o trabalho mais completo até à data em língua francesa, pois enquadra o maior escopo teórico para a arquitetura e as artes plásticas, sendo que a sua autoridade deriva das profundas reflexões sobre a natureza e os objetivos da arquitetura, sobre os princípios que regem as suas regras, e nos papéis da imitação e invenção na tradição.45 Neste sentido, constitui-se como a referência em relação à qual outros teóricos vieram a posicionar-se, quer fosse em acordo quer em desacordo.

1802- 05

Durand, J-N-L: Précis des leçons d’architecture données à l’Ecole Polytechnique França

44 Trad. livre. QUINÇY, Quatremère de — De L’Imitation (1823). In KRIER, Léon [et.al.] (ed.) —. Bruxelles: Archives d'Architecture Moderne, 1980, p.254.

45 YOUNÉS, Samir — The True, the Fictive and the Real: The Historical Dictionary of Quatremére de Quincy. London: Papadakis Publisher, 1999, p.11.

1804 Grohmann, Johann Gottfried: Handwörterbuch über die bürgerliche Baukunst und schöne Gartenkunst, worin die Kunstwörter aller Fä-cher der erstern Kunst erklärt…

Alemanha

1810- 19

Weinbrenner, Friedrich: Architektonisches Lehrbuch Alemanha

1815- 17

Hoyer, Johann G. von: Allgemeines Wörterbuch der Kriegsbaukunst, welches die theoretische und praktische Darstellung aller Grundsätze und Lehren des Festungsbaues…

Alemanha

1819 Nicholson, Peter: An Architectural Dictionary, Containing a Correct Nomenclature and Derivations of the Terms Employed by Architects, Builders and Workmen.

Inglaterra

1830- 31

Bleichrodt, Wilhelm Günther: Architektonisches Lexikon oder allgemeine Real- Encyclopädie der gesammten architektonischen…

Alemanha

1832 Quatremère de Quincy, Antoine Chrysostome: Dictionnaire historique d’architecture comprenant dans son plan les notions historiques, descriptives, archaeo-logiques …

França

1838 Britton, John: A Dictionary of the Architecture and Archaeology of the Middle Ages. Inglaterra

1840 Vitry, Urbain: Dictionnaire portatif d’architecture civile et des arts qui en dépendent. França

1849- 50

Weale, John: Rudimentary Dictionary of Terms Used in Architecture, Building and Construction, Early and Ecclesiasti-cal Art. (1876: 5ª ed. revista)

Inglaterra

1850 Pasteur, Jan David: Bouwkundig Hand-Woordenboek, ten dienste van Ingenieurs, Architecten, Opzigters, Aannemers en verde-re Bouwkundigen. (2ª ed. revista e alargada)

Alemanha

1854- 68

Viollet-Le-Duc, Eugène Emmanuel: Dictionnaire raisonné de l'architecture française du XIe au XVe siècle

França

1858- 72

Viollet-Le-Duc, Eugène Emmanuel: Entretiens sur l'architecture. França

1872- 77

Mothes, Oscar: Illustrirtes Bau-Lexicon. (3ªed. revista) Alemanha

1877- 80

Bosc, Ernest: Dictionnaire raisonné d’architecture et des sciences et arts qui s’y rattachent.

França

1852- 92

The Dictionary of Architecture. Issued by the Architectural Publication Society. [Ed. W. Papworth.]

Inglaterra

1888 Planat, P.: Encyclopedie de l'architecture et de la construction. França

É também no séc.XIX que surgem as primeiras publicações periódicas consagradas à arquitetura, sobretudo em Inglaterra (Builder, AA’s Prospectus ou Brown Book, RIBA Journal Academy Architecture and Annual Architectural Review, Architectural Review, Architect’s Journal, The Studio46) e Estados Unidos da América (American Architect and Building

News, California Architect Building News, Architectural Record, Architectural Forum). Na Alemanha o primeiro periódico, ainda que de carácter mais técnico surge em 1867 com o nome Deutsche Bauzeitung. Em França, apesar de em meados do século ser publicada a

Revue generale de l’architecture et des travaux publics, esta teve uma curta duração, entre 1840 e 1853, sendo somente em 1920 que surgiria uma publicação revelante, L’Esprit Nouveau, editada por Le Corbusier e Ozenfant.

Fig. 2.15 Primeiro número da Architectural Review (1896).

46 A Architectural Review e a Architect’s Design surgem no mesmo ano e com a mesma editora, Emap Construct; de início inspiradas no movimento Arts & Crafts, em Ruskin e Pugin. Em 1900 a Architectural Review gabava-se de ser a única revista consagrada à arquitetura enquanto arte em Inglaterra.

No documento Genealogias da fundamentação em arquitectura (páginas 120-128)