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Produzindo diferenças: duas noções de povo

Capítulo 1 – “Eu posso me orgulhar de ter em cada homem do povo, um amigo, um

1.1 Produzindo diferenças: duas noções de povo

No passado, quando queria impressionar um político que chegava ao Recife, José Mariano convocava diretamente uma “massa enorme de povo” a acompanhá-lo. Após 15 de novembro, tendo em vista a sua derrocada, para fazê-lo seria obrigado a recorrer ao prestígio dos “verdadeiros abolicionistas” Barros Sobrinho, João Ramos e Numa Pompilio. Um republicano considerava esse argumento a última prova de que Mariano já não era popular e, portanto, aquela recepção a João Alfredo seria um grande fracasso173.

Entretanto, a afirmação de que a sua perda de prestígio junto ao povo decorreu das violências praticadas contra os republicanos por ele em 1889 não foi acompanhada de uma clara distinção entre esse povo e a multidão que o ajudou a praticar as violências. Mesmo assim se concluiu que o pretenso tribuno não estava preparado para lidar com uma época de verdadeiro “governo do povo pelo povo”, diferente daquela na qual funcionava a sua popularidade forjada:

As últimas esperanças dos sebastianistas em relação à volta dos belos tempos do marianismo vão se dissipando (...). E, se estamos no regime da ditadura, é a espada que brilha, a espada e não a faca de ponta; a arma defensora da pátria vibrada pelo braço do soldado inteligente e patriota e não a faca ou a navalha manejada pela mão do capoeira e do capanga exclusivamente em defesa dos seus interesses ou de quem melhor pagar174.

Sem o auxílio do capoeira e do capanga, o representante brasileiro na linhagem dos verdadeiros tribunos da história seria Silva Jardim e não José Mariano, que só se

173 A última prova IV. Diário de Pernambuco, 01/01/1890. Essa série de artigos é assinada apenas com um

xis.

174

Idem. A alusão a Dom Sebastião, rei de Portugal no século XVI, envolvia em uma aura de misticismo as presumidas pretensões de restauração da Monarquia no Brasil.

lembraria do povo na hora de aproveitar-se de sua ingenuidade para criar uma guarda pessoal175. O mote de que o antigo líder dos cachorros, como era chamada a sua facção liberal em oposição aos leões, abusou da “ignorância dos homens do povo, criando a guarda negra” remete aos dois significados que a categoria “povo” adquiria no discurso daqueles republicanos176. Um deles seria “o povo de José Mariano, isto é, o povo que assassina, o que corta a orelha, que provoca desordem, pois conta os heróis Nicolau, Rosendo, Ricardo, Bico-Doce, Boca de Velha, Mané Miau, Paula Neves, José da Benta, Bentinho, etc.”, contratados pelo major Francisco de Paula Mafra e outros177.

Diferente do “povo que pensa, quer, e sente”, esse existiria apenas em função dos benefícios, em geral pecuniários, concedidos individualmente às partes que o constituíam178. Apesar de eventualmente ser lamentada a exploração de sua ignorância pela astúcia de Mariano, na maioria das vezes o tom contra aquelas pessoas era verrinário, certamente na intenção de despertar o leitor para a ameaça que representavam “as iras furibundas de uma malta inconsciente”179

, composta por negros pobres, ignorantes e violentos.

Em um dos artigos publicados ainda em 1889 no jornal da Corte A República

Brasileira, Felício Buarque se atém particularmente a essa característica daquele povo,

conferindo-lhe centralidade na promoção de personalidades políticas. Segundo o autor, um dos muitos vícios do abolicionismo teria sido promover figuras nulas como Mariano, a quem acompanhava “esta a casta faminta que chamam por grossa hipérbole ‘povo’”, o que conferia um caráter de massas à defesa da Monarquia em Pernambuco:

A grande ralé popular (...) vai de rastros porque não tem consciência, vai de braços já que perdeu o direito de ser reta e firme em sua vontade. A grande canalha, amalgamada em um bolo, bestificada em sua entidade moral, e arruinada pela educação e pelo desleixo, a gentinha, que é sempre a mesma de todas as manifestações – é quem aclama o Sr. José Mariano180.

175 Tribuno de oitiva. Diário de Pernambuco, 24/04/1890. 176

A Verdade (documentos para a história) VI. Diário de Pernambuco, 08/12/1889.

177 Notas contemporâneas. Diário de Pernambuco, 14/12/1889. Não consegui obter nenhuma informação

consistente sobre se a designação de Cachorros era tomada como uma injúria por Mariano e seus aliados, até porque foi cada vez menos utilizada no início da República. De acordo com Silva Jardim, ela era recebida com orgulho por eles: JARDIM, Antônio da Silva, op. cit., p.390.

178 Notas Contemporâneas. Diário de Pernambuco, 14/12/1889. 179 O Cabeleira em Ação. Diário de Pernambuco, 10/04/1890.

180 Transcrito em: Os ídolos. Diário de Pernambuco de 13/08/1889. Conforme Gouvêa, na República

Brasileira esse artigo foi publicado na edição de 25/07/1889, ou seja, pouco depois do dia programado para o meeting de Silva Jardim no Recife (op. cit., p.265-266). Há quem acredite que as “classes populares” (Eduardo Silva) ou a “gente do povo brasileiro, inclusive a multidão de libertos” (Gilberto Freyre) tinham afeição pela Monarquia e a Igreja antes e depois da República. Embora isso pareça plausível com base em alguns documentos, creio que, ao menos em relação ao Recife, sejam necessários estudos muito cuidadosos antes de ser afirmado, pois a minha impressão é a de que “classes populares”

Quando já não for tempo de defender a Monarquia, mas de afirmar-se como republicano, é também a “seu povo” que Mariano recorrerá para legitimar-se. Na ocasião da conferência convocada por ele com esse objetivo em abril de 1890, mencionada no tópico acima, os esforços dos republicanos se concentrarão como nunca em afirmar a artificialidade dos aplausos oferecidos por uma “súcia de idiotas”, “imbecis” e “sandeus”181

.

Divulgava-se que para aparentar popularidade, Mariano mandaria Paula Mafra, Chico Torres e Faelante contratarem, por valores entre três e cinco mil réis por cabeça e com passagem de trem paga, uma grande quantidade de pessoas dos arrabaldes do Recife e de localidades mal reputadas para, de facas na cintura, impedirem apartes dos seus opositores e aplaudir o seu chefe a todo instante182. No entanto, justamente nessa conferência, ciente das consequências dessas afirmações para a fama da popular, Mariano se empenhará em explicar a natureza da sua relação com aquelas pessoas. De acordo com ele, ao insistirem em afirmar que contava com um apoio comprado, seus adversários demonstravam a própria limitação moral:

Incapazes de uma dedicação, de um sacrifício desinteressado, eles não compreendem a sublimidade desses rasgos de verdadeiro heroísmo que os homens do povo todos os dias sabem ter quando precisam defender aqueles que lhes inspiram confiança e pelos quais eles chegam ao sacrifício de lutar e de morrer (aplausos prolongados)183.

Em suas palavras, se o povo, o mesmo que pensava e tinha vontade própria, agia com violência em seu favor, seria por concordar com suas ideias e por ver nele um amigo:

Esses são meus brabos, e eu posso me orgulhar de ter em cada homem do povo, um amigo, um defensor. Quantas vezes, nas lutas arriscadas em que precisei empenhar-me, encontrei-os a meu lado, batendo-se com denodo, salvando-me muitas vezes da morte! E quantas vezes eu nem sequer conhecia

ou “multidão de libertos” envolvem pessoas demais para que se possa referir-se à sua afeição, no singular. Mas mesmo considerada no singular, no Recife essa afeição pareceria direcionada muito mais a algumas personalidades e seus correligionários do que às grandes ideias e instituições. Ver: SILVA, Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. P.59-81 e FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 6. ed. São Paulo: Global, 2004. P.261-263 (nota 57).

181 Ainda a conferência (novas variações). Diário de Pernambuco, 20/04/1890.

182 No mesmo Ainda a conferência (novas variações). Diário de Pernambuco, 20/04/1890. Ver também:

Na ponta. Diário de Pernambuco, 12/04/1890; E reafirmando isso depois do episódio: Ambição de Glória. Diário de Pernambuco, 20/04/1890: nele se diz que a conferência não teria correspondido a “nenhuma expectativa do povo (...) convença-se o Sr. Mariano de que nem toda a população do Recife se presta a manejar o punhal”. Assina em nome dos mortos Ricardo, Paiva e Bodé. Não consegui identificar o Paiva.

esses homens de tão louca abnegação? (Aplausos frenéticos e prolongados. Aclamações ao orador).

Mas a nota dos aplausos frenéticos, a referência à “louca abnegação” e a informação de que havia cinco mil pessoas presentes na conferência184 se voltavam contra Mariano na habilidosa escrita dos seus adversários185. Para eles, a prova de que tais aplausos eram inconscientes veio quando Mariano mencionou as críticas que lhe estavam sendo dirigidas na imprensa. Incapaz de representar o seu papel, a plateia teria imediatamente gritado “apoiado”, como se aquelas palavras reproduzidas por ele lhe fossem favoráveis186.

Esse incidente cômico foi um prato cheio para os republicanos, mas ele não era indispensável, pois a inadequabilidade daquele povo à vida pública seria evidente só de olhá-lo: “esta gente por mais que se vista sempre mostra que não está bem com o casaco e sapatos e desde que S. S. ia apresentar-se em público de dia, tinha de escolher gente melhor”187. Esse raciocínio parece traduzir-se na seguinte pergunta: após um longo período no qual a sociedade lhes proibia o uso de sapatos por conta da sua condição, a quem aquelas pessoas poderiam enganar calçando-os?188

Logo se vê que o abolicionismo e os princípios igualitários presentes no discurso republicano em alguns momentos – especialmente antes da abolição – não eram apropriados àquela luta contra o marianismo. Nela a própria identidade do Partido Republicano ficaria esvaziada se fosse atribuída a condição de povo legítimo àquela grande quantidade de pessoas que apoiavam o seu maior adversário. Nesse sentido, optava-se por ridicularizar a possibilidade de pretos de origens pobres se tornarem intelectualmente independentes e úteis à sociedade.

Assim como no conto sobre o Cabeleira e seu possível parente homônimo – o Cabeleira José Mariano –, aqui outra história contada sob o pseudônimo Antônio Pinheiro de Castro pode ser instrutiva: “Compareço com o meu mamulengo”, diz o

184 A conferência. A Província, 16/04/1890.

185 Daí aquela afirmação de Felício Buarque no trecho acima, página 46, nota 131.

186 A conferência de quinta-feira. Diário de Pernambuco, 17/04/1890. O autor narra essa história “para se

dar uma ideia de quanto era inconsciente a gente que o Sr. José Mariano trouxe do Poço e da Várzea para aplaudi-lo e manobrar a bicuda, se fosse preciso”.

187 Desenganos e desesperanças. Diário de Pernambuco, 25/04/1890.

188 Sobre escravos não poderem usar sapatos ou qualquer outro calçado, ver o tópico O sapato e o

sanitarismo imperial, em ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no império. In:______ (org.). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Volume 2. P.11-93. Ver também: WISSENBACH, Maria Cristina. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Volume 3. P.53-55.

autor, “para contar pela última vez a história de um povo no século 19. Era um dia um preto, rústico, imbecil, selvagem quase. Vivia vida obscura, ignorada, como só sabem viver os pretos”. Até que um dia ele virou engenheiro naval e, sem que em relação a isso a polícia tomasse qualquer providência, “o negro, descobriu coisas fabulosas!” Depois, no entanto, estas se mostraram uma grande fraude, da qual ainda restaria uma barcaça construída, “atestado vivo da mais crassa ignorância, na vida de um povo!”189

. O preto aí em questão, um certo Veríssimo, cujo nome completo era Veríssimo Barbosa de Souza, foi bastante ironizado em publicações relacionadas à Guarda Negra e ao Club Cupim190. Ele empregou em seus inventos, desenvolvidos desde pelo menos o início dos anos 1880, o capital de acionistas da empresa Minerva Progresso Pernambucano, dissolvida em junho de 1903191. No entanto, não consegui encontrar fontes que confirmem o envolvimento de correligionários de Mariano nesses projetos.

Não obstante o que foi dito acima, a ênfase dos republicanos na inadequação daquelas pessoas como povo, por conta de uma incapacidade de pensarem em interesses acima de seus instintos imediatos, não consistia unicamente em cálculo político empregado na luta contra Mariano. Apesar de diferentes e em alguns momentos opostos, homens como Felício Buarque, José Isidoro Martins Júnior, Vicente Cisneros, Aníbal Falcão, Albino Meira e outros mantinham uma concepção da representação política muito diferente da ideia que nos dias de hoje talvez aparente mais adequada ao liberalismo constitucional e ao republicanismo.

Expressa em seus aspectos centrais a cada vez que esses políticos se manifestavam na imprensa, suas concepções tinham como fundamento uma tradição cuja familiaridade entre eles pode ser diretamente percebida em detalhes das mais corriqueiras acusações:

Chico Torrão e os demais da claque cabeleirofila já estão aliciando os brabos para o dia 14, quando o seu chefe pretende falar! Eles acreditam que ainda

189 “Ferragens do goianense”. Diário de Pernambuco, 02/04/1890.

190 Ver, por exemplo, A província e o club 22 de julho. Diário de Pernambuco, 06/05/1890. Mas também

havia republicanos apostando em seu invento, o moto-contínuo pela pressão do ar: “É esperado amanhã, no vapor Pernambuco, que vem do sul, o cidadão Veríssimo Barbosa de Souza, construtor do barco Minerva. Consta-nos que traz consigo o maquinismo que deve ser sentado naquele navio importante trabalho de seu engenho, o qual acaba de ser feito sob sua direção na capital Federal”. O barco minerva, Gazeta da Tarde, 06/02/1890. Sua presença no Recife causava algum furor na imprensa, fosse pelas gozações, as críticas aos fundamentos do seu projeto ou as comemorações em sua homenagem.

191

JURISDIÇÃO, Decreto nº 8148, de 25 de junho de 1881. Concede privilégio a Veríssimo Barbosa de Souza e Guilherme Telles Ribeiro para o motor por meio de pressão do ar, de sua invenção. Disponível em:<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=57882&norma=73735>

Consultado em 27 de março de 2012; DIÁRIO OFICIAL [da República Federativa do Brasil], Rio de Janeiro, n. 151, 28 jun. 1903. p.3121-3122.

estamos nos tempos dos capangas, da faca de ponta e do cacete. Eles vão para o [teatro] Santa Isabel, não defender um princípio, porque o princípio deles é o primo vivere! Eles vão no dia 14 proclamar a sua existência a todo transe, e terminada a conferência sair para a rua a proclamar a separação do Brasil a título de federação!192

Em meio a essa disputa conjuntural, o autor do artigo permite que se entreveja uma das possíveis fontes inspiradoras da sua opinião sobre o lugar da maior parte da população na política republicana. A expressão “primo vivere” aí empregada me parece uma contração apressada de “primum vivere, deinde philosophari”, frase há muito tempo atribuída a Thomas Hobbes193, autor que esteve na base das diferentes compreensões da representação difundidas entre os operadores da política naquele período194.

O movimento hipotético no qual Hobbes descreve a instituição do Estado por uma multidão ou uma massa incapaz de viver na condição de liberdade absoluta é, nessa perspectiva, transposto para o ambiente de instituição do Estado republicano no Brasil. Um aspecto decisivo disso é que no modelo hobbesiano o governante representa os anseios não dessa multidão ou massa que o instituiu, pois se assim fosse o Estado apenas reproduziria a dispersão e o conflito anterior à sua existência, mas sim do povo, que nada mais é do que uma criação do próprio Estado que o representa195.

A produção desse povo ou a “transição cívica” da massa a povo, portanto, seria tarefa de um Estado criativo. Daí decorre que o simples fato de os indivíduos existirem e possuírem direitos dentro dos limites da nação não significava que constituíam o povo da República, no máximo eles seriam a matéria-prima que o Estado deveria lapidar até torná-los aptos a pôr o bem comum acima dos seus desejos imediatos. Embora não se possa dizer que todos os republicanos de Pernambuco liam Hobbes ou o liam exatamente nesses termos, essa perspectiva se aproxima muito daquela compreensão de que o povo republicano e o povo de Mariano só tinham em comum, se muito, o nome.

Aliás, o uso do pronome possessivo (“seu povo”) corresponde aí a uma exclusão, pois em um pensamento político onde os conceitos possuíam um significado marcado pela tradição hobbesiana, o povo de Mariano não ultrapassaria a qualidade pré- política de multidão e não consistiria em unidade política de ação racionalmente

192 Cidadãos! Diário de Pernambuco, 12/04/1890. Assim como no tópico anterior, os grifos aqui são

sempre do original.

193

Cf. REZENDE, Arthur. Phrases e curiosidades latinas. Rio de Janeiro: [s.n.], 1952. P.604. Ela significa “primeiro viver, depois filosofar” e remete a uma vida pautada pelas coações da sobrevivência.

194 HOLLANDA, Cristina Buarque de. Op. Cit., p.45-47. 195

Idem, p.48: “no limite a representação como arte mimética significaria a reprodução artificial do próprio estado de natureza. Nesse caso, nenhuma serventia haveria no Estado”.

estabelecida. Essa multidão seria composta então de partes desconexas, sedentas por suprir suas vontades e, por isso, facilmente controladas por um homem astuto. Alimentando-as individualmente, ele manobrava suas condutas conforme os seus próprios desejos.

Além do mais, o fato de a ênfase na relação de identidade entre soberano e povo ter tido bastante ressonância nos conceitos de representação inspirados em Hobbes acabava implicando em resistências à aceitação da disputa entre grupos políticos como algo próprio do Estado republicano196. Consequentemente, Mariano era uma ameaça à unidade do corpo social e do próprio Estado, preocupação exemplificada nas referências à divisão do país entre a barbárie orleanista do norte e a República do sul197.

Entre as diferentes interpretações do conceito de representação política hobbesiano que coexistiam no Brasil naquele período, as que se identificavam como positivistas (o que era o caso de muitos republicanos em Pernambuco) tendiam a ser bastante rígidas em relação a essa primazia da unidade do corpo político em torno de um Estado centralizado198. No primeiro documento citado neste tópico, o contraponto ao regime marianista da capoeiragem é feito precisamente pela espada do soldado da ditadura e não por um forte povo ativo. Pois, nesse caso, a vontade do povo não seria comunicada por este diretamente e sim deduzida por aqueles que a partir de princípios científicos conduziriam seus destinos na ditadura republicana199.

Talvez por isso não parecesse constrangedor reconhecer que a inauguração da República em Pernambuco não se deu por uma retumbante expressão popular e sim por iniciativa formal de políticos como Albino Meira e Martiniano Veras200. Da mesma

196 HOLLANDA, Cristina Buarque de. Op.cit., p.30 e p.49. 197

Além dos artigos diretamente relacionados a isso e citados no tópico anterior, ver também: Voto de Louvor. Diário de Pernambuco, 04/02/1890.

198 HOLLANDA, Cristina Buarque de. Op. cit. p.31. Além de o positivismo de Aníbal Falcão dominar o

programa do Partido Republicano publicado em 1888 (Ver: HOFFNAGEL, Marc. Op. cit., p.168-173), havia alusões a máximas e princípios comteanos em diversos textos de republicanos na imprensa, como a epígrafe “viver às claras” dos artigos da série “O Sr. José Mariano e a sua conferência”, de Felício Buarque. Viver às claras é uma tradução de “vivre au grand jour”, máxima defendida por Comte em: COMTE, Auguste. Systeme de politique positive, ou traité de sociologie, instituant la religion de l'humanité. Paris: E. Thunot et Cie, 1854. Tomo 4. p.312. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=8gdYZNf36wAC&printsec=frontcover&hl=pt-

BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. A máxima se encontra inclusive entre as epígrafes do livro. A esse respeito, ver também: BOSSI, Alfredo. O positivismo no Brasil: uma ideologia de longa duração. In: PERRONE-MOISÉS, Leyla. Do positivismo à desconstrução: ideias francesas na América. São Paulo: Edusp, 2004.

199 HOLLANDA, Cristina Buarque de. Op. cit. p.81-83: “em síntese, o povo não se faz representar, mas é

representado”. Não surpreende que a Província publicasse críticas ao republicanismo positivista, que para José Mariano era “a negação da soberania popular”: O discurso. A Província, 20/04/1890.

forma, pensando nacionalmente, a armada e o exército teriam conduzido a revolução refletindo a vontade nacional, noção que daria conteúdo e unidade às aspirações do povo, que não teria o papel de exprimi-las201.

Positivistas ou não, essas interpretações apresentavam o Brasil como um país de povo que não tinha a forma de povo, o que tornava perigoso o processo de eleição daqueles que melhor representariam os interesses nacionais. Caso a condição de povo fosse conferida à massa inconsciente, a partir de então incumbida de escolher nas urnas

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