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ASSISTÊNCIA

FARMACÊUTICA

Rosana Isabel dos Santos Kaite Cristiane Peres Alessandra Fontana

3.1 Introdução

O objetivo específico deste capítulo é contextualizar, historicamente, a formação farmacêutica no Brasil. Este texto foi baseado na tese de Santos (2011), que tratou das concepções de assistência farmacêutica no contexto histórico brasileiro.

Se fizermos uma busca rápida na literatura da área, vemos que a história da farmácia no Brasil costuma ser apresentada por meio de narrativas que utilizam uma abordagem factual, ou seja, que procura se limitar a “expor os fatos”, agregando, aqui e acolá, comentários ufanistas sobre a profissão farmacêutica e a importância social dela em determinados momentos.

Para compreender, e tentar explicar, as transformações na profissão e na formação farmacêutica no Brasil sob outra perspectiva histórica, buscamos

apoio teórico no trabalho desenvolvido por Pierre Bourdieu. O autor desenvolveu análise do mundo social por meio da relação dialética entre estrutura social e indivíduo. Desta forma, não se filiou às vertentes que se colocavam antagonicamente dentro das ciências sociais, o estruturalismo ou objetivismo e a fenomenologia ou subjetivismo, mas buscou, em cada uma delas, elementos explicativos, combinando-os dialeticamente. Como na fenomenologia, reconhecia o protagonismo dos agentes sociais na construção da realidade social, entretanto, sem considerá-lo como decorrente da racionalidade própria dos indivíduos. Ao contrário, afirmava a gênese social das condutas individuais, como no estruturalismo, embora discordasse do determinismo e da estabilidade das estruturas presente nas explicações estruturalistas.

Para conciliar o que parecia antagônico – o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades, Bourdieu desenvolveu o conceito de habitus: espécie de matriz, social e continuamente construída, que modula o sentir, o pensar e o agir individual ou de um determinado grupo social. Educação, religião e trabalho são alguns dos elementos sociais que influem na constituição do habitus. Dito de outra forma, o habitus é adquirido pelo indivíduo em função da posição ocupada no espaço social, espaço este chamado por Bourdieu de campo. Como em um jogo, metaforicamente, campo é o espaço social dinâmico no qual estão inseridos os agentes sociais e onde se processa a luta pelo domínio do jogo. Contudo, é também neste espaço que ocorre outra batalha constante: a da imposição da definição das regras do jogo (BOURDIEU, 2005; BOURDIEU, 2007). Assim, o campo onde se desenvolvem as disputas para a construção de um grupo profissional abrange os espaços político, econômico, legal e social, sendo a institucionalização da formação profissional um dos mecanismos para a imposição das regras do jogo.

Influem neste jogo, os capitais acumulados pelos agentes sociais que lhes confere força e poder na determinação das regras e no próprio jogo. Para além de seu sentido econômico-financeiro, capital é um quantum suficiente de força social que empodera o seu detentor para as disputas pelo monopólio do poder, determinando sua posição no campo (BOURDIEU, 2005; 2007). Neste sentido, além do capital econômico (renda, propriedades etc.), ainda há o capital cultural (diplomas e títulos), o capital social (posição social em que se encontra o agente e as consequentes relações de dominação) e o capital simbólico (prestígio ou honra).

A posição do indivíduo ou grupo no campo pode ser traduzida simbolicamente no estilo de vida (habitus), sendo que indivíduos portadores de capitais semelhantes encontram-se em espaços próximos do campo e se utilizam dos próprios capitais para sobrevivência. Portadores dos capitais mais valorizados em uma determinada sociedade investem-se de maior poder de manutenção do status quo e de dominação social. Esta dinâmica retrata o processo de reprodução social.

3.2 Sobre a profissão farmacêutica

O processo de consolidação de um grupo profissional e identidade dele passa pelo reconhecimento social que este grupo consegue ter e da valorização conferida ao tipo de atividade que desenvolve.

Em relação às artes de curar, desde a Grécia Antiga, apesar da divisão rudimentar, o trabalho intelectual gozava de maior reconhecimento social do que os manuais. Essa distinção tornou-se ainda mais acentuada a partir da Idade Média, com a separação oficial entre a medicina, a cirurgia e a farmácia. A primeira, associada à física e integrada no conjunto do sistema universal do saber e da filosofia, assumiu um status superior, enquanto que as duas últimas foram caracterizadas como ofícios manuais. Isso se refletiu no ensino. Desde as primeiras universidades europeias, na Idade Média, o ensino da medicina era um dos poucos que se encontravam formalizados. Assim, enquanto a formação médica submetia-se ao:

[...] ensino universitário com professores altamente especializados, os farmacêuticos e cirurgiões mantinham um tipo de formação baseado na aprendizagem com um mestre estabelecido, um tipo de aprendizagem que era comum às restantes profissões mecânicas. (DIAS, 2005, p. 31).

Desta forma, podemos conjecturar que medicina e farmácia, já nas origens, possuíam capitais simbólico (prestígio ou honra) e social (posição social) diferenciados e, consequentemente, distintas potencialidades de dominação no campo da saúde.

Uma vez organizada e regulamentada, a medicina passou a controlar, normatizar e intervir nos demais ofícios relacionados à saúde (PIRES, 1989). A hierarquização valorativa era tal que o próprio ensino de Farmácia na Universidade de Coimbra, em meados de 1700, dirigia-se aos estudantes de Medicina, os quais aprendiam a teoria e a prática da Arte Farmacêutica em um curso completo com o mais hábil boticário. Aos praticantes farmacêuticos, por sua vez, não era permitido assistir às lições teóricas e, quanto à prática, podiam acompanhar as explicações do regente da cadeira apenas enquanto forneciam aos estudantes médicos os utensílios e drogas com que estes trabalhavam (DIAS, 2005).

Conforme Luz (1979, p. 32), a partir do século XIX a medicina progressivamente passou a desenvolver “projetos e modelos institucionais que buscam no controle do Estado uma estratégia de dominação, de controle médico do conjunto da sociedade”. Quando a formação superior e as atividades do farmacêutico foram regulamentadas em grande parte da Europa, por volta do século XIX, isso ocorreu sob a tutela da medicina. Neste processo, consolidou-se

a hegemonia da medicina na saúde e a caracterização da profissão farmacêutica como ofício técnico subalterno.

Da mesma forma, quando as duas Escolas de Anatomia e Cirurgia, criadas no Brasil em 1808 por D. João VI, foram transformadas nas primeiras Faculdades de Medicina, em 1832, passaram igualmente a deter a autorização para conceder títulos de farmacêutico e de parteira, além de doutor em medicina, bem como a normatizar e fiscalizar o exercício desses profissionais.

3.3 O ofício farmacêutico no Brasil

A repercussão das transformações ocorridas durante o século XX foram de tal magnitude sobre a profissão farmacêutica que afetaram tanto o seu reconhecimento social, quanto a própria identidade profissional. Felizmente, como fruto de uma intensa mobilização, não apenas no que diz respeito às questões farmacêuticas, mas relativas à saúde de forma geral, chegamos ao século XXI com a real possibilidade de ressignificar socialmente a função do farmacêutico, enquanto profissional da saúde.

Entretanto, é possível observar, especialmente na prática docente, que as novas gerações desconhecem a trajetória da profissão farmacêutica no Brasil. Com isso, perdem a potencialidade estratégica de consolidação profissional, sob a égide do direito à saúde.