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Por quase dois séculos (1766-1930), conforme Locks (1998, p.32):

predominou na região serrana o latifúndio. Por isso, a fazenda é tomada como espaço social simbólico, constituindo verdadeiro locus por onde se articulou o poder econômico, político e se engendraram as relações sociais; lugar onde os agentes elaboraram grande parte de sua ‘representação de mundo’, construíram sua ‘identidade individual e social’ ou forjaram ‘estilos de vida’.

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Um dos melhores exemplos que atestam este embate, foram as décadas de um processo longo de ordem política e jurídica que envolveu o asfaltamento da estrada de chão que ligava o trecho da 282 entre Lages/São José do Cerrito . Para situar brevemente a distância entre estes dois municípios, embora pequena em quilometragem, era grande pelas condições da pedregosa estrada de chão. O que levou, entre outros motivos, a expressão “esse aí é lá do Carú” que ainda carrega hoje um tom de distinção sociocultural, que evidenciava aqueles que eram da “cidade” e dos que viviam no “campo”.

A maioria da população cerritense tem raízes locais, conservando seus modos de viver e costumes deixados por seus antepassados, acumulando experiências em um espaço que pode, por um lado, alocar o que há de mais rápido e moderno das tecnologias de informação e de técnicas de plantio, por outro, de acordo com Bauman (1999), permitir que seus habitantes se bastem de medidas antropomórficas (pés, punhados, polegadas, etc.) no cálculo das distâncias e a interação humana seja “confinada pelos limites naturais da visão, audição e capacidade de memorização” (Bauman, 1999, p.22). Segundo Tuan (1980, p.12),"o mundo percebido através dos olhos é mais abstrato do que o conhecido por nós através dos outros sentidos".

De um lado pesa a resistência nos modos de vida locais e por outro se enche pelas “facilidades” da vida moderna que nas suas promessas são tão seduzíveis ao homem que leva a vida, segundo o modo pragmático e imediato, típicos do ocidente.

A própria questão das barragens e suas implicações está longe de ser uma novidade nesta região e no Brasil. No Planalto Catarinense, localidades marcadas pela passagem e onipresença do Rio Caveiras e Rio Canoas, vivenciam há décadas um processo de permanente embate sociopolítico e ambiental em relação à construção das barragens e de todas as cicatrizes que decorrem da “marcha” ao progresso35.

Este progresso que em poucas palavras se define por estratégias destinadas ao “acúmulo de riqueza na sociedade moderna” como aponta Hanna Arendt (2007), e que teve início com a expropriação do sujeito camponês de suas terras (no caso da região serrana os embates históricos contra os indígenas e contra os caboclos), é de suma importância considerar que os usos da terra nos remetem a questão da propriedade. Que conforme bem nos coloca Arendt, está sujeita ao uso e ao consumo e, portanto diminui constantemente. Compreendemos a propriedade então como uma forma de poder36, um poder exercido que é garantido pelo Estado através dos mecanismos de controle, disciplina e mais

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Um movimento semelhante ao que descreve Maffesoli (2005): “Na marcha em espiral das histórias humanas, quando a abstração racional tende a triunfar, e a sociedade torna-se propriedade de alguns, assiste-se à sua implosão”.

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“Para toda filosofia progressista do século XIX “saber é poder”. O pensamento não vale mais por si mesmo, mas remetido a um fim que lhe é exterior: o poder sobre as pessoas (política) e sobre as coisas (economia). MAFFESOLI (2005 p. 126)

recentemente, pela gestão da informação enquanto forma economicamente viável.

No Planalto Catarinense, a questão da propriedade e o seu uso, está relacionada diretamente ao fenômeno do êxodo rural que, conforme Scott el tal (2010), designa a permanência ou migração dos jovens para as cidades:

a condição do meio rural está relacionada à sua capacidade de oferecer oportunidades de obtenção de renda acesso a infraestruturas e serviços, sendo tal aspecto importante para pensar a permanência e/ou compreender a migração de jovens para as cidades. Se a expectativa que eles lançam sobre o seu futuro não encontra respaldo nas condições em que se encontram assentada a vida no meio rural, ela é direcionada para o meio urbano que, na percepção da juventude, oferece mais condições de realização pessoal, profissional e financeira. (SCOTT ET AL, 2010, p.163). As autoras acrescentam que as condições econômicas da família e o tamanho da propriedade, muitas vezes não permitem que os jovens permaneçam na agricultura. Em uma localidade, onde a economia predominante é a agricultura familiar, o Cerrito, conforme Locks (1998, p.42), faz "uso de tecnologias tradicionais, de produção ao consumo e à venda de pequenos excedentes; tem como principais culturas o milho e o feijão. Já foi considerado o maior município produtor de feijão de Santa Catarina". De acordo com o Plano de Desenvolvimento Local do Município (1996, p.71), há um declínio da produtividade do feijão, em 1987 eram produzidos 37 sacos e em 1995, 21 sacos por alqueire. Porém, dados mais recente, de 2014, apontam que o agronegócio é a principal atividade econômica da região, e São José do Cerrito/SC, se destaca na produção de soja, milho, feijão e cebola37.

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RÁDIO CLUBE DE LAGES. Disponível em:

<http://www.radioclubedelages.com.br/noticias.php?id_noticia=932. Acesso em 13 nov 2014

Imagem 4 - Plantação de Milho na região do Karú.

Fonte: Orival Lopes, 2015.

Em 2015, conforme a Lei nº 989 que estima a receita e despesa do município para o exercício financeiro de 2016, dos 20.827.968,76 da receita total repassada para o município, 1.745.263,85 foram destinadas para a agricultura. A maior parte desta receita foi destinada para a educação, seguida da saúde, administração, transporte e urbanismo.

As práticas da agricultura em São José do Cerrito se iniciaram de forma periférica, conforme Locks (1998):

nos moldes da Revolução Verde dos anos de 1960 e 1970, ou seja, introduziram tecnologias mais pesadas, como a utilização dos primeiros tratores, iniciaram o plantio de hortaliça com a aplicação de adubos químicos, sementes industrializadas, inseticidas e herbicidas, etc. Abriram e concentraram o mercado local de produtos agrícolas além de Lages, para capitais como Porto Alegre, Curitiba, sobretudo para São Paulo. (LOCKS, 1998, p.49).

O uso de inseticidas foi apontado pelos entrevistados Jonas (2015) e Jó (2015). O primeiro, como sendo um dos motivos de sua enfisema pulmonar38 e o segundo sua percepção do uso do agrotóxico

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É uma doença crônica, na qual os tecidos dos pulmões são gradualmente destruídos, tornando-se hiperinsuflados (muito distendidos). Esta destruição ocorre nos alvéolos, onde acontece a troca gasosa do oxigênio pelo dióxido de

como sendo relacionado ao progresso e que por isso, ele estaria "atrasado":

É... nós temos um negócio bom, vamos dizer, só questão que nós não estamos acertando muito em termo de produção, esse é um lado, um pouco por assistência técnica, que o nosso .. nós trabalhamos com agroecológico com a uva orgânica. Eu não posso lutar com veneno, hoje até que esses tempos .. faz uns 3 anos eu fui lá pra Florianópolis e daí lutar com a casa da minha irmã e quis me dar uma enfizema pulmonar, daí fazendo um monte de exame, aí ... o médico disse lá: "não .. você fique longe de veneno! [...] já trabalhei bastante com veneno, lutava com batata, semente certificada que leva veneno direto [...] no começo nós plantamos, até que ... na hora que foi plantado, uns 2 anos ali, daí é que partimos mesmo pra não ter veneno, ser orgânico né, aí fui fazer curso no Rio Grande, li! saí fora pra vê e daí uso só orgânico. (JONAS, 2015).

meu terreno enquanto eu for vivo, não vai ter veneno, porque eu não vou comer algo contaminado, nem meus filhos, nem meus neto, aí depois que eu morrer, aí não sei [...] ele acha que eu sou muito atrasado, por exemplo, o equitare de terra que eu vou plantar milho, se for passar veneno 2 horas vai lá com o trator e banha tudo e mata e eu vou limpando com aquela carpindeirinha que eu tenho ali com o cavalo né. (JÓ, 2015).

Locks (1998) designa o agricultor cerritense sob dois aspectos baseados em seus estilos de vida, o "agricultor da tradição cultural" e o "agricultor em trânsito à modernização" e, segundo o autor, estes interagem com as

dimensões do econômico, do político e do social, consubstanciando um universo cultural que se manifesta em diferentes modos de vida. Eles se

carbono. Como resultado, a pessoa passa a sentir falta de ar para realizar tarefas ou exercitar-se. ABC da Saúde. Disponível em: <https://www.abcdasaude.com.br/pneumologia/enfisema-pulmonar>. Acesso em 30 agosto 2016.

revelam nos hábitos, no grau de ambição, na concepção e ritmo de trabalho, na religiosidade, nas formas de se organizar socialmente, na disposição de assimilar inovações técnico- agrícolas, na produção e comercialização por parte dos agricultores. (LOCKS, 1998, p. 21). A pesquisa de Locks é do final da década de 1990, são quase 20 anos que separam a pesquisa dele da minha, no entanto, é possível que alguns agricultores pesquisados por ele já tenham falecido, outros envelheceram e, algumas técnicas de plantio e cultivo também modificaram, no entanto, ainda é possível perceber o "agricultor da tradição cultural" e o "agricultor em trânsito à modernização". Jonas relatou em trecho anterior que devido "enfizema pulmonar" teve que deixar de usar agrotóxico em sua plantação de batatas, atividade essa exercida desde que chegou no Cerrito há 8 anos, mas em outra localidade também costumava fazer uso de agrotóxico, agora é produtor de uva orgânica. O que modificou do modo tradicional do plantio foi o uso das ferramentas: "não mudou muito ... mas o que eu fazia que gostava e hoje não faço mais, é usar a faca na lavoura, mas daí o reumatismo, hoje não faço mais, mas eu gostava" (JONAS, 2015).

A terra é mencionada em várias pesquisas na região e nas minhas entrevistas como maior atributo de autoidentificação do agricultor cerritense. Esse "homem forte" que caminha por uma margem frágil que oscila entre os modos de vida e saberes da/com a terra e que não se deixaram ser soterrados pelos processos de modernização da vida. Locks (1998), apresenta a terra enquanto:

lugar de moradia e de garantia da vida, por isso é ressaltado o valor da segurança e da propriedade não absoluta da terra. Nesta concepção está subjacente o direito ao acesso à terra para todos aqueles que dela necessitam para morar e trabalhar. Trata-se de um bem social, possível de ser passado de geração paia geração; muito mais que propriedade, trata-se da terra-patrimônio. (LOCKS. 1998, p.96).

Para este autor, os moradores mais antigos que conseguiram terras mais apropriadas para a agricultura foram os que constituíram as "localidades" hoje conhecidas, e sua denominação se deu pela vinculação ao primeiro morador que se fixou por estas terras ou pela associação de um santo de devoção, um santo padroeiro. É neste espaço-

lugar que o homem idoso do Karú, se constitui enquanto homem,enquanto idoso na sua peleia.

Porém, qualquer pretenso romantismo de quem chega na busca de uma paisagem rural ou da imagem figurativa do que é a vida no campo ou de um idoso do campo, poderá se decepcionar. O idoso é também um homem urbano, pois que transita em espaços de modernização, seja por sua participação nos dispositivos oferecidos pelo Estado, sindicatos, Sistema Único de Saúde (SUS), Sistema Único de Assistência Social (SUAS), Centro de Convivência do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), usuários da previdência social, além de suas atividades profissionais, como agricultores ativos, feirantes, piscicultores, etc. O asfalto é recente. E por ele muito se esperou. A sensação é de caminhamos em uma margem frágil que ainda percorre modos de vida e saberes com a terra, e para a terra, que não foram ainda soterrados por processos de “modernização”.

Imagem 5 - Ponte na localidade de Passos dos Fernandes.