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Progresso (e regresso) rumo à lamentação de Doutor Fausto

De maneira geral, em relação à ideia de progresso e ruptura com a tradição que o romance de Mann expõe, podemos dizer também que a evolução da música de Adrian Leverkühn parece seguir, em paralelo, os mesmos caminhos que a não ficcional história da Alemanha talvez tenha traçado para si mesma já em fins do século XIX. Desta feita, o choque dos acontecimentos políticos e sociais que solaparam a Europa nas primeiras décadas do século XX – incluindo-se aí, evidentemente, a ocorrência de duas grandes guerras – reflete-se assim, sobremaneira, no choque que o advento da música de Adrian (à semelhança do que ocorrera à Nova Música) causara – no enredo do romance – aos amantes da canônica, pacífica e bem comportada música tonal.

Como em espelho, o romance de Mann parece querer nos mostrar assim que – se uma nação tão intelectualmente capaz como a Alemanha pode perder-se, em nome do progresso e da evolução, na ilusão de seu potencial bélico e brutal – a aparentemente revolucionária música de Adrian sinaliza também que tal ideia de avanço igualmente arrastara as artes à

197 Nesse sentido, fato é que, como se pode observar no romance, Mann toma o cuidado de não incluir na

descrição detalhada que Serenus Zeitblom nos apresenta do “Apocalipsis cum Figuris” qualquer possível flerte ou referência ao serialismo – tal como sutilmente ocorrera na descrição de outras obras de Adrian.

198 Valendo-se lembrar, é claro, que a temática do oratório de Schönberg apresenta um texto cuja ideia central

é a de elevação espiritual e epifania (retratando-se a “escada de Jacó,” a alma que sobe ao Céu). Já o texto do oratório de Adrian, em sentido oposto, retrata o inferno – fato que proporciona, portanto, uma atmosfera musical muito mais sombria do que a proposta por Schönberg.

fronteira de um primitivismo que – apesar de parecer contrariar a plenitude da organização da vida “civilizada” – acaba, por outro lado, por recuperar aspectos arcaicos da própria tradição com a qual pretende romper. Na perspectiva do romance de Mann, a guerra de braço entre tradição e vanguarda rendera-se, no século XX (tanto nas artes, quanto na política), ao pacto com o diabo do mundo moderno – o qual ofereceu à humanidade, ironicamente, o velho com cara de novo. Afinal:

A relação entre tradição e vanguarda, o quadro modernidade e passado, é o campo de forças do romance, e não menos da investigação dialética do progreso tecnológico na música. 199

Na mesma trilha desse olhar atento que busca descortinar no romance de Mann a relação de forças na qual a renovação estética e política metamorfoseia-se e ressurge convertida em velados arcaísmos históricos, comenta também Theodor Rosenthal – em seu ensaio intitulado O Doutor Fausto de Thomas Mann – que na trama narrativa em questão:

o diabo, ao afirmar (...) que a arte de Leverkühn terá de experimentar o aspecto arcaico, o desconhecido, o primitivo, oferece um testemunho de Thomas Mann acerca de sua compreensão da evolução das artes, e essa afirmação poderia ter sido aplicada igualmente à pintura ou escultura, assim como à literatura, a qual – através de abstracionismo e surrealismo – tende igualmente, de acordo com Thomas Mann, a um nível cada vez mais primitivo (no sentido arcaico). 200

Evolução falaciosa? Engodo? Ironia? A perspectiva de progresso musical de Adrian (ao tentar buscar revolucionar a história da música) acabara por produzir uma musicografia que – apesar de extremamente inventiva e, mesmo, moderna – constituía-se a partir de planos sonoros carregados de uma atmosfera brutal e bárbara – prenhe, ainda, de características resgatadas do romantismo e até mesmo do barroco alemão. Da mesma forma a Alemanha, ao adotar as ideias de revolução nacional do Reich, dera início à prática de dantescas estratégias que – ao executarem ações de limpeza étnica e de extermínio de milhões de seres humanos – reduziram vítimas e algozes ao nível do primitivo e do inumano; além de

199

ADORNO & MANN, 2006 (tradução nossa da versão em espanhol), p. 169.

retomarem, em essência ideológica, a tão sanguínea e doentia prerrogativa alemã nacionalista que considera o povo germânico como “cepa” distinta e diferenciada.

Progressiva ou regressiva, a música de Leverkühn (tal como a Nova Música) – produzida num mundo assombrado pelos estampidos das bombas, pelos gritos de dor de populações inteiras, pelo choro agônico das vítimas, pelo som dos estilhaços e dos tiros de metralhadoras e fuzis – não poderia, de fato, jamais apresentar-se estruturada a partir de acordes perfeitos, de harmonias justas e reconfortantes, do equilíbrio timbrístico sutil e de variações docemente contempláveis. Nesse sentido, a dissolução total do “eu,” a exaltação da polifonia extrema e desconcertante, o choque, o imprevisível e o terrificante que ela propõe – em paralelo ao que propõe a Nova Música – se fizera necessário para dar vida ao conjunto de uma obra que – também como a Nova Música – assim jamais correria o risco de cair num alienado anacronismo.

Partindo do espelhamento que aqui propusemos, importa agora observar que Mann, valendo-se então de uma narrativa que se estrutura a partir de múltiplos níveis temporais, fez com que o narrador de seu romance se tornasse capaz, portanto, de dar conta de narrar acerca da vida de Adrian Leverkühn ao mesmo tempo em que, com extrema sutileza, alimenta também o leitor com informações sobre a situação política e a evolução do estado de guerra vivido pela Alemanha ao longo do período que abarca historicamente o desenvolvimento do enredo do romance; visto que:

os elementos infernais são identificados com os nazistas, e seu chefe com o diabo, mas, evidentemente, não se faz esta identificação a olho nu, por assim dizer. Não. Thomas Mann é mais sutil: os acontecimentos e as pessoas do romance têm de ser interpretados simbolicamente, pois, se por um lado o romance se ocupa da história alemã desde a época de Dürer, por outro se apresenta como biografia de um compositor cuja vida representa apenas nos seus mais íntimos estágios de evolução a história dos alemães. 201

Assim, salientando a proximidade entre a música de Adrian e o momento histórico que a Alemanha vivia, o próprio narrador do romance – em seus capítulos finais – é quem nos

chama a atenção para a semelhança entre a queda fáustica de Adrian e a queda histórica de uma Alemanha atraída pelo pacto com as forças (demoníacas) do Reich. Mais do que isso, ao relatar os anos finais da vida de Leverkühn, vai o narrador interpondo também comentários acerca dos momentos finais da derrocada alemã na II Guerra Mundial, até sua capitulação total no ano de 1945. E, nesse passo, a narrativa de Zeitblom apresenta ao leitor, então, sincronicamente, a morte de Adrian e a fatal derrota da Alemanha – uma vez que:

o relato acerca do final de Leverkühn é sincronizado com as últimas semanas da derrota alemã, estendendo-se até a rendição incondicional. A biografia constitui, assim, apenas um dos níveis em que o romance se desenvolve: o outro, como bem demonstrou Hans Meyer, numa das mais lúcidas interpretações do romance, ilumina e revela toda a história alemã daqueles anos. 202

Desta feita, fundindo-se cada vez mais os planos temporais e os protagonistas de cada um desses planos é que, ao final do enredo, na derradeira frase que encerra tal imensa e fenomenal narrativa, o escritor – valendo-se da voz de seu narrador – une definitivamente a figura de Adrian à da Alemanha. E tal imagem, tão intrínseca, imprime no leitor a impressão de que Adrian e a Alemanha são ambos, simbolicamente, um só personagem. Afinal, ante a memória do amigo morto e com os olhos cravados em seu país destruído, Zeitblom considera finalmente que:

A essa altura, a Alemanha, as faces ardentes de febre, no apogeu de selvagens triunfos, cambaleava, ébria, a ponto de conquistar o mundo, graças a um pacto ao qual tencionava manter-se fiel e que assinara com seu sangue. Hoje, cai de desespero em desespero, cingida de demônios, cobrindo um dos olhos com a mão e cravando o outro num quadro horroroso. Quando alcançará o fundo do abismo? Quando raiará, em meio à derradeira desolação, um milagre superior a qualquer fé, a luz da esperança? Um homem solitário junta as mãos e diz: “Que Deus tenha misericórdia de vossas pobres almas, meu amigo, minha pátria!”

203 202 Idem, p. 99. 203 MANN, 2000, p. 709.

A bem dizer, uma nova descida de nosso olhar ao íntimo da narrativa tecida por Zeitblom é capaz de nos revelar, agora, que até mesmo alguns aspectos biográficos de Adrian supostamente nos remetem à trajetória histórica da própria nação alemã. Afinal, e como se pode observar ao longo do enredo, tanto Adrian como a Alemanha, em si, têm uma origem rural, descendendo ambos de “uma estirpe de artesãos e agricultores.” Nessa trilha, sabemos também que o pai de Adrian já carregava os genes do alemão “puro,” do “homem da melhor estampa alemã, um tipo que dificilmente se encontra nas nossas cidades de hoje, e certamente não figura entre aqueles que atualmente representam a nossa essência humana, ao investirem contra o mundo com uma veemência deveras angustiante.” 204

Luteranos, Adrian e a Alemanha deixaram o conforto da vida rural para, numa viagem em busca de conhecimento, tornarem-se urbanos e cosmopolitas. Intelectualizados, afeitos à filosofia, à teologia, à matemática e – em especial – à musica, tanto Adrian como a Alemanha despontam como expoentes fontes de saber, detentores das mais elevadas produções do universo da arte – e da arte musical, em especial. Ávidos por renovarem-se e reformularem-se constantemente, buscando sempre o domínio e a autonomia, Adrian e a Alemanha mergulharam, ambos, numa alucinada, obstinada e doentia ideia de progresso e revolução.

Frios, incompatíveis com a sociedade que os cercava, até mesmo arrogantes, ambos descobrem-se doentes – fatalmente contaminados pelo vírus de uma herança sanguínea e diabólica. Então, enfim, atraídos e dominados pelos seus demônios, entregam-se – de volta à origem rural e arcaica da qual descendem – à derrocada final e inevitável das sombras, do terror, da morte e da danação eterna.

É fato que, como apontam muitos críticos e teóricos, a personagem Adrian Leverkühn guarda em sua biografia elementos característicos que dialogam muito de perto, também, com a figura do filósofo alemão Friedrich Nietzsche – “de quem Adrian tem a doença, a sensibilidade e o gênio.” 205

Em verdade, assim como Adrian, o filósofo também era uma

204

Idem, p. 21.

aficionado pela música. Além disso, tal como a personagem de Mann, Nietzsche também contraíra sua doença em um bordel e – igualmente ao que acontece a Adrian – sofre também o filósofo de um profundo alheamento mental que, provocado pela sífilis que contraíra, o domina por anos até vitimá-lo mortalmente.

Como se não bastasse o olhar ácido e mesmo cruel que ambos apresentam em relação à sociedade e à vida, a narrativa de Mann propositalmente indicia – quase que intertextualmente – a similaridade entre Leverkühn e Nietzsche quando, ao descrever o estado praticamente catatônico da protagonista, ao final do romance, comenta o narrador (ao que cita sutilmente, num trocadilho, o título de um dos livros de Nietzsche): “Adrian pareceu-me mais baixo, talvez por causa de sua posição inclinada para o lado. Ergueu em minha direção uma fisionomia adelgada, um semblante de Ecce homo, apesar da tez rusticamente sadia.”

Ainda sobre a semelhança entre Adrian e Nietzsche, sabe-se também que o próprio Mann reconhecera – em carta a Adorno – que recuperara toda a descrição da enfermidade de Nietzsche, descrita pelo filósofo em suas cartas, e a empregara em seu Fausto a fim de caracterizar de maneira mais efetiva e realista os detalhes que envolvem as dores físicas de Adrian.

Por sua vez, no entanto, a reconhecida proximidade que, como dissemos, os críticos corretamente apontam entre Adrian e Nietzsche, todavia, não inviabiliza a proximidade e semelhança que apontamos – também seguindo a trilha aberta por vários teóricos – entre Adrian e a Alemanha. Pelo contrário, Nietzsche – como Adrian – também carregara em si a cepa alemã, encarnando justamente o complexo momento da virada do século XIX. 206

Quer dizer, o olhar sempre fatal do filósofo em relação ao futuro da Europa, da sociedade alemã e, por que não dizer, da própria humanidade reflete-se inevitavelmente na postura

206 A bem dizer, e como veremos na conclusão deste trabalho, o dodecafonismo schönberguiano ao qual o

romance alude – por meio da música ficcional criada para seu protagonista – é ideologicamente muito próximo das ideias de Nietzsche – não sendo dessa forma meramente casual, como veremos, a proximidade biográfica entre Adrian e o filósofo.

social, ideológica e musical de Adrian – e fazem do protagonista uma personagem ainda mais representativa da nação alemã (ou mesmo sua perfeita personificação).

Com isso em mente, podemos agora partir, finalmente, para a análise da última composição musical de Adrian no romance: a cantata diabólica e dodecafônica intitulada “Lamentação de Doutor Fausto.”