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Antes de qualquer discussão acerca dos aspectos musicais em Doutor Fausto, cumpre ao estudioso da obra manniana reconhecer que, inegavelmente, o tema da arte – incluindo-se aí o do papel do artista e o da produção do objeto artístico – fora sempre uma constante na travessia literária de Thomas Mann. Desde suas primeiras narrativas de sucesso – como Tonio Kröger e Os Bruddenbrooks –, a reflexão acerca de questões históricas, sociais, políticas e filosóficas – alemãs e universais – teve sempre a perspectiva do tema do artista e da arte como elemento aglutinador capaz de proporcionar, nos mais diferentes enredos, situações nas quais se pode também refletir e debater sobre as intempéries e ocorrências dadas no plano não ficcional do factum – tais como o acontecimento histórico das duas

grandes guerras mundiais, por exemplo, e a implicação delas na instauração de um estado de exceção que dominou a Europa na primeira metade do século XX.

Em outras palavras, é imperativo ao leitor manniano – que deseja conhecer um pouco mais sobre a música em Doutor Fausto – atentar para o fato de que em boa parte dos textos ficcionais desse tão germânico escritor vigora fortemente a tomada do universo artístico como elemento a partir do qual muitos outros temas puderam ver-se expostos e desenvolvidos. Assim – e sem negar o também real interesse de Mann em discutir arte – vale observar que questões basilares de sua obra (como, por exemplo, o debate sobre civilização e barbárie, cultura e contracultura, tradição e vanguarda, passado e modernidade, dentre outros) ganharam força em suas narrativas graças justamente ao flerte sempre constante do escritor para com a produção artística e sua representação – tomando- se, então, a arte ocidental (especialmente a alemã) como um símbolo que, por sua complexidade, carrega e espelha em si muito da tradição do pensamento do ocidente (e do homem germânico, sobretudo).

Desta feita, vale reconhecer também que – assim como ocorre no enredo de Doutor Fausto – inúmeras são as personagens de Thomas Mann que mantiveram – enquanto criação literária – estreito contato com o mundo da produção artística. Quer dizer, pode-se afirmar que não faltaram nas narrativas de Mann um sem-fim de personagens a desfilarem por salões de concertos e outros centros culturais nos quais a arte transcorria de maneira intensa – ao passo que seria talvez impossível enumerar a vasta série de palestras, eventos, saraus, debates, encontros e outras atividades descritas nas narrativas de Mann e nas quais o autor inserira suas infindáveis criações. Nesse rico cenário constantemente retratado, teve a música, por sua vez, um papel sempre especial. Afinal, também desde seus primeiros escritos literários, pode-se observar que Mann reservara à música e à figura do músico uma posição de destaque em seu universo ficcional.

Nesse sentido, cabe registrar que – em carta enviada ao amigo músico e filósofo Theodor Adorno, em 30 de dezembro de 1945 – o próprio Mann reconhecera e indicara tal intrínseca relação sua com a música, sinalizando que “sempre fora,” inclusive, apontado pela crítica

de seu tempo como um escritor que também era, todavia, “um tanto músico” – uma vez que constantemente praticava em seus livros uma espécie de “música literária;” e que costumeiramente intentava transferir para o “tecido literário” muito da técnica comumente empregada no plano da composição musical (característica essa, como aponta o próprio Mann, que fizera recair sobre ele o epíteto de um “iniciado em música”). Revela-nos o escritor sobre tal faceta musical dele:

É curioso: minha relação com a música teve sempre certa fama, sempre pude fazer música literária, sempre eu me senti um pouco músico, e acabei transferindo a técnica do tecido musical ao romance, e não faz muito tempo, por exemplo, Ernst Toch, em uma felicitação, me deu o explícito e enérgico título de “iniciado em música.” 73

Corroborando tal revelação, importa verificar que nas memórias registradas pelo escritor em seu diário – cujas anotações foram, em parte, trazidas a público também em A Gênese do Doutor Fausto 74 –, Mann mais uma vez retoma as palavras de Ernst Toch e reafirma enfaticamente o seu sempre constante interesse e sua sempre marcante atração pela música. Conta-nos, então, mais uma vez Thomas Mann:

Sempre estive muito próximo da música, dela recebendo ensinamentos artísticos e estímulos preciosos, tendo exercitado sua prática como narrador e descrito sua estrutura em ensaios críticos, a ponto de Ernst Toch, um dos proeminentes dessa confraria referir-se à “superação da fronteira da música como elemento profissional e elemento universal” ao tratar de minha “musicalidade”.75

Iniciado em música, músico-escritor ou escritor-músico, Thomas Mann permitira assim que sua grande obra de maturidade viesse a contemplar o apogeu do fecundo conhecimento musical cultivado por ele ao longo de toda sua vida. Desta feita, próximo de completar setenta anos, dera início à escrita daquele que viria a ser apontado por boa parte da crítica literária mundial como o mais técnico de todos os seus livros – e, indiscutivelmente, o mais

73 ADORNO & MANN, 2006, p. 22 (tradução nossa da versão em espanhol). 74

MANN, 2001.

musical de todos eles: Doutor Fausto, o satânico e sonoro romance sobre a vida do (ficcional) músico dodecafônico Adrian Leverkühn.

Tomando a música como o elemento no maior enredo do romance – seja através da inserção de descrições acerca das mais diferentes composições musicais, seja por meio de debates acalorados estabelecidos pelos personagens sobre questões teóricas ou até mesmo por conta das engenhosas invenções musicais criadas por Mann, como veremos adiante, exclusivamente para o romance -, Doutor Fausto insere o leitor num complexo, angustiante e profundo universo cercado de temas extraídos do universo musical que, a todo o momento, faz referência aos acontecimentos dantescos que abalaram a germanidade e o mundo nas primeiras décadas do século passado; bem como retoma, reavalia e conjectura sobre a tradição germânica e seu fatídico destino ante as atrocidades das guerras iniciadas pelos próprios alemães e por seu Führer.

Isto posto, faz-se necessário afirmar inicialmente que a observação acurada em relação aos aspectos musicais de Doutor Fausto – estudo vital para uma melhor compreensão do engenhoso romance de Mann e da própria bibliografia do escritor, como um todo – nos levará por veredas muito mais espinhosas e agrestes do que muitos poderiam supor de uma análise puramente estética. O olhar sobre alguns aspectos musicais de Doutor Fausto dialeticamente abre-se assim como uma possibilidade de se refletir também sobre temas e questões que grassam – em essência – sobre a (terrível) força imperativa do mal que se abateu sobre a vida ao longo da primeira metade do século passado.

Por assim ser, a análise do romance em tela – e dos conceitos da filosofia da música que ele abarca – não deixa de dar conta do fascínio que (como nos aponta Gumbrecht em Atmosphere, Mood, Stimmung) comumente é exercido pelos mais variados livros de Thomas Mann – a saber: a experimentação de uma atmosfera peculiar na qual se desvela a presença da morte na vida, e cuja percepção só pode ser realizada por uma consciência historicamente específica.76 Desta feita, os aspectos musicais presentes em Doutor Fausto –

76

GUMBRECHT, 2013, apud SANTIAGO, Silviano. Suicídio da Teoria Literária. Prosa de Sábado. Sabático. O Estado de São Paulo. 18/01/2013, p. S2.

os quais passaremos a apontar a partir de agora – não deixam de anunciar assim, como veremos, justamente a experimentação maior da presença da morte na vida: o inferno apocalíptico do genocídio, fruto de uma “decadência finissecular” alemã que, em sua complexidade, pode ser reconhecida no romance em todas as suas nuances, cores, cheiros, sons e ruídos.77