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2 2.1.3 Proposição de ensino de língua para surdos

Ao verificar a concepção de língua que fundamenta esse documento, constatamos, também, que suas proposições para a prática pedagógica referem-se à base psicológica. É assim, que:

Ao considerar o desenvolvimento intelectual da criança processando-se por estágios e existindo em cada um deles “um modo característico de visualizar o mundo e explica-lo a si mesmo” (Bruner), entende-se que o portador de deficiência auditiva também passa por esses mesmos estágios (BRASIL, MEC, 1979/v.2, p.24).

Aqui a posição psicológica nega o valor da relação social, pois há uma preexistência virtual das atitudes que se desdobrarão no desenvolvimento da vida do aluno, o que vem ao encontro da posição epistemológica da lingüística discutida no ponto anterior. Como pré- disposições genéticas iguais para todos, contraditoriamente, há uma super valorização do meio social em que esse deficiente auditivo está inserido, pois carrega o conceito de “bagagem”.

No documento do MEC (1979) há uma concepção de que todos os alunos serão ensinados com base na “bagagem” que a criança trás, e conforme suas experiências na família. Portanto, o recorte a seguir expõe expectativas em relação aos conteúdos de toda uma vida anterior à de escolarização, considerada como importante para o desenvolvimento de ensino.

Como toda aprendizagem escolar se baseia nos conceitos adquiridos anteriormente, o aluno que ingressa no ensino de 1o grau para deficientes auditivos já possui vários conceitos (não verbais) que representam seu modo de dar significado aos fatos e acontecimentos. Deverá existir, portanto, uma conexão da nova aprendizagem com experiências anteriormente adquiridas pelo aluno, a fim de que a tentativa de ensino não se torne inútil (ibid., v1, p.97).

Na questão da construção dos conceitos, tal comentário apresenta uma outra percepção, pois, nessa lógica, é permitido que a criança traga conceitos não verbais, para que faça referência a eles para alcançar os objetivos definidos, ao final da proposta, ou seja, para que fale. Por outro lado, que elementos compõem esse conceito não verbal; seriam gestos, imagens de vivências anteriores, sinais da Língua de Sinais, ou a própria língua de Sinais de crianças filhas de pais surdos?

Vê-se que há uma valorização da linguagem para aprendizagens, uma reciprocidade, pois “é, também, através dos conceitos verbais e não verbais que a linguagem se torna possível” (BRASIL, MEC, 1979/v.1, p.97).

As funções psicológicas superiores consistem no modo de organização da psique, particularmente humana, em que se faz uso de funções psicológicas, tais como, o planejamento, concentração, memória, atenção, raciocínio, percepção, linguagem, pensamento abstrato. Por isso, o conceito de mediação é um dos pilares da tese de Vygotsky, mediação, esta, feita pelo signo (palavra) e utilizada pelo outro, pois através do sistema simbólico representa-se a realidade, mesmo não tendo acesso imediato aos objetos

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Vygotsky (1998), em 1934, pontuava que o treino de fala para surdos produzia uma fala mecânica e o documento traz a preocupação com esse procedimento de não ensinar a linguagem morta:

Deste modo, para se afirmar que o deficiente auditivo adquiriu ou possui um determinado conceito não basta que ele pronuncie a palavra corretamente. É preciso que seja capaz de dar-lhe sentido, explicá-la; logo deverá possuir algum conteúdo mental correspondente, expressando-o, principalmente, através da comunicação oral e escrita (BRASIL, MEC, 1979/v.1, p.97).

Mas, logo em seguida, apresenta:

O primeiro passo na elaboração de um conceito é o contato real com a situação ou o objeto dentro do qual esse conceito se exprime. Desta maneira, para o deficiente auditivo, os conceitos deverão ser sempre elaborados a partir de experiências concretas e expressados através da comunicação oral e escrita, porque é desta forma que ele irá atingir o pensamento conceitual (BRASIL, MEC, 1979/v.1, p.97).

Nesta orientação, considera que a ação concreta é fundamental, mas no processo de constituição de uma língua na psique do homem a ação concreta é secundária, pois, este como signo representa conceitos e, como em toda língua, a polissemia é rica e depende da negociação de significado dos interlocutores. “O sentido da palavra é totalmente determinada por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis quantos textos possíveis” (BAKHTIN 1929/1992, p.106). “Conseqüentemente, a palavra não somente designa o objeto, também cumpre a complexa função de analisá-lo, transmitir a experiência formando no processo de desenvolvimento histórico” (LURIA, 1986, p.38).

Tal proposta enfatiza a aprendizagem da comunicação oral e escrita (em nível de recepção e emissão) por meio de situações de experiências. Há uma abertura para a expressão através da dramatização e desenhos. Dessa forma, a aprendizagem se dá por meio de associações em que o aluno organiza e relaciona essas experiências com a linguagem. Espera- se, assim, que amplie seu vocabulário e as estruturas frasais, observando, manipulando, comparando e relacionando.

Nesses exemplos, encontramos a mesma lógica, a da seqüência de “conteúdo” entre si, o que é proposto, supostamente como conteúdo, na realidade é recortado do processo de aquisição da linguagem, na sua expressão pela fala na modalidade oral. Fica explícito o bloco de habilidades a serem desenvolvidas, numa direção crescente e propedêutica, algo presente na organização e aspecto básico da cultura das escolas.

O desenvolvimento das funções psicológicas superiores, fundamental para a aprendizagem das várias disciplinas, não são registrados como aspecto específico de trabalho de ensino. Isso faz supor que se espera sejam adquiridos, espontaneamente, pelos alunos. Apesar de, no documento, ficar explícito e taxativo o problema do aluno surdo nos seguintes termos.

O deficiente auditivo pela sua dificuldade de abstração, em vista dos prejuízos apresentados na comunicação oral, tem grande dificuldade em adquirir, compreender e atuar segundo normas e padrões sociais (BRASIL, MEC, 1979/v.2, p.54).

Percebe-se que a proposta de MEC, de 1979, assume os princípios do oralismo multissensorial, onde prima pela expressão oral, primeiramente, e, a partir do terceiro ano do colegial, introduz a leitura e escrita com metodologia global de ensino de língua materna. O oralismo apóia-se na continuidade (pensar, falar e escrever), havendo uma compatibilidade entre os sistemas de representação lingüística, primário e secundário, ignorando, assim, a existência da Língua de Sinas, substituindo a língua de sinais primária pela língua falada (CAPOVILLA, 2000).

Porém, não houve uma avaliação continuada dessa proposta, na prática foram introduzidos outros princípios e, em 1997, é produzido e publicado outro material por influência de questões políticas para capacitação de professores.