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Proposta de diferenciação do dever de cuidado do risco permitido

No documento O risco permitido em direito penal (páginas 64-67)

2.2 A DIFERENÇA ENTRE O DEVER DE CUIDADO E O RISCO PERMITIDO

2.2.2 Proposta de diferenciação do dever de cuidado do risco permitido

178 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Injusto e imputación objetiva en el delito imprudente. Tomo II. Barcelona, Junior, 1988. p. 183s.

179 FARIA COSTA, José de. O perigo em direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. p. 482.

180 Nesse ponto, Faria Costa traz o seguinte questionamento: “Imagine-se que A, controlador aéreo, leva a cabo uma rotina de tratamento de dados muito mais rápida do que aquela que resultaria do cumprimento minucioso das regras de cuidado vigentes. Para além disso, todo o serviço pratica uma tal rotina mais célere, nomeadamente nas situações de pressão resultantes de intenso tráfego aéreo. Sabe-se que outros organismos congéneres fazem a mesma rotina, aliás considerada como <<indispensável>> para anão provocar um bloqueamento do tráfego aéreo. Tal prática tem-se realizado desde o começo do funcionamento daquele serviço. Acontece que um dia, precisamente no turno de A, por não cumprimento daquela específica regra de cuidado, há um choque de aviões do qual resulta a morte de centenas de pessoas. Qual a responsabilidade de A, não em termos de afastamento de culpa, mas mesmo já na determinação objectiva do ilícito? Será que se pode resolver o problema, de um modo justo, nesta instância de imputação penal ou teremos que o solucionar unicamente no centro da responsabilidade penal que a culpa representa?” (FARIA COSTA, José de. O perigo em direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. p. 482s.)

A doutrina pouco discute acerca da diferença entre o dever de cuidado e o risco permitido. Tal questão aparece, para a grande maioria, como algo já pacificado, não havendo distinção entre os dois institutos.

Grande parte dos autores afirmam que o risco permitido e o dever de cuidado seriam, na verdade, sinônimos.181 Reyes Alvarado, por exemplo, sustenta a desnecessidade de diferenciar as figuras do risco permitido, do dever de cuidado e da adequação social. Para ele, ao considerarmos o risco permitido como elemento da teoria da imputação objetiva, as demais categorias desapareceriam, pois não seriam mais figuras autônomas dentro do sistema penal, estando, portanto, aglutinadas dentro do risco permitido. Um dos motivos proposto pelo autor para o abandono do dever de cuidado como critério e adoção apenas do risco permitido seria o fato de que este não levaria em consideração a intenção do agente, sendo aplicável tanto aos crimes culposos, como aos dolosos.182 Para Cirino dos Santos, o risco permitido seria, na

verdade, um atributo objetivo na delimitação do conceito do cuidado objetivo, ou seja, o risco permitido –o qual seria definido por normas regulamentadoras – teria como tarefa determinar o dever de cuidado existente.183

Pelo que vimos, o dever de cuidado tem um papel extremamente importante no tipo de ilícito negligente, abarcando uma série de análises diferentes a respeito da mesma conduta, falando-se em cuidado objetivo, subjetivo, interno e externo. Contudo, o risco permitido não possui esses mesmos desdobramentos. Diante disso, podemos questionar se ambos seriam, de fato, idênticos, ou se haveria uma distinção, ainda que mínima, entre eles, a qual em razão da necessidade de um estudo minucioso dessas categorias dificilmente é observada.

Como Faria Costa afirma, a categoria do cuidado é muito mais densa, de modo a abarcar uma série de análises as quais não são possuem relevância para a determinação do risco

181 Nesse sentido: WESSELS, Johannes. Direito penal. Aspectos fundamentais. Tradução do original alemão e notas por Juarez Tavares. Porto Alegre: Fabris, 1976. p. 153; RUEDA MARTÍN, María Ángeles. La concreción del deber objetivo de cuidado en el desarrollo de la actividad médico-quirúrgica curativa. In: Revista para el Análisis del Derecho. Nº. 4, 2009. p. 25; REYES ALVARADO, Yesid. Imputación objetiva. 3 ed. rev.y corregida. Bogotá: Editorial Temis S.S., 2005. p. 105; JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 5 ed. Renovada y ampliada. Tradución de Miguel Omedo Cardenete. Granada, Diciembre, 1993. p. 526; TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência. Uma contribuição à teoria do crime culposo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p. 283; CHOCLÁN MONTALVO, José Antonio. Sobre la evolución dogmática de la imprudencia. In: Actualidad Penal. 27/48, v. 2, 1998. p. 983; CUESTA AGUADO, Paz M. de la. Tipicidad e imputación objetiva. Según el nuevo Código Penal de 1995. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996. p. 154; GIL GIL, Alicia. FEIJOO SÁNCHEZ, B.: Resultado lesivo e imprudencia, Bosch, Barcelona, 2001. In: Revista de derecho penal y criminologia. 2ª Época. N. 16, 2005. p. 375; RAUSELL, Pedro Castellano. La responsabilidad penal de las atividades de riesgo. Madrid: Consejo General de Poder Judicial, 2002. p. 143.

182 REYES ALVARADO, Yesid. Imputación objetiva. 3 ed. rev.y corregida. Bogotá: Editorial Temis S.S., 2005. p. 101ss.

183 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Parte Geral. 5. ed. rev., atual. e ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. p. 163s.

permitido.184 Se vincularmos o risco permitido ao comportamento de acordo com as normas,185 poderíamos verificar que mesmo situações nas quais o agente age de acordo com as mesmas o dever de cuidado poderá ser infringido.

Verificar a diferença entre o risco permitido e o dever de cuidado não é uma tarefa fácil. De fato, a análise de casos concretos torna mais fácil a identificação das suas diferenças, no entanto não podemos limitar a identificação das diferenças aos casos concretos, devemos, necessariamente, encontrar pontos distintivos também no plano teórico.186

Ambos os conceitos são de extrema importância para o direito penal, contudo incidem em momentos diferentes na análise do injusto. O risco permitido relaciona a conduta realizada pelo agente com o perigo que ela cria para o bem jurídico; busca determinar quais as condutas não poderão ser consideradas como geradoras de perigo para os bens jurídicos que se buscam proteger. Já o dever de cuidado refere-se à conduta esperada em relação ao agente, ou seja, aos cuidados que ele deveria empregar no momento da ação.187

Pensemos aqui no seguinte exemplo: um catador de lixo, ao realizar o seu trabalho diário de coleta de lixo, encontra uma substância radioativa entre os materiais que coletava. O catador, sem ter conhecimento da perigosidade da substância, a dá de presente a uma criança, fazendo com que a substância se espalhe entre os moradores dos arredores. Não há dúvidas de que, nesse caso, o agente criou um risco proibido, pois a conduta dele cria uma possibilidade de lesão. Contudo, questiona-se: teria ele infringido o dever de cuidado?

Ao nosso ver, a resposta a este questionamento deve ser negativa, pois não se pode exigir que um catador de lixo tenha expertise suficiente para determinar quais substâncias são radioativas ou não. O agente, no caso concreto, não tinha capacidade de prever a ocorrência do resultado pois não tinha os conhecimentos necessários para fazê-lo. Nota-se, portanto, que não poderíamos falar aqui em desvalor da ação, pois a conduta praticada por ele, ainda que crie uma possibilidade considerável de dano, nada tem de desvaliosa. No entanto a sua ação cria,

184 FARIA COSTA, José de. O perigo em direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. p. 482.

185 Salientamos que essa não é a proposta do presente trabalho, de modo que tal conclusão foi trazida apenas com o intuito de ilustrar o exemplo em seguida mencionado, a fim de auxiliar na identificação da diferença entre dever de cuidado e risco permitido.

186 Uma das autoras que nos parece reconhecer que o dever de cuidado e o risco permitido não são categorias idênticas é Puppe, uma vez que afirma que nos casos em que o agente tenha violado o dever de cuidado e sobrevenha um resultado lesivo, este não poderá ser imputado ao sujeito se o perigo por ele criado for um perigo permitido. Em outras palavras, ainda que o comportamento do agente seja proibido, se o perigo por ele criado não o for, não se pode falar em imputação do resultado. (PUPPE, Ingeborg. Die Erfolgszurechnung im Strafrecht. dargestellt an Beispielsfällen aus der höchstrichterlichen Rechtssprechung. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2000. p. 103.)

187 CABRERA, Denis Adán Aguilar. Prolemática en la configuración del tipo penal culposo. In: Derecho y Cambio Social. Ano 12. N. 42, 2015. p. 22s.

sem dúvida, um risco proibido. O risco seria, portanto, um efeito da conduta praticada pelo agente, seria, portanto, perigo. Nessa concepção, o risco proibido incidiria, na verdade, sobre o desvalor do resultado, uma vez que a conduta praticada pelo catador de lixo gera, no mínimo, a possibilidade de ocorrência de lesão.

A grande diferença entre o risco permitido e o dever de cuidado estaria, portanto, no fato de que o primeiro excluí o desvalor do resultado, uma vez que consiste em estado de perigo relacionado ao bem jurídico; enquanto o segundo incide sobre o desvalor da ação, tendo em vista que o descuido – ou inobservância do dever de cuidado – consiste em uma característica da ação, ocasião em que se deve levar em consideração os conhecimentos e capacidades individuais do agente, o que não possui relevância para determinar se o risco era proibido ou permitido, sendo apenas necessário, neste caso, verificar se a conduta descuidada do agente – leia-se, a violação do dever de cuidado – criou uma possibilidade de dano. Nota- se, portanto, que o dever de cuidado incide em momento anterior do risco permitido, mas que ambas as categorias se relacionam, na medida em que para que se possa imputar o resultado ao agente precisa-se, primeiramente, que a conduta por ele praticada não tenha observado o dever de cuidado – seja, portanto, descuidada -, mas para além disso, deve a mesma criar um perigo para o bem jurídico criando, ao menos, uma possibilidade não insignificante de dano ao bem jurídico tutelado.

No documento O risco permitido em direito penal (páginas 64-67)