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CAPÍTULO 4 A LEI 10.639/03 NO CONTEXTO DAS BIBLIOTECAS DAS

4.2 O papel educativo das bibliotecas escolares de acordo com a Lei 10.639/03

4.3.1 A proposta ―Escola Plural‖

A proposta Escola Plural, de Belo Horizonte, buscou acolher e sistematizar teoricamente uma série de projetos e práticas pedagógicas consideradas inovadoras22, que já vinham acontecendo na Rede Municipal de Educação, em um projeto político- pedagógico. A idéia inicial, de acordo o Carderno 0 da Escola Plural, era captar os eixos

norteadores das diversas experiências educativas ―inovadoras‖ das escolas municipais

de Belo Horizonte com a finalidade de transformar estes eixos numa proposta coletiva para toda a Rede, assumindo isso como Política de Governo, dando visibilidade e legitimidade a estas práticas pedagógicas.

A construção dessa proposta envolveu a participação de profissionais do Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação (CAPE), da Secretaria Municipal de Educação (SMED), das administrações regionais do município, além de diretores escolares, coordenadores e professores. A proposta foi autorizada em 1994 pelo Conselho Estadual de Educação e implementada em todas as escolas da Rede a partir de 1995.

Propõe-se uma breve análise dos argumentos que fundamentam a proposta pedagógica Escola Plural e que podem ser encontrados, sobretudo, no Caderno 0, no Caderno 1 e no Caderno 2 da Escola Plural, produzidos e divulgados pela Prefeitura

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Apesar de sua complexidade e de seu uso muitas vezes polêmico, o termo ―inovadora‖ será usado aqui, pois é esta a expressão presente nos textos da Escola Plural para designar as propostas político - pedagógicas e as experiências escolares que apresentam mudanças significativas na organização do trabalho pedagógico e no trato com o conhecimento.Como ―inovações‖ na organização do trabalho pedagógico e na relação com o conhecimento pode-se destacar: a elaboração dos projetos político- pedagógicos das escolas, o reorganização de tempos de formação dos professores (horários de estudo e pesquisa), o reordenamento dos espaços e tempos escolares (aulas geminadas, salas -ambiente, turmas de tempo integral etc.), além de um movimento de renovação metodo lógica, que inclui o trabalho por projetos e situações-problema (BELO HORIZONTE, 1994, p.12).

Municipal Belo Horizonte. Sabe-se que o discurso não necessariamente reflete a prática e que as experiências vividas no cotidiano das escolas da Rede Municipal de Belo Horizonte têm revelado diversas formas de apropriação e ressignificação das idéias da Escola Plural, além de dificuldades na implantação do projeto, mas esses textos, como partes integrantes de políticas públicas, afetam diretamente a vida das pessoas e geram estratégias pedagógicas concretas. Textos de políticas públicas, educacionais ou não, não são equivalentes a textos acadêmicos, conforme afirma Ball (1997, p.18 apud CARVALHO, CAMARA e MOREIRA, 2003, p.2), ―são intervenções textuais na

prática‖.

Os eixos norteadores para a construção da Escola Plural, enunciados no Caderno

0, de 1994, são: ―Uma intervenção coletiva mais radical‖, ―Sensibilidade com a totalidade da formação humana‖, ―Escola como tempo de vivência cultural‖, ―Escola experiência de produção coletiva‖, ―As virtualidades educativas da materialidade da escola‖, ―A vivência de cada idade de formação sem interrupção‖, ―Socialização

adequada a cada idade-ciclo de formação‖ e ―Nova identidade da escola e nova

identidade do seu profissional‖ (BELO HORIZONTE, 1994, p.12-17).

Muitas das propostas em andamento na Rede Municipal de Belo Horizonte até a implantação da Escola Plural, de acordo com o Caderno 0, visavam reduzir a evasão e a reprovação escolar, sobretudo dos estudantes oriundos das classes populares. As escolas, portanto, reconheciam as diversas formas de exclusão presentes na sociedade e no interior das próprias instituições escolares e buscavam estratégias para superar essas dificuldades. Embora muitas escolas, individualmente, buscassem soluções para driblar a exclusão escolar, ao assumir como eixo norteador ―Uma intervenção coletiva mais

radical‖, a Escola plural enfatiza como uma plataforma coletiva para as escolas do

município não só a diminuição da evasão e da repetência escolar, mas, sobretudo ―(…) intervir nas estruturas excludentes do sistema escolar e na cultura que legitima essas

estruturas excludentes e seletivas‖ (Belo Horizonte, 1994, p. 13).

A proposta visa, portanto, superar esse modelo de escola que exclui em função da precedência de séries e da uniformidade, construindo uma escola de reconheça as diferenças: ritmos de aprendizagem, de gênero, de classe, de raça, de cultura etc. Assim, a Escola Plural apresenta-se não apenas como uma proposta que respeita as diferenças, mas também como um projeto político-pedagógico que considera essas diferenças como variáveis que devem fazer parte da proposta educativa da escola.

É importante destacar que a Resolução nº1, de 17 de junho de 2004 CNE/CP prevê como uma das obrigações dos sistemas de ensino a garantia de que os alunos, afro-descendentes ou não, possam freqüentar estabelecimentos de ensino comprometidos com o combate a qualquer forma de discriminação (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2004 b). O Parecer 03, de maço de 2004 também ressalta a marginalização histórica dos negros na educação escolar e os altos índices de evasão e reprovação dos estudantes desse segmento (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2004 a). Assim, esse eixo norteador da Escola Plural, enunciado em 1994, está em sintonia com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

O segundo eixo norteador da Escola Plural defende uma formação mais plural no âmbito da escola: postula a valorização da escola como espaço de vivências sócio- culturais, aberta para acolher as múltiplas culturas das quais os alunos participam para além dos muros da escola, bem como uma escola que ultrapasse os conteúdos curriculares através de projetos interdisciplinares com temas comuns às disciplinas, inserção das diversas formas de manifestações artísticas no cotidiano escolar e de projetos sobre sexualidade, história da comunidade ou sobre as identidades étnico- raciais (BELO HORIZONTE, 1994, p.13). Deve-se destacar que esse eixo norteador foi enunciado antes mesmo da aprovação da nova LDB e trazia aspectos de defesa da pluralidade cultural e da interdisciplinaridade que só se tornariam diretriz nacional dois anos depois.

O terceiro eixo ―Escola como tempo de vivência cultural‖ completa e determina o segundo ao apresentar a escola como um espaço público que deve estar aberto à vivência coletiva e à recriação da cultura local e regional. Propõe o alargamento dos rígidos tempos escolares para incorporar diversas modalidades de dança, músicas e oficinas, além de propor a transformação de festas e atividades extra-escolares em momentos de aprendizagem. Assim, a arte e a cultura deixariam de ser tópicos disciplinares isolados para perpassarem toda a realidade escolar. Além disso, defende uma maior ligação entre comunidade e escola. As atividades escolares poderiam ultrapassar os muros escolares e a comunidade integrar-se-ia à escola.

O eixo enuncia os pressupostos, cita exemplos de atividades, mas não explicita, por exemplo, como lidar com possíveis dificuldades como a existência, em uma mesma

comunidade, de culturas antagônicas ou até mesmo rivais. Ainda assim, assume como responsabilidade da escola abrir espaços para as diversas culturas, incluindo as diversas formas de manifestação das culturas afro-brasileiras.

O processo de ensino-aprendizagem na escola tradicional, de acordo com o Caderno O (BELO HORIZONTE, 1994, p.14), tem-se concentrado na transmissão- recepção de saberes e informações. O quarto eixo da Escola Plural estimula a superação dessa realidade de forma que professores e estudantes participem ativamente do processo de aprendizagem e de construção de conhecimentos através da gestão democrática e da proposição, por parte dos estudantes, de temas e desafios de pesquisa ligados às suas realidades. Esse eixo ressalta que os projetos desenvolvidos na capital mineira até aquele momento apontavam para uma construção-ressignificação dos saberes escolares de forma coletiva e que essa prática é importante para a formação de cidadãos autônomos e que vejam suas identidades presentes na escola.

A importância da materialidade no processo de formação escolar foi destacada

pelo eixo ―As virtualidades educativas da materialidade da escola‖. Para a construção de

uma escola de qualidade é preciso investir não só na formação de profissionais comprometidos com a construção de uma escola democrática e na reformulação de conteúdos e tempos escolares, mas também na possibilidade dos próprios espaços escolares serem ambientes democráticos e de formação (BELO HORIZONTE, 1994, p.15). Percebe-se que se atribui uma possibilidade formativa importante a todos os ambientes escolares. Nesse sentido, a biblioteca escolar poderia ser entendida, de acordo com os princípios da Escola Plural, como um lugar de grandes possibilidades educativas desde que apresentasse caráter acessível e estivesse baseada em princípios democráticos.

Os eixos ―A vivência de cada idade de formação sem interrupção‖ e a ―Socialização adequada a cada idade-ciclo de formação‖ apresentam e defendem a

proposição dos Ciclos de Formação Humana na qual os estudantes possam aprender com seus pares de idade, sem interrupção do processo de construção das habilidades e dos conhecimentos de cada período da vida. A idéia é que estudantes que podem e devem socializar e aprender com aqueles que passam por processos e experiências próximos aos seus, mas que, ao mesmo tempo, possam aprender com a diversidade de experiências, ritmos e saberes. A organização por ciclos tem como objetivo principal dar mais flexibilidade ao tempo de aprendizagem dos estudantes. Na medida em que os

conteúdos e as habilidades são pensados para um período mais extenso e não apenas para um ano letivo, é dado ao aluno um tempo maior para aprender e é garantida a continuidade de seu desenvolvimento no ano seguinte, junto com os colegas (BELO HORIZONTE, 1994).

Pode-se destacar também que, ao propor que a ênfase do processo de ensino-aprendizagem esteja nos sujeitos e na formação para a cidadania, a Escola Plural traz abertura para inclusão de determinados temas, antes excluídos ou restritos a alguns componentes curriculares, em todo o processo de formação e como parte integrante de todas as disciplinas como é o caso, por exemplo, do tema da diversidade cultural: ―A proposta é que esse currículo seja construído a partir da definição coletiva de temas que representem os problemas colocados pela atualidade, não de forma paralela às

disciplinas, mas transversais a elas (…)‖ (BELO HORIZONTE, 1994, p. 27-28).

A preocupação com o tratamento dado às diferenças orienta toda a proposta

da Escola Plural, de modo que a ―diversidade‖ é sugerida como um dos temas

transversais que devem organizar o currículo escolar. Mas a preocupação não é só com a pluralidade de culturas, há claramente um forte discurso em torno das diferenças individuais, por meio da ênfase atribuída aos variados ritmos de aprendizagem dos educandos. É, também, pelo respeito às diferenças individuais e aos ritmos distintos de aprendizagem que se introduz a organização do tempo por Ciclos de Formação Humana.

Para a construção dessa nova identidade da escola, a proposta curricular da Escola Plural também postula uma nova identidade do seu profissional, possibilitada por uma capacitação permanente dos professores e pela participação destes durante todo o processo educativo.

Observa-se, após esta breve análise, que os princípios que fundamentam a proposta da Escola Plural são a construção de uma escola inclusiva e democrática. Ela reflete uma concepção ampla de educação, por vezes até idealizada, que visa à formação plena dos educandos reconhecidos como sujeitos plurais. O respeito e a valorização da cultura dos estudantes, que deve ser inserida no processo educativo de maneira contextualizada, também é um aspecto importante dessa experiência.

É fato que nos discursos em prol da Escola Plural, as dificuldades para a

realização da proposta, os prováveis ―enfrentamentos‖ entre os ―diferentes‖ e as possíveis distorções no sistema (como o ―arrastamento‖ de determinadas dificuldades

para o final do ciclo) são pouco exploradas. Uma proposta curricular multicultural como a Escola Plural, que surgiu com o objetivo de respeitar a diversidade cultural e promover o entendimento entre diferenças, pode terminar por regular tal diversidade e preservar o que pretendiam evitar, ou seja, o ―confinamento‖ de crianças em sua própria cultura e a exclusão delas da sociedade como um todo.

De qualquer forma, a experiência da Escola Plural, em Belo Horizonte, que ampliou o debate sobre a diversidade e inclusão no cenário educativo do município, contribuiu para construir um ambiente bastante específico e distinto para a implantação da Lei 10.639/03.