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A Proposta de Jesus de Nazaré

3. A Realidade Social, Política, Econômica, Religiosa e Cultural em que viveu

3.3 A Posição Sócio-Religiosa de Jesus de Nazaré

3.3.1 A Proposta de Jesus de Nazaré

Segundo Jesus de Nazaré, o Reino de Deus já começou. Neste mundo as condições da construção desse reino não podem ser estabelecidas nem por uma intervenção totalitária, nem por uma ‘visionária retirada’ para uma ‘comunidade pura’. Tudo está junto como o joio e o trigo. É o senhor da messe e não os discípulos que farão a separação: Deixem crescer um e outro até a colheita. E no

tempo da colheita direi aos ceifadores: arranquem primeiro o joio, e o amarrem em feixes para ser queimado. Depois, recolham o trigo no meu celeiro! (Mt. 13, 30)

Portanto, a ação de Jesus não vai acontecer em um lugar sem conflitos e desafios, mas dentro da história, assim como ela se apresenta.

Segundo Jesus, os poderes do mal estão definitivamente derrotados, porque Deus começa a recuperar sua criação até então dominada pelo mal. É dentro da história humana que esta transformação acontece. Os fariseus perguntaram a Jesus

sobre o momento em que chegaria o reino de Deus. Jesus respondeu: “O reino de Deus não vem ostensivamente; nem se poderá dizer: ‘está aqui’ ou ‘está ali’, porque o Reino de Deus está no meio de vocês”. (Lc. 17, 20-21).

Jesus deixa claro também que suas atividades não estão ligadas ao Zelotas, para libertar Israel através de uma guerra santa, nem estão vinculadas ao nacionalismo de Israel ou ao templo, e nem mesmo aos atos de culto ou ao rigoroso cumprimento da lei.

A mensagem de Jesus é dirigida a todos, mas de forma especial aos mais marginalizados da sociedade que eram: os doentes, especialmente ‘os impuros’, os leprosos e os ’possessos de espíritos maus’, as mulheres inferiorizadas, as crianças, o cobradores de impostos, os pecadores e os desprezados pela religião. Portanto, Jesus tem por alvo principal de sua mensagem os pobres, vítimas do poder político- econômico e os pecadores, discriminados pelo poder religioso dominante. Por isso, ele é chamado de glutão e beberrão: Veio João que não come nem bebe e

disseram: ‘Ele está com um demônio’. Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ‘Ele é um comilão e um beberrão, amigo dos cobradores de impostos e dos pecadores’. (Mt. 11-18-19).

Em várias oportunidades, Jesus quebra os tabus de caráter sócio-religioso, considerados sagrados e intocáveis pelos judeus. Por exemplo, ele cura da mulher que sofria fluxo de sangue, mantendo, assim, estreito relacionamento com os

‘impuros’. Ao deixar-se tocar pela mulher, segundo a tradição, Jesus torna-se também impuro; ele quebra esse tabu:

Neste momento, chegou uma mulher que fazia doze anos vinha sofrendo de hemorragia. Ela foi por trás e tocou a barra da roupa de Jesus, porque pensava: ’Ainda que eu toque só na roupa dele, ficarei curada’. Jesus virou-se, e, ao vê-la disse: ‘Coragem, filha! Sua fé curou você’. E desde esse momento, a mulher ficou curada. (Mt. 9, 9,20-22).

Jesus apresenta um Deus bondoso, rico em misericórdia, sempre pronto a perdoar, sem prévios atos de penitência. É o Jesus da parábola da vinha. Assim, entra em conflito uma religiosidade e uma moral com base nas obras ou num sistema de trocas, ou seja, Jesus vai além de uma ‘religiosidade comercial’, inaugurando uma forma gratuita de relacionamento com Deus:

De fato, o Reino do Céu é como um patrão que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha. Combinou com os trabalhadores uma moeda de prata por dia, e os mandou para a vinha. Às nove horas da manhã, o patrão saiu de novo. Viu outros que estavam desocupados na praça, e lhes disse: ‘Vão vocês também para a minha vinha. Eu pagarei o que for justo’. E eles foram. O patrão saiu de novo ao meio dia e às três horas da tarde e fez a mesma coisa. Saindo outra vez pelas cinco horas tarde, encontrou outros que estavam na praça e lhes disse: ‘Por que vocês estão aí o dia inteiro desocupados?’ Eles responderam: ‘Porque ninguém nos contratou’. O patrão lhe disse: ‘vão vocês também para a minha vinha’. Quando chegou a tarde, o patrão disse ao administrador:’Chame os trabalhadores e pague uma diária a todos. Comece pelos últimos e termine pelos primeiros’. Chegaram aqueles que tinham sido contratados pelas cinco da tarde, e cada um recebeu uma moeda de prata. Em seguida, chegaram os que tinham sido contratados primeiro, e pensavam que iam receber mais. No entanto, cada um deles recebeu também uma moeda de prata. Ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Esses últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro!’. E o patrão disse a um deles: ‘Amigo, eu não fui injusto com você. Não combinamos uma moeda de prata? Tome o que é seu e volte para sua casa. Eu quero dar também a esse, que foi contratado por último, o mesmo que dei a você. Por acaso não tenho direito de fazer o que eu quero com aquilo que me pertence? Ou você está com ciúme porque estou sendo generoso?’. Assim os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos. (Mt. 20, 1-16).

Desta forma, a lógica de Jesus é outra. Em seu Reino não devem existir marginalizados. Todos têm o mesmo direito de participar da bondade e da misericórdia de Deus. No Reino de Jesus não há lugar para ciúmes e o que conta é a necessidade das pessoas. Aqueles que julgam ser mais merecedores que outros devem aprender que o Reino de Deus, segundo Jesus, é dom gratuito.

Pois, ao sentir-se assim aceito por Deus é-lhe possível aceitar-se a si mesmo e sua culpa sem medo. Só assim se lhe abre a oportunidade de uma restauração criativa de sua vida... O fariseu que, com a ajuda das suas ‘boas obras’ reprime o seu lado negativo, omite a verdade da sua vida e conseqüentemente perde também a sua justificação perante Deus. Por esta ‘mentira da vida’ torna-se hipócrita no sentido existencial. (Hoffmann, 1998, p. 22-23).

Jesus mostra que o tratamento dado a Deus não precisa estar carregado de reverência, temor e tremor, mas como os filhos e as filhas tratam despreocupadamente seus pais na convivência e linguagem do dia-a-dia, sem subordinação ou infantilismo, mas com aquela experiência primordial, acolhedora, plena da força paternal e da ternura materna.

Portanto, Jesus apresenta um Deus que oferece ao ser humano possibilidades de reconciliação consigo mesmo e com os demais seres humanos. A história do Filho Pródigo deixa claro que há sempre oportunidade para o ser humano reencontrar-se. O fracasso e o erro nem são lembrados pelo pai, nesta parábola, porque, o que interessa para ele é ver o filho com vida e recuperado.

Jesus continuou: ‘Um homem tinha dois filhos. O filho mais novo disse ao Pai: ‘Pai me dá a parte da herança que me cabe’... Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E aí esbanjou tudo numa vida desenfreada. Quando já tinha gastado tudo o que possuía, houve uma grande fome nessa região, e ele começou a passar necessidade... O rapaz queria matar a fome com a lavagem que os porcos comiam, mas nem isso lhe davam. Então, caindo em si disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm fartura e eu aqui morrendo de fome... Vou me levantar e vou encontrar meu pai... Então levantou-se e foi ao encontro do pai. Quando ainda estava longe, o pai o avistou e teve compaixão. Saiu correndo, o abraçou e o cobriu de beijos. Então o filho disse: ‘Pai pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho’. Mas o pai disse aos empregados: ‘Depressa, tragam a melhor túnica para vestir meu filho. E coloquem um anel em seu dedo e sandálias nos pés. Peguem um novilho gordo e o matem. Vamos fazer um banquete, porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. (Lc. 15,11- 25)

A mensagem de Jesus causava impacto nas pessoas, pois, seus princípios básicos eram diferentes de todos os conteúdos religiosos que circulavam na época, em todo o império romano e fora dele. Não é mais a ‘lei divina’, ‘o templo’ ou o ‘culto’ que ocupam o lugar central, mas a pessoa humana. Em qualquer situação, Jesus coloca o ser humano acima da lei vigente, por mais sagrada que ela possa parecer e proclama que a lei foi feita para o ser humano e não contrário. O impacto dessa

mensagem torna-se imenso, numa sociedade judaica que colocava a lei e as tradições acima de qualquer circunstância.

Enquanto Jesus ia quebrando as estruturas de sua sociedade, os líderes buscavam uma forma de eliminá-lo, pois ele estava se tornando ‘perigoso demais’ para eles; só não eliminaram Jesus imediatamente porque tinham medo do povo, pois este estava maravilhado com essa nova proposta de vida.

Assim, Jesus relativizava, por exemplo, o sagrado mandamento do sábado:

Num dia de sábado Jesus estava passando por uns campos de trigo. Os discípulos iam abrindo caminho e arrancando as espigas. Então os fariseus perguntaram a Jesus: ‘Vê: Por que os teus discípulos estão fazendo o que não é permitido no dia de sábado’? Jesus perguntou aos fariseus: ‘Vocês nunca leram o que Davi e seus companheiros fizeram quando estavam passando necessidade e sentindo fome? Davi entrou na casa de Deus, no tempo em que Abiatar era sumo sacerdote, comeu dos pães oferecidos a Deus e os deu também aos seus companheiros. No entanto, só os sacerdotes podem comer desses pães’. E Jesus acrescentou: ’O sábado foi feito para servir o homem e não o homem para servir o sábado. Portanto, o Filho do Homem é senhor também do sábado’. (Mc. 2,23-28)

São inúmeras as ocasiões e situações narradas pelos Evangelhos nas quais Jesus vai quebrando as regras mais sagradas dos Judeus, desde que estas venham prejudicar a vida do ser humano. Jesus, em todas as suas mensagens, mostra-se sempre centrado no ser humano e diz categoricamente que esta é a razão pela qual ele veio ao mundo. O culto e o templo perderam seu sentido como lugares privilegiados da presença de Deus. Para Jesus não há mais distinção entre puro e impuro, profano e sagrado. Pode-se dizer com Kant que, com Jesus ocorreu a “a virada de Copérnico” ou “revolução copernicana” na interpretação religiosa do mundo. Jesus apresenta uma nova e radical forma de se ver e viver a lei de Deus, conferindo ao ser humano uma autonomia tal, que o liberta das amarras dos mandamentos, leis e rituais. Ele vai mais longe: os evangelhos mostram que Jesus confere ao ser humano o título de ‘senhor do sábado’ e ‘senhor da lei’. Estabelece um novo paradigma para as relações dos seres humanos entre si, substituindo a velha idéia de clã, pelo princípio de uma reciprocidade incondicional: Se amais só

aqueles que voa amam, se saudais só os vossos compatriotas, qual é o vosso mérito? Não fazem isso também os cobradores de impostos e os pagãos? (Mt. 5,

46).

A parábola do bom samaritano ilustra bem qual deve ser o conceito de ‘próximo’:

Mas o especialista em leis, querendo justificar disse a Jesus: ‘E quem é o meu próximo? Jesus respondeu: ‘Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois, foram embora e o deixaram quase morto. Por acaso, um sacerdote estava descendo por aquele caminho; quando viu o homem, passou adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu e passou adiante pelo outro lado. Mas, um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu, e teve compaixão. Aproximou- se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois, colocou o homem em seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, pegou duas moedas de prata e as entregou ao dono da pensão, recomendando: ‘Tome conta dele. Quando eu voltar, vou pagar o que ele tiver gasto a mais’. E Jesus perguntou: ‘Na sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes’? O especialista em leis respondeu: ‘Aquele que praticou misericórdia para com ele’. Então Jesus lhe disse: ‘Vá e faça a mesma coisa’. (Mt. 10, 29-37)

Jesus coloca a posição dos personagens de forma muito significativa e revolucionária nesta parábola: o sacerdote e o levita são representantes da religião e a pessoa assaltada, um compatriota deles. Samaritanos e judeus eram inimigos. Mas, foi um samaritano que prestou socorro, porque, para Jesus, o critério de ser próximo do outro não é mais delimitado pela cultura, religião, nacionalidade ou qualquer outro, mas pela necessidade. Basta que seja um ser humano. O próximo é aquele que se encontra no caminho. Não há mais fronteiras para a prática da solidariedade humana. Assim ele descarta qualquer idéia de clã.

Enfim, a proposta de Jesus leva à construção de um novo mundo, no qual será colocada em prática uma proposta diferente daquela contida no Príncipe de Maquiavel, segundo a qual é necessário ser mau para sobreviver.