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2 REFAZENDO AS PEGADAS EM PRETO E BRANCO: A

3.3 EM CENA: A FILHA, A ESPOSA, A MÃE, A PRO FESSORA

4.1.1 Uma prosa sobre o conto

Forma discreta e vibrante de ser poeta e realista em poucas palavras, universal e sintética, ao mesmo tempo.

Haydée Nicolussi

Esse gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos.

Julio Cortázar

Entre os estudiosos da teoria sobre o conto, é possível se constatar pelo menos dois grupos distintos: os que se empenham na busca de definições e formas e os que rejeitam a prescrição de regras e definições. Como representantes de tais grupos temos, entre outros, o uruguaio Horacio Quiroga, com seu Decálogo do perfeito

contista, e o tupiniquim Mario de Andrade, em Contos e contistas, respectivamente.

Já entre os contistas parece haver o consenso de que se dedicar à escrita dessa forma literária não é algo tão simples quanto parece aos mais desavisados. Foi o francês Guy de Maupassant, que viveu na segunda metade do século XIX, quem disse que escrever contos era mais difícil do que escrever romances. Corrobora a

afirmação um dos maiores contista brasileiros, Machado de Assis, ao declarar, em 1873, que “é gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade”. A esse respeito, Coelho (2007) assinalou que, na literatura portuguesa, por volta da segunda metade do século XIX, por parecer um “gênero fácil”, o conto atraiu muitos principiantes que almejavam ingressar na carreira de escritores, que nem sempre mantiveram um bom nível literário de seus textos.

Embora não se possa precisar o seu início, sabe-se que essa arte remonta aos primórdios da vida humana em comunidade. Trata-se da natureza humana contar (do latim, computare que, a partir do século XV, em português, adquire o sentido de enumerar os detalhes de um acontecimento), bem como ouvir histórias, da necessidade de comunicar-se. Considerando-se que, num primeiro momento, a transmissão das histórias era feita oralmente, não é difícil de imaginar o quanto os “contadores” interferiam nas versões recebidas, por certo já nem tão originais assim, de acordo com a sua imaginação para fabular fatos e acontecimentos que se tornassem mais atrativos e sedutores àqueles seus interlocutores. Afinal, como diz o ditado: quem conta um conto, aumenta um ponto.

No mesmo dicionário eletrônico, já citado anteriormente, Coelho (2007) afirma que

[...] o conto surge no Brasil, nos primeiros séculos de colonização, difundido pelos portugueses, como narrativa oral. Assim o acervo dessa primitiva narrativa tem a mesma origem que a portuguesa; e ainda hoje circula entre o povo, principalmente nas regiões norte-nordeste, embora com variantes em que se cruzam influências africanas e indígenas.

Isso, é claro, se não considerarmos que na cultura indígena essa prática já existia. Na primeira metade do século XIX, escritores como Joaquim Norberto, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Casimiro de Abreu ensaiavam-se nos contos. Mas foi somente no final daquele século que Machado de Assis inscreveu seu nome como o maior contista brasileiro com sua obra atemporal.

Também é datada desse período, a iniciação das mulheres escritoras no gênero. Em 1886, com Contos infantis, surgem os nomes de Julia Lopes de Almeida e sua irmã Adelina Lopes Vieira. Mais voltada para a função pedagógica do que para a literária, a obra se compromete com os ideais da corrente positivista então em vigor. Assim, à

mulher escritora foi aberto esse canal de comunicação com os leitores não-adultos. Ninguém melhor que elas para buscar na narração de histórias “uma maneira de seduzir, encantar, prender, a atenção, e, por fim, de educar” (GENS, 2003, p. 116).

Figura entre os contistas capixabas, a poeta, revolucionária e romântica- no dizer de Francisco Aurélio Ribeiro, no prefácio da reedição de Festa na sombra- Haydée Nicolussi (1905-1970) fora

[...] a mais importante escritora capixaba de sua geração. Desde cedo, a jovem adolescente, formada professora aos 16 anos, presenteava suas amigas com “continhos”, [que escrevia] em grandes folhas de papel almaço, ilustradas a lápis de cor e amarradas com vistosos laçarotes (RIBEIRO, 2005, p. 5).

Esse, então, passaria a gênero predileto da escritora. Em 1927, publica “A lenda do purgatório”, que viria a iniciar uma série de contos com temática bíblica, mítica ou indianista. Um ano depois, viria a fazer seu primeiro trabalho remunerado, que também é considerado seu primeiro conto infanto-juvenil: “O Símbolo Supremo” (RIBEIRO, 2005, p. 8).

Antes dela, porém, na contramão da incursão literária experimentada pela maioria das escritoras que, até por volta das três primeiras décadas do século XX, iniciaram- se na poesia, encontramos, também no Espírito Santo, a são-pedrense Maria Antonieta Tatagiba. Como não há registro, até o momento, de poemas de Antonieta sendo publicados em jornais e revista anterior ao “Noite de Reis (Falando à minha filhinha)” (TATAGIBA, 1924), cremos que a escritora iniciou sua exposição pública no mundo das letras escrevendo contos.

O conto inédito que leremos na seção a seguir, “A cruz da estrada” (TATAGIBA, 1922),6 trata-se do único que Maria Antonieta Tatagiba conseguiu publicar. Dos quatro que a escritora enviou ao periódico O Jornal, do Rio de Janeiro, somente ele, o primeiro, de 12/10/1922, fora selecionado. Os outros são “O pedido de casamento” (20/03/1923), “A boa companheira” (19/04/1923) e “A última vontade” (20/07/1923). Ao que tudo indica, o fato de não ter obtido sucesso com esses últimos tenha levado

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Recolhi o referido conto, em maio/2007, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Feita atualização ortográfica.

a jovem a julgar que não eram bons e, com isso, tenha se desestimulado de continuar na prosa, passando, então, à poesia: seguramente, até então, o gênero mais utilizado para a expressão da alma feminina.

O conto “A cruz da estrada” e, a julgar pelo título dos demais contos de Antonieta, traz como personagem central uma mulher. Coloca os sentimentos, desejos e frustrações de uma jovem do início do século XX em confronto com os anseios e imposições da sociedade falocrata. Embora seja esse texto apenas o ensaio de uma contista, “A cruz da estrada” extrapola aquele tipo de escrita que se esperava das escritoras, nessa época: “subjetiva, terna, presa ao lar e à família, tradicionalista” (RIBEIRO, 2003, p. 12) porque mostra a mulher fragmentada, tentando (re)construir- se do entrelugar que ocupa no mundo. Um mundo cujas forças sociais (casamento por interesse) a impedem de dar vazão às forças psicológicas (desejo de ser livre para escolher). Passemos ao conto, então.

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