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4 REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO BO BRASIL

4.2 A prostituição como profissão

Dentro do contexto de surgimento e evolução do Direito do Trabalho, passou-se a suscitar o caráter laboral da prostituição a partir do advento dos movimentos sociais ligados às prostitutas, que avocando o direito à construção da própria identidade, passaram a propagar a idéia de que a prostituição deveria ser tratada como um trabalho e de quem exerce a atividade, como um profissional do sexo ou trabalhador do sexo.

Atualmente, a denominação “profissional do sexo” é até um ponto de controvérsia dentro do movimento, já que parte dele entende que esse termo atuaria como uma espécie de máscara, ou roupagem nova, para o estigma em relação à prostituição, e em nada contribuiria para desconstruí-lo, defendendo, assim, que quem trabalha nessa atividade deve ser chamado como sempre foi, prostituta ou ainda “puta”.

Atribuir à prostituição o caráter de profissão relaciona-se primordialmente ao fato de que quem exerce essa atividade faz dela seu meio de vida, donde extrai sua renda, exercendo-a com regularidade, negociando as condições de realização do ato sexual, o preço do serviço, o local de realização etc. Considerando-se estas condições, é certo que a atividade se reveste de muitas características próprias de uma profissão, no entanto, tal fato por si só não é suficiente para considerá-la como um trabalho.

No país, uma das conquistas do movimento que luta pelos direitos das prostitutas, neste campo, foi a classificação da prostituição como profissão pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Sob um código específico, abrigou-se a prostituição dentro de uma categoria denominada de profissionais do sexo, que por sua vez fazia parte da família “prestador de serviço”, prosseguindo, como ocorre com as demais ocupações, com uma serie de detalhamentos acerca do exercício da atividade.52

Em esclarecimento a respeito do assunto, o referido órgão explica que para eles o objetivo do código não é promover profissões, mas apenas conferir maior credibilidade às estatísticas oficiais, e, principalmente, possibilitar o desenvolvimento de políticas públicas53. No entanto, não menosprezando a importância do fato para uma

mudança de postura em relação à regulamentação da atividade, há quem entenda que o reconhecimento por parte do Ministério do Trabalho do Brasil da “profissional do sexo” como uma trabalhadora [...] além de inovador, em se tratado de modelo tradicionalmente adotado no país para o enfretamento da questão da prostituição, mostra-se de grande relevância no processo em que se busca romper com a exclusão e garantir a cidadania para as “profissionais do sexo”.54

Com a aprovação, em 2009, do Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos,o Poder Executivo consolida sua postura no sentido do reconhecimento da prostituição como profissão, como se depreende do seguinte trecho do referido documento: “realizar campanhas e ações educativas para desconstruir os estereótipos relativos às profissionais do sexo” 55, incluso dentro do objetivo estratégico que agrupa

uma série de ações programáticas que visam à defesa da plena cidadania das mulheres. Para que seja considerada como uma profissão, uma atividade precisa, sobretudo, estar de acordo com o que preceitua o ordenamento jurídico vigente no país onde se pretende exercê-la. No Brasil, dispõem sobre o assunto a Constituição Federal, a legislação trabalhista, quando se tratar de relações de emprego, o Código Civil e o estatuto de cada profissão, caso esta venha a necessitar de regulamentação específica.

52

RODRIGUES, Marlene Teixeira. Polícia e prostituição feminina em Brasília: um estudo de caso. 2003. 369 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2003. Disponível em: <http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/10482/1585/11/2003_Marlene_Teixeira_Rodrigues.pdf > Acesso em: 03 de maio 2010, p. 169.

53

ALMEIDA, Patrícia Donati. As improbidades da regulamentação da prostituição pelo Ministério do

Trabalho. Disponível em <http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20081103135931798 >. Acesso

em: 03 de maio 2010. 54

RODRIGUES, Marlene Teixeira. Op. Cit., p. 168.

55

.SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 7. 037, de 21 de dezembro de 209. Institui o Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos. Disponível em <http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em 23 de maio 2010, p. 92.

Assim, em que pese as iniciativas no âmbito do Executivo representarem um avanço no combate ao estigma da prostituição, dando visibilidade a este grupo social, o reconhecimento profissional defendido pelo movimento de prostitutas vai além dessas ações, almejando um status legal definitivo, pois no atual contexto, atribuir o caráter de profissão a uma atividade assegura a ela uma série de direitos que, no caso, não encontram respaldo em nosso ordenamento jurídico, como analisaremos a seguir.

No exercício da prostituição, podemos diferenciar dois tipos de relação. A primeira se assemelharia a uma relação de emprego, quando a atividade se realiza pela intermediação de um terceiro, espécie de empresário do ramo. Assim a relação principal realizaria-se entre o empresário e quem exerce a prostituição. Já na segunda, poderíamos tomar este exercício como uma prestação de serviços, pois nesta a oferta acontece diretamente entre quem se prostitui e quem paga pelo serviço, usufruindo-o.

Na primeira situação, mediante o perfeito enquadramento fático, considerando-se os requisitos da subordinação, habitualidade, pessoalidade etc., poderíamos ter essa relação regulada pelo Direito do Trabalho. Ocorre que na legislação trabalhista, de acordo com a teoria do contrato de trabalho, há a previsão para a nulidade do respectivo contrato, quando este tenha por objeto relação considerada ilícita.

De acordo com Maria Alice Monteiro de Barros56:

[...] a atividade exercida pela meretriz em um prostíbulo é ilícita, por ser contraria aos bons costumes, logo não produz qualquer efeito, e sequer a retribuição lhe será devida. O conceito de comportamento contrário aos bons costumes se deduz quando ‘a consciência social o repugna e considera indigno de amparo jurídico o resultado prático do negócio’

Já na segunda situação, poderíamos aplicar, em tese, o nosso Código Civil, que atua de forma residual, quando a relação não se afigura como relação de emprego, devendo se subsumir às regras próprias da teoria do negócio jurídico, o que leva esta segunda situação à solução idêntica a da anterior, pois, de acordo com a leitura da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), em seu art. 17, “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.”

A respeito do tema,

56

saliente-se que a Alemanha, visando a melhorar a situação jurídica e social das prostitutas, editou a lei de 20 de dezembro de 2001, em vigor a partir de 1º de janeiro de 2002, admitindo possa a atividade prostitucional ser objeto de uma relação empregatícia, como por exemplo entre a prostituta e o bordel. Reconheceu também a validade do contrato disciplinado pela legislação civil entre a prostituta free lancer e o seu cliente. Deixou, portanto, de ser aplicado a essas situações o §138 do BGB (Código Civil Alemão), que considera nulos os negócios jurídicos contrários aos bons costumes. Logo, se tradicionalmente os bons costumes consideravam inadmissível o comércio de favores sexuais, como objeto de um negócio jurídico, a situação atual é diversa e revela que o conceito de bons costumes varia de acordo com o lugar e com o momento histórico. 57

Como analisado no primeiro capítulo deste trabalho monográfico, a concepção da prostituição como uma atividade imoral, e, por conseguinte, contrária aos bons costumes, tem origem no estabelecimento do paradigma moral baseado na realização do ato sexual primordialmente para fins reprodutivos e dentro do casamento.

Na atualidade, considerando a mudança de valores ocorrida em nossa sociedade, não predominando mais o citado paradigma moral, o caráter de atividade ilícita atribuído à prostituição, em decorrência de pretensa ofensa aos bons costumes, é extremamente questionável, somente se justificado pelo forte preconceito que predomina em relação à atividade, senão vejamos alguns julgados nesse sentido:

RELAÇÃO DE EMPREGO. JOGO DE BICHO. A atividade ilícita não admite consagração do contrato de emprego. Assim, não podem gerar direitos e obrigações trabalhistas as atividades de "jogo de bicho", prostituição, pistolagem e semelhantes.58

‘JOGO DO BICHO’ - CONTRATO ILÍCITO - ATIVIDADE TOLERADA - ILICITUDE DO OBJETO. Ao Magistrado compete cumprir e fazer cumprir a lei, daí não se acatar a licitude do objeto em contrato de serviços ligado ao famoso "jogo do bicho", que é atividade legalmente reconhecida como ilícita e punível na esfera criminal. A prática de atividades ligadas ao "jogo do bicho" é mero esforço físico, não constituindo trabalho, portanto, jamais gerando relação de emprego. A se adotar a regra de validar todas as atividades, estar-se-ia diante do absurdo de admitir a atividade do traficante de drogas e mesmo da prostituição. Recurso desprovido.59

57

AMADO, João Leal Apud BARROS, Maria Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 518.

58

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Recurso Ordinário - 16635/91. Relator: Antônio Miranda de Mendonça. Publicado em 27/11/1992. Disponível em <www.mg.trt.gov.br>. Acesso em 31 de maio 2010.

59

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região Recurso Ordinário - 8465/91. Relator José Menotti Gaetani. Publicado em 07/08/1992. Disponível em <www.mg.trt.gov.br>. Acesso em 31 de maio de 2010.

Porém, sendo superada a questão da afronta aos bons costumes, através de uma disposição legal que se manifeste em favor da profissionalização da prostituição, propugnando sua licitude, restaria ainda o pensamento defendido por determinados segmentos da sociedade de que a regulamentação dessa atividade, como meio de acesso aos direitos trabalhistas, iria de encontro ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Essa visão, defendida, sobretudo por feministas e religiosos, apóia-se na idéia de que a prostituição reduziria o corpo humano a mero instrumento para satisfação do prazer sexual alheio, já que, segundo esse entendimento, a troca de serviços de natureza sexual por dinheiro retiraria da mulher a autonomia sobre o próprio corpo, sendo responsável por um processo de coisificação, mercantilização e exploração da sexualidade da mulher, em que seu corpo seria transformado em objeto para uso e controle dos homens, conseqüência do pensamento baseado na dominação masculina.

O que se percebe, na verdade, é que esse discurso justifica a si mesmo, forçando uma situação e propondo-se a solucioná-la, pois ao se fundamentar em concepções reducionistas da prostituição, relacionado-a à exploração sexual, à discriminação de gêneros, à falta de alternativas de ocupação, nega o dinamismo social, as conquistas femininas, os avanços políticos, jurídicos e sociais nesse tema, perpetuando um contexto social em que a mulher é concebida como um ser incapaz de gerir sua sexualidade, sua vida, sendo um eterno ser frágil, sem desejo e oprimido.

Nesse discurso costuma-se associar a prostituição à venda do próprio corpo. Essa noção de domínio de um indivíduo sobre o corpo de outrem nos remete a fatos históricos como a escravidão de negros africanos, o holocausto e, como prática encontrada ainda na atualidade, a escravidão por dívidas. Nesse tipo de situação, pode- se dizer que há a coisificação do ser humano, pois este é destituído de seus maiores bens, o direito à vida e o direito à liberdade. Tratado como objeto destituído de vontade, o ser humano é concebido como mero instrumento para consecução de fins egoísticos.

Sobretudo, em combate a este tipo de violência é que se erigiu o princípio da dignidade da pessoa humana. Elevado a fundamento da República Federativa do Brasil, de acordo com o art. 1º, inc. III, da CF/88, atua como principio matriz, servindo como norma orientadora das demais, no sentido de se considerar o ser humano como um fim em si mesmo, não devendo, portanto, ser submetido a qualquer tipo de tratamento que o retire dessa condição, respeitando-se a plenitude de sua existência.

É preciso, dessa forma, distinguir o fenômeno da prostituição de práticas que atentam contra a liberdade do indivíduo. Nessa atividade não temos como característica própria o constrangimento para realização de atos sexuais. O que há é uma oferta (voluntariedade) de serviços sexuais, de forma limitada, sempre se estabelecendo um período, determinado-se o que será feito, e a partir daí estabelecendo-se valores como contraprestação pelo serviço prestado. Assim, “uma prostituta não vende a si ou mesmo seus órgãos sexuais, como normalmente se admite, mas contrata o uso de serviços sexuais. [...] O corpo e o ser da prostituta não são oferecidos no mercado”. 60

Ademais, ao relacionar a prostituição à escravidão, à exploração sexual de crianças e adolescente, ao tráfico de pessoas e a violência sexual propriamente dita, propaga-se uma visão distorcida desse fenômeno social. Nessa atividade não existe uma violência intrínseca, já que a prática de atos sexuais, quando ocorre entre adultos, tomadas as devidas precauções, é comum e saudável, ocorrendo por razões as mais diversas, seja por amor, seja por mero prazer, seja também em troca de pagamento.

O argumento da impossibilidade de manifestação da vontade na realização dessa atividade , quando em condições precárias de subsistência, não justifica de forma alguma a manutenção da prostituição na ilegalidade, vez que eleva a questão a tal ordem de abstração, que a maioria das ocupações humanas deveriam ser, assim, proibidas, já que é comum atribuir-se ao trabalho o caráter de uma obrigação que se realiza para sobrevivência, privilegiados são aqueles que exercem ofícios a que devotam prazer.

Não obstante o exposto, não é confinando uma atividade à marginalidade que se resolve problemas sócio-econômicos, notadamente da falta de meios de subsistência para a população. Ainda que estes problemas fossem minorados, tal fato não garantiria o fim da prostituição, já que a atividade não se apresenta apenas em países com alta desigualdade econômica, apesar de essa condição social contribuir para o incremento da atividade, diante da facilidade de sua realização, não tem com ela uma relação de causa e efeito, devendo-se compreender a prostituição como fenômeno complexo, que pode ser encontrado em todos os países, nas diversas classes sociais.

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