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«Eu forcei-me a contradizer-me a mim próprio de forma a evitar sujeitar-me ao meu próprio gosto.»

marcel duchamp

Para Marcel Duchamp, a apropriação de determinado objecto é antes de mais conside- rada como pretexto para a libertação do objecto e o facto de utilizar o já feito e não o aceitar como dado, entende-se como recusa da sua linearidade.

A transformação do objecto pré-fabricado em obra de arte transforma-se num processo de escrita no qual Duchamp trabalha as possíveis oscilações do seu signifi- cado, desenvolvendo processos de deslocamento do objecto através da adição de ins- crições, dividindo-o interiormente de modo a obter dois objectos dentro do mesmo e evidenciando a sua inutilidade enquanto proposta de imersão contemplativa.

A noção de apropriação como dupla significação, que se defende como implícita à obra de Marcel Duchamp, tem como principal argumento a substituição e redenomi- nação do sentido do objecto e a possibilidade da sua divisão interna, excluindo uma leitura unidireccional do seu referente e conferindo-lhe o acesso à palavra, não apenas pelo seu significado dado, mas depositando esse significado no território da escrita.

Esta posição assume-se como negação do valor representativo do objecto artísti- co, reclamando a sua dessacralização, como escreve posteriormente Walter Benjamin, privilegiando a inversão do objecto do quotidiano pela conversão do seu valor de uso em valor expositivo.

Duchamp problematiza a banalização da obra de arte e testa-a, questionando a noção de tradição e as convenções da representação pictórica, contestada igualmente pelos movimentos das vanguardas históricas, com quem se relacionou mas nunca totalmente integrou.

estratégias de apropriação nas vanguardas

Na conferência onde apresentou o texto The Creativ Act146

Sei que esta afirmação não merecerá a aprovação de muitos artistas que recusam este papel mediúnico e insistem na validade da sua plena consciência durante o acto criativo — e no entanto a História da Arte tem, inúmeras vezes, baseado as virtudes de uma obra em considerações completamente independentes das explicações racionais do artista.»

, Duchamp define o papel do espectador como interveniente do processo criativo e circunstância de pros- peridade da própria obra de arte:

«Aparentemente, o artista age como um ser ‘mediúnico’ que, do labirinto para lá do tempo e do espaço, procura o seu caminho até uma clareira. Se concedemos ao artista os atributos de um “médium”, devemos então negar-lhe a faculdade de estar plenamente consciente, no plano estético, do que ele faz ou porque o faz - todas as suas decisões na execução artís- tica da obra permanecem no domínio da instituição e não podem ser traduzidas numa auto-análise falada, escrita ou mesmo pensada. (…)

Milhões de artistas criam, apenas alguns milhares são discutidos ou aceites pelo especta- dor e menos ainda são consagrados pela posteridade.

Em última análise, o artista pode gritar aos ventos que é um génio, mas terá de aguardar o veredicto do espectador para que as suas declarações ganhem valor social e para que, finalmente, a posteridade o cite nos manuais de História da Arte.

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146Conferência realizada em Abril de 1957 na Convention of the American Federation of Arts, Houston,

Texas, que tinha como participantes: Rudolph Arnheim (n. 1904), Gregory Bateson e o próprio Marcel Duchamp.

147duchamp, Marcel – Le processus creátif in Op. Cit., duchamp, p. 187-188.

Para Duchamp, na construção da obra de arte como criação independente, está implí- cita uma operação que liga o artista, o espectador e a influência imprevisível do acaso. Na coexistência destes factores, sobre os quais o artista tem um mínimo controlo consciente, existe sempre um desajuste entre intenção e realização. De acordo com Duchamp, o papel fundamental do espectador consiste em mediar esse vazio e com- pletar o processo criativo, passando a ser através dele que se efectiva a posteridade da obra e onde se postula inevitavelmente como espectador póstumo.

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Não pretendemos analisar aqui a condição do espectador, que Duchamp reclama em The Creativ Act como elemento complementar à obra, mas argumentar que lhe interessava sobretudo questionar a noção de obra de arte e remetê-la para o interior da ambiguidade da escrita, reclamando uma indiferença visual sobre o objecto artístico e defendendo o fim da emoção estética.

Ao desvalorizar a condição óptica da representação do objecto artístico e procuran- do instituir a noção de ideia como o percurso de uma linha que liga o disperso, Duchamp faz a crítica à presença do retiniano na representação artística e propõe a denominação de nominalismo pictural, de forma a abandonar o domínio do formal e a supremacia do visual.

A proposta de Duchamp é no entanto responsável pelo despoletar de uma profícua crise a que as práticas artísticas se abandonam no período do pós-guerra e amplamen- te aceite e integrada nas mais diversas manifestações artísticas das décadas de 1960 e 1970.

Exaltada pela crítica de arte das últimas três décadas, que revê na sua obra as principais premissas de ruptura que caracterizam os movimentos de vanguarda, a obra de Marcel Duchamp impõe de forma exemplar a necessidade de uma reflexão sobre a condição de obra de arte e da sua própria sobrevivência discursiva.

Se até à sua morte, poucos estudos foram editados, postumamente desenvolveu- se uma procura exaustiva pelas referências que sustentam e decifram o que é induzido como um complexo sistema de codificações em torno da sua obra. Essas pesquisas estabelecem empenhados paralelos entre referências biográficas e aspectos formais das obras que realizou, desenvolvendo analogias sobre as referências literárias e artís- ticas que rodeiam a sua obra e analisando as suas afinidades com os diferentes movi- mentos de vanguarda, mas constituem também uma possibilidade de manipulação que acentua uma dupla significação da obra e do autor.

A leitura póstuma, adaptada a um tempo e espaço que recebe e valoriza a sua con- dição artística, pretende sobreviver à sua omnipresença, ou como escreve William Camfield, um dos seus historiadores mais atentos:

estratégias de apropriação nas vanguardas

«Duchamp distinguiu-se na apropriação de objectos para servir como ready-mades, e nós não nos excedemos menos na apropriação dos seus ready-mades de forma a realizar o nos- so objectivo.»148

Podemos referir que sendo Duchamp «um artista do século passado»149

Depois de Marcel Duchamp, a noção do valor de obra readquire uma inequívoca mudança e o seu gesto primordial passa a ser assimilado, com os movimentos das neovanguardas, como valor cultural corrente. E é nesse sentido que Duchamp diz iro- nicamente, «eu jogo o papel do protótipo, e estou encantado. E isso não significa mais do que

isso».

a sua influência revela-se cada vez mais sub-repticiamente nas opções culturais contemporâneas, sobretudo na sua forma de discursificação, pois que ao formular a questão sobre os próprios limites da noção de criação artística ele passa a representar a transgressão desses mesmos limites.

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148 camfield, William – Marcel Duchamp’s Fountain: Aesthetic Object, Icon, or Anti-Art?, in de duve,

Thierry – The definitively Unfinished Marcel Duchamp. Cambridge, Massachusetts, London: mit Press, 1991. p. 170.

149menges, Andrés in In Si(s)tu, nº 2. Porto: Associação Cultural Insisto, 2001. (Contracapa). 150Cit. por cabanne, Pierre – Duchamp & Cie. Paris: Éditions Pierre Terrail, 1997. p. 166.

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fig. 32

The Richard Mutt Case editorial da revista The Blind Man,

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3.2.2.

A invenção do readymade