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Falso autenticado ou o autêntico falso Entre Elmyr de Hory, Clifford Irving e Orson Welles

3. orson welles

Ambas as histórias são enredadas no filme F for Fake, que Orson Welles realizou em 1974 em colaboração de François Reichenbach (1921-1993), e no qual interpreta o papel de narrador protagonista.

No início do filme, Orson Welles dirige-se ao espectador e num acto de privacida- de confessional, quase pedagógica, assegura-lhe a visualização de uma obra baseada em factos reais, convidando-o a aceder à montagem cinematográfica e às opções e determinações que esta implica, na elaboração e interpretação da narrativa. Para exa- cerbar, perante o olhar do espectador, a concepção do objecto fílmico como produtor de sentidos imaginários, Orson Welles transporta-o aos bastidores das filmagens, invertendo a sua posição com o espectador, para afirmar:

«– This is a movie about trickery, about forgery, about lies. »20

Parte da biografia destes três distintos ensaístas na condição do falso, Elmyr de Hory, Clifford Irving e Orson Welles, é neste filme cruzada numa estrutura narrativa descritiva e factual, que propicia paradoxalmente uma leitura fiel às informações fic- tícias nele contidas. O registo documental no filme valoriza uma narrativa que se constrói pela multiplicação e fragmentação dos referentes, que através da colagem e A visualização dos bastidores do filme é determinante para a construção de uma ambivalência narrativa, pois desmente a estrutura ficcional proposta pela dimensão cinematográfica mas amplia em simultâneo a possibilidade do ficcional, ao desviar a atenção do espectador para a verdade do cenário. A fusão de ambas as categorias, documental e ficcional, revela a dificuldade de circunscrever o filme a uma única ordem, pois se por um lado documenta e adopta factos reais, como é advertido ini- cialmente pelo narrador, propõem-se no final, legitimado por essa advertência a inverter o labirinto documental realizado, para trabalhar duplamente a ilusão cine- matográfica perante o espectador.

20Op. Cit., welles, F for Fake.

falso autêntico ou o autêntico falso

alternância cronológica das biografias, intensifica o domínio da manipulação e traba- lha o fora de cena do documento e o seu potencial especulativo21

21A biografia de Howard Hughes surge como tema de outro filme da cinematografia de Orson Welles

intitulado Citizen Kane e realizado em 1941.

.

O género do documentário não realiza um tratamento inventivo da realidade e dispensa por isso o recurso a actores ou a uma encenação ou reinvenção do espaço de acção, mas em F for Fake, essa ideia é trabalhada perante o espectador, e os limites das noções entre actuação e encenação, actor profissional e actor amador, entre simula- ção, imitação ou improvisação, tornam-se campos de ambiguidade que oscilam con- tinuamente perante o olhar do espectador.

O genérico inicial, no qual se pode observar Oja Kodar (n. 1941) a passear-se pelas ruas de Paris e a ser observada atentamente por uma série de transeuntes masculinos, fil- mados sem o conhecimento da presença das câmaras, revela uma das intenções que Orson Welles explora no decorrer do filme – o controlo sobre a capacidade do especta- dor percepcionar a condução do seu olhar no interior instável do filme. Orson Welles interessa-se pela suspensão perante a manipulação e montagem rápida dos dados bio- gráficos das principais personagens, a dúvida sobre a veracidade desses dados e sobre a importância em confirmar essa veracidade e o reconhecimento de que o desenlace do filme se encontra exactamente no prolongamento dessa dúvida e na vontade em testar essa fusão entre verdadeiro e falso, enfatizada pela própria ilusão cinematográ- fica, que neste documentário é ironicamente questionada.

A visualização da montagem do próprio filme, que interrompe consecutivamente as sequências de planos em diversas cenas, é uma indicação explícita da condição de escolha e corte adoptada para o filme, anunciando um momento de relacionamento com o espectador e uma proposta de perturbação da sua condição de receptor. Orson Welles dá acesso à estrutura do filme, aos enganos da montagem, aos argumentos preteridos, elegendo propositadamente uma indumentária de ilusionista para apre- sentar e descrever as ligações entre as diversas personagens e os locais das filmagens.

falso autêntico ou o autêntico falso

Harry Houdini (1874-1926), que Orson Welles nomeia no início do filme, ilusionista que desenvolvia a capacidade de produzir a fuga, explorava a destreza na construção de um desaparecimento, preocupando-se com o sentido estético que o corpo prefigu- ra para se ausentar do domínio e controlo exercido por um espaço mínimo e limita- do.22

« –When the authority says fake is real, what is real and what is fake?»

Houdini era protagonista dessa arte da fuga pela capacidade de manobrar e transformar as escalas do seu corpo e acreditava que podia potencialmente escapar e desse modo interromper o registo do contínuo na exclusividade desse espaço ínfimo, produzindo mais do que a ilusão dessa interrupção.

Para Orson Welles, falar de ilusão é perceber esse espaço ínfimo de fuga em que a própria ilusão trabalha e que se constitui como uma falha, um espaço não preenchido que permite praticar o falseamento, e onde se desvenda a persistente incerteza da ausência ou presença de manipulação. Welles confronta o espectador com a ironia dessa mesma questão:

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A 30 de Outubro de 1938, Orson Welles e os seus colaboradores realizam uma lei- tura na rádio, no programa Mercury Theater on Air, difundido pelo columbia broadcasting studio, do texto The War of the Worlds de H. G. Welles (1866-1946). A adaptação, realizada por Howard Koch (1902-1995), é estruturada de forma a intercalar música e excertos noticiosos e é preenchida por efeitos especiais, fabricados em estú- No decorrer do filme, Orson Welles interrompe a narração sobre as biografias cruza- das de Clifford Irving e Elmyr de Hory, para revelar ao espectador um episódio que o relaciona com o propósito da criação ficcional e retoma para tal excertos da transmis- são de The War of the Worlds, colando-os sobre imagens de um outro filme, de que se apropria, Earth vs. the Flying Saucers (1956) do realizador Fred Sears (1913-1957).

22«Um mágico é um actor a fazer de mágico», é a muito citada frase de Harry Houdini para caracterizar o

seu trabalho, explicitando um método que implica acima de tudo um trabalho consciente de encena- ção. Elmyr era cúmplice desse método e repete-o sucessivamente ao longo do filme de Orson Welles.

23Op. Cit., welles, F for Fake.

(Tradução: Quando a autoridade diz que o falso é verdadeiro, então o que é que é verdadeiro e o que é falso?).

falso autêntico ou o autêntico falso

dio, com o objectivo de simular ligações a repórteres no exterior e credibilizar um cenário de invasão de extraterrestres a par do comportamento alarmante da popula- ção, descrito no conto original.

Ao transportar o texto de H. G. Welles para a contemporaneidade de um espaço urbano, no final da década de 1930, Orson Welles obteve uma reacção inesperada por parte dos desprevenidos ouvintes do programa, que demonstravam uma convicção na fidelidade do que ouviam, comprovando igualmente o elevado nível de confiança na informação veiculada pela rádio nesta década.

A transmissão não foi sentida pelos ouvintes como a representação e leitura de um texto ficcionado mas antes com uma fidelidade ao real ficcionado, que o trans- formou em si num evento real, tal como o anuncia, no dia seguinte, o jornal The New

York Times: «Radio Listeners in Panic, Taking War Drama as Fact.»

Se a simulação literária de uma invasão extra-terrestre, não marcou de forma tão definitiva a literatura de ficção científica, quando publicado pela primeira vez em 1898, a sua reinterpretação transmitida na rádio, antes do aparecimento massivo da televisão, revelou ser um ponto de viragem determinante para os meios de comunica- ção, explicitando a sua possibilidade de controlo e o poder das técnicas de manipula- ção e distracção de massas, assente na dissimulação de uma génese técnica e no acen- tuar do presencial e do real em directo.

A utilização da voz e de efeitos sonoros na produção de um cenário que recriava uma invasão extraterrestre na cidade de Nova Iorque demonstra, por um lado, o potencial técnico que a própria rádio começava a demonstrar, numa acelerada difusão e assimi- lação dos seus conteúdos e que a propaganda política vem seguidamente utilizar, por outro um instrumento doméstico de convergência de opiniões, determinante na pro- pagação da mensagem com diferentes níveis de manipulação e sem o contingente da fotogenia ou da telegenia, que posteriormente define os parâmetros da mediatização. Theodor Adorno (1903-1969) analisa o episódio como «um teste do espírito positivo para

avaliar a sua própria área de influência, chegando-se à conclusão de que o esbatimento da fronteira entre imagem e realidade já tinha atingido o estádio de psicopatia colectiva.»24 24adorno, theodor – Sobre a indústria da cultura. Coimbra: Angelus Novus, 2003. p.60.

falso autêntico ou o autêntico falso

A famosa citação de Picasso «a arte é uma mentira que nos mostra a verdade», parece ser a sugestão para o argumento de uma última sequência final em F for Fake, no qual Orson Welles simula, através da fotomontagem de uma fotografia de Pablo Picasso, a elabo- ração de uma série de vinte e dois quadros realizados com a inspiração da personagem interpretada por Oja Kodar.

Esta sequência final, dissimuladamente anunciada no início do filme, como baseada em factos não verdadeiros, serve a Orson Welles para desvendar ao espectador os elementos que definem e fundem ambas as categorias de documento e ficção, de falso e autêntico.

falso autêntico ou o autêntico falso

fig. 4

Fake! The story of Elmyr de Hory the greatest Art Forger of our time,

(capa do livro) Clifford Irving, 1970.

falso autêntico ou o autêntico falso

fig. 5

Fake! The story of Elmyr de Hory the greatest Art Forger of our time,

(Contracapa do livro) Clifford Irving, 1970.

falso autêntico ou o autêntico falso