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3. DOS SOBRENATURAIS À SAÚDE INDIGENISTA

3.2. Protagonismo Tentehar: dinâmicas de participação nos serviços de atenção à saúde

Inicio esta discussão analisando a participação dos Tentehar na organização dos serviços de atenção à saúde, nos moldes propostos pela Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas- PNASPI-2002. Considero que os conflitos no âmbito do atendimento à saúde, envolvendo esse povo, atingiram seu ápice, no estado do Maranhão, antes dos processos desencadeados pelas novas políticas indigenistas de educação. Embora a participação dos Tentehar nessas políticas se

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dê de forma simultânea, acredito que há uma diacronia nos acontecimentos que favorece a uma interpretação mais seqüencial, em termos didáticos.

A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas prevê formas de participação indígena no planejamento das ações, através dos Conselhos Locais e Distrital, da representação nas Conferências Estaduais e Nacionais de Saúde Indígena e na execução das ações, via Agentes Indígenas de Saúde-AIS28. Para Buchillet (2004, p. 53):

A política atual de saúde indígena constitui um desafio para os profissionais de saúde, que devem adequar suas ações e serviços à diversidade tanto social quanto cultural e à situação de saúde dos povos de sua área de atuação. Essa adaptação não pode se abreviar em medidas que visem a facilitar o acesso aos serviços de saúde no plano lingüístico, geográfico ou econômico [...] Implica, na realidade, uma nova concepção das dimensões políticas, sociais e culturais ligadas a saúde e a doença. (Grifos meus)

O que vimos na rede de assistência aos povos indígenas contraria o sugerido por essa autora. As instâncias que compreendem o subsistema de atenção à saúde do índio, no Maranhão,

têm funcionado de forma precária, desde a implantação do novo modelo de atenção à saúde, em 1999.

Os problemas foram se agravando ao longo do tempo e os Tentehar têm buscado interferir em todas as esferas da organização dos serviços de saúde29 e constroem suas próprias formas de participação. Parecem ter percebido, antes dos karaiw, essa necessidade de adequação, sugerida por Buchillet (2004). Compreenderam, por exemplo, que a organização e a dinâmica do subsistema de atendimento à saúde podem servir para potencializar o poder exercido por cada família extensa em relação às demais.

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Este processo de consolida definitivamente com a Publicação da Lei 9.836 de 1999. Nesta, são estabelecidas as diretrizes para instalação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas em todo o país. No Maranhão há apenas um distrito que compreende todas as terras indígenas. O funcionamento obedece às normativas da Lei 8.080/90, a lei do SUS, sendo os Distritos parte de um Subsistema Diferenciado e Específico para os Povos Indígenas.

29 A tentativa de participação ocorre nas esferas locais, no âmbito das CASAI/Pólo-Base, na Distrital e nacional. Na local, geralmente ocorre com a participação dos Tentehar atendidos nesta esfera. Em relação às outras instâncias ocorre sempre em conjunto com os demais Tentehar e outros povos indígenas atendidos no DSEI-MA.

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Outrossim, os Tentehar sentem-se impelidos a participar no subsistema de atenção a saúde, muito mais pela atração pelo embate político e pelos benefícios materiais que possam auferir e menos pelos benefícios sanitários. Entendem que as questões de saúde podem ser resolvidas com base em outras relações, que envolvem fatores espirituais e metafísicos, dos quais são os pajés os seus mestres, que também são incorporadas ao jogo político, sempre que lhes convém. A arena da saúde indigenista lhes permite exercer várias virtudes do jeito de ser

Tentehar, como a palavra e o gosto por um bom combate.

Dessa forma, analisar a participação dos Tentehar no subsistema de atenção à saúde do índio requer a reconstrução de vários momentos dramáticos, nos quais sua identidade aflora e deixa transparecer elementos imperceptíveis em situações de trégua.

O “drama”, tal qual é entendido por Turner (2008), pode ser um aliado no entendimento dessas relações e de como elas ajudam na construção do protagonismo dos Tentehar no exercício das políticas de saúde. Para este autor, o drama social se constitui em uma unidade de processo marcada pelo conflito, manifestando-se em episódios públicos de irrupção tensional.

Admitindo o ponto de vista de Turner, Barata (1981, p. 25) afiança que é justamente na manifestação do conflito que todas as contradições implícitas tendem a emergir, tanto nas relações interétnicas, nas quais incluo as ações indigenistas de saúde, quanto nas relações internas ao próprio povo Tentehar.

Turner (2008, p.37) ressalta que através do drama social é possível perceber, sob as regularidades sociais, os conflitos e contradições ocultas no sistema social. Acredita, ainda que é possível observar o drama em fases específicas interligadas, que podem ser analisadas considerando o ordenamento das relações políticas que precederam a disputa pelo poder que irrompeu em um drama social observável.

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Essa perspectiva pode ser cotejada àquela pensada por Max Gluckmam (1987, p. 294), de que “numa sociedade em que existir um conflito ‘maior’, se esse não for solucionado, gera outros menores que o aumentam ainda mais”. Esse autor completa afirmando que:

Este [o conflito] pode assumir formas até violentas, quando as desavenças são maiores do que a cooperação desejada pela sociedade. Neste ponto, os mecanismos de equilíbrio não conseguem mais responder adequadamente à situação conflitiva e, quanto mais diminui a capacidade de controle, mais aumenta a separação que o distancia, até se manifestar sob formas violentas.

Gluckmam (1987) examina as circunstâncias de contato como ocorrência de cooperação entre diferentes grupos que constituem uma “comunidade” com formas especiais e diferentes de comportamento30. Na sua interpretação das relações interétnicas entre zulus e europeus na África, o conflito assume uma extensão central, assim como a interdependência entre grupos e o caráter dinâmico das alianças e oposições. No vaivém contínuo de divisão e fusão, os indivíduos e grupos escolhem seus aliados e oponentes situacionalmente e com base em diferentes critérios, embora as escolhas, freqüentemente contraditórias com o discurso dos atores, nem sempre se realizem num nível consciente.

É sob o conjunto desses pontos de vista que procuro observar a participação dos

Tentehar no subsistema de atenção à saúde do índio. Para discutir a manifestação constante do conflito na participação dos Tentehar, selecionei acontecimentos importantes e marcantes no histórico participativo deste povo, por entender que configuram dramas sociais e conflitos.

Muito embora o conflito seja a marca mais presente na atuação Tentehar, Ribeiro (2009) aponta formas de participação construídas pelos Tentehar que fazem uso das estruturas oficiais, e não costumam se expressar de forma dramática, tais como:

1) Encaminhamento de cartas, bilhetes, abaixo-assinados e ofícios às instituições responsáveis pela saúde indigenista;

2) Realização de reuniões com o DSEI-MA/ FUNASA para apresentar reivindicações, mesmo sem o funcionamento do Conselho Distrital;

30 O que Gluckmam chama de comunidade não é de um grupo de convivência harmoniosa, mas sim de diferentes grupos em disputa e cooperação.

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3) Acionamento do Ministério Público e Procuradoria da República;

A mesma autora faz referência ao que denomina estratégias indígenas de participação, que constituem ações mobilizadas pelos índios, em situação de confronto com as instituições responsáveis pela saúde indigenista. As estratégias indígenas caracterizam-se, principalmente, por ações que rompem com o que está definido no modelo ou previsto nos documentos oficiais e visam pressionar os órgãos competentes no atendimento às suas demandas. Ribeiro (2009) mapeou as seguintes ações:

1) Retenção de não-índios nas aldeias (com ou sem vinculação direta com a saúde indigenista);

2) Retenção de carros a serviço da saúde indigenista; 3) Ocupação dos prédios da FUNASA;

4) Bloqueio de estradas (BR e MA); 5) Bloqueio de ferrovia;

6) Denúncias nos meios de comunicação; 7) Paralisação do Pólo-Base

A estratégia de ocupação de prédios da FUNASA, por exemplo, ocorreu três vezes entre os anos de 2003 a 2007, e se destaca como a principal nestas mobilizações.

Em fins do mês de outubro de 2003, precisamente no dia 27/10/03, cerca de 400 índios acamparam na sede da Fundação Nacional de Saúde, em São Luís, no Maranhão. O movimento tinha como objetivo fazer com que a FUNASA, em Brasília, discutisse os problemas de saúde dos povos indígenas no Maranhão e o respectivo modelo de assistência. Além da ocupação, ameaçaram interditar rodovias, ferrovia e derrubar torres da rede de transmissão de energia da Eletronorte, caso suas reivindicações não fossem atendidas.

A ocupação reuniu, alem dos Tentehar, os demais povos indígenas que vivem no Maranhão. Conforme afirmou na ocasião Lourenço Krikati (Coordenador da Coordenação das Organizações e Articulação dos Povos Indígenas do Maranhão- COAPIMA –):

Queremos apresentar nossas propostas. Estivemos na semana passada em Imperatriz e a FUNASA nem apareceu. Já que ele não foi conversar conosco, nós viemos até ela e se preciso for iremos até Brasília.

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A declaração de Lourenço fazia referencia aos fatos que antecederam a ocupação em São Luís, mais especificamente ao Encontro de Lideranças Indígenas do Maranhão, promovido pela COAPIMA, entre nos dias 20, 21 e 22 de outubro, na cidade de Imperatriz, a 635 km de São Luís. Naquele encontro, no qual participei como apoiador e articulador junto a COAPIMA, o que estava em jogo era revisão dos serviços de atenção à saúde do índio no Maranhão. A ênfase recaia sobre a discussão da política de convênios31 da FUNASA, que era identificada pela COAPIMA e seus apoiadores, o CIMI, por exemplo, como a mobilizadora dos conflitos intra e inter povos, no contexto da saúde no Maranhão. Para esta reunião fora convidada a coordenação regional da FUNASA, representada, naquela ocasião, pelo Sr. Zenildo Oliveira. A notícia de sua possível presença mobilizou um contingente de 153 índios dos povos Tentehar, Krikati, Pukobjê, Krepumkateyê,

Apaniekra, Ramkokamekra, Ka’apor e Awá.

O Sr. Zenildo Oliveira, no entanto, não compareceu à referida reunião, o que provocou a indignação dos índios resultando na ocupação da Coordenação Regional da FUNASA, em 27 de outubro de 2003.

A participação efetiva dos Tentehar naquela reunião tinha duas vertentes: aqueles que apoiavam o fim da política de convênios e aqueles que apoiavam sua manutenção e, ainda, a criação de mais ONG’s32 indígenas de saúde para contemplar os que ainda não as possuíam.

31 A Fundaçao Nacional de Saúde – FUNASA, após a publicação da Lei 8.636/99, implantou uma política que consistia na terceirização dos serviços de atenção à saúde dos povos indígenas. Os recursos eram repassados para prefeituras nas proximidades das terras indígenas. Esse modelo não obteve êxito devido a incapacidade das prefeituras de administrar os serviços de saúde e, em certos casos, não havia interesse das mesmas em executar serviços em favor dos índios, os quais eram considerados entraves ao desenvolvimento de certos municípios. Desse modo, a FUNASA, pressionada pelos índios, alterou a modalidade de repasse de recursos para administração das ações de saúde. Esses eram repassados, através de convênios, para Associações Indígenas. Conhecidas como “ONG dos índios” essas associações multiplicaram-se entre os Tentehar no período de 2000 ate 2006.

32 As ONG’s indígenas eram Associações Comunitárias criadas exclusivamente para a captação dos recursos da saúde do índio.

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Naquele período os Tentehar administravam cinco convênios33 em todo estado do Maranhão e disputavam a atenção da FUNASA para a criação de mais três convênios que contemplariam os “dissidentes34” de Arame e Barra do Corda.

Daí por diante, o quadro era de insatisfação com o Modelo de Assistência a Saúde dos Povos Indígenas no Maranhão. O DSEI nunca havia desempenhado o papel que lhe competia e o Conselho Distrital, nunca havia funcionado efetivamente, não havendo um fórum para discutir as questões de saúdeem nível regional.

Na ocasião da ocupação, acionaram o Ministério Público Federal-MPF e conseguiram que os promotores de justiça visitassem a Casa de Saúde Indígena – CASAI de São Luís, no Turu, para verificar suas precárias condições de funcionamento e as irregularidades em relação à utilização dos recursos financeiros.

Como forma de manter o poder de pressão, os índios continuaram ocupando o prédio da FUNASA. Não aceitaram negociar a desocupação com uma comissão da FUNASA, vinda de Brasília. Obtiveram como resultado, a realização de uma audiência pública, que ocorreu na data prevista (03/11/03), com a presença dos índios, FUNASA, FUNAI e MPF. Foi então elaborado um Termo de Ajustamento de Conduta/ TAC, assinado pela FUNASA, MPF, FUNAI e lideranças indígenas. O TAC consta de dez clausulas, uma delas relacionada ao comprometimento dos índios em desocupar o prédio da FUNASA, o que foi se efetivado definitivamente no dia 04/11/03.

Antes do desfecho da situação, ainda seriam reveladas outras surpresas. Na ocasião da ocupação somavam-se 400 índios de várias partes do Maranhão. Os Tentehar eram

33 Convênios estabelecidos entre a FUNASA e associações indígenas para execução das ações de saúde. Serão explorados mais adiante.

34 Os “dissidentes” foram assim denominados pelos próprios índios para classificar aqueles que romperam com as Associações de Saúde Indígenas, pelas quais eram atendidos, para criar as suas próprias. Todavia, a criação de novas Associações não garantia o repasse automático de recursos e o atendimento, ficando esses índios sob a responsabilidade direta da FUNASA até encontrarem uma solução que os acomodasse.

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superiores em número, o que lhes proporcionava grande força política no decorrer da ação. Todavia, enfrentavam batalhas internas. Pelo menos duas das suas lideranças mais destacadas negaram-se a fazer parte do movimento, assim como tentaram convencer os que ali estavam a retornar para suas aldeias. Ao mesmo tempo, tentavam negociar diretamente com o Coordenador Regional Zenildo de Oliveira vantagens para suas Associações.

Este fator criou grande mal estar entre os Tentehar e os demais povos indígenas durante a ocupação, que resultou numa reunião interna de lideranças indígenas, que então se identificavam como membros da coordenação do movimento, ocorrida na sala da coordenação da FUNASA, no dia 30 de novembro. Durante a referida reunião, afirmaram o posicionamento de que o movimento se manteria irredutível em seus propósitos. O que foi confirmado nos dias seguintes com permanência dos presentes na sede FUNASA e a chegada de novos participantes.

A presença do Ministério Público Federal e a iminência da resolução do impasse, através de audiência marcada para o dia 03 de novembro, teve um desdobramento interessante: uma das lideranças indígenas, que se negava a reforçar o movimento e pretendia desarticulá-lo, mudou seu posicionamento, vindo a São Luís e trazendo consigo mais 80 índios, os quais fizeram número com os demais Tentehar já presentes. A referida liderança desempenhou papel de destaque nas discussões com o Ministério Público e a FUNASA, sendo determinante para o acordo realizado entre os índios e aquele órgão.

Depreende-se deste episódio que a força política Tentehar extrapola as divergências internas e acaba por definir o rumo dos acontecimentos. A presença numérica já seria um fator de extrema pressão para com os órgãos com os quais negociavam, no entanto, o protagonismo devia ser exercido, também, no discurso, na palavra e na participação. O exemplo daquele que se nega a participar, a princípio, para depois despontarcomo um dos

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“heróis” da negociação pode ser lido como uma manobra política eficiente. Longe de representar a individualidade de seu próprio ponto de vista, a liderança indígena é reconhecida por sua capacidade de falar por muitos, em nome de muitos. Daí os custos políticos da não participação na “guerra”. Negar-se a participar poderia ser interpretado como uma desonra ao espírito guerreiro Tentehar, um ato de covardia.

Perante a situação que lhe parece desfavorável, o “herói” Tentehar, perfeitamente identificado com os filhos de Maíra, manipula discursos e práticas, configurando suas ações de maneira estratégica de modo a nunca perder o controle da situação. Até as diferenças mais inconciliáveis podem ser revertidas em prol do seu protagonismo diante dos acontecimentos.