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CAPÍTULO 1. TECER HISTÓRIAS É COMO TECER UMA REDE DE

1.7. Protagonismos Experienciados: sustentabilidade, tradições e interculturalidade

coordenação de projetos voltados para a produção sustentável no nosso território – recuperação de áreas de nascentes, apoio e fortalecimento de extrativismo, e da casa tradicional de medicina Xakriabá. Neste período, aprimorei meus conhecimentos sobre processos agroflorestais no curso de Permacultura Cerrado e Pantanal, que contribui com a construção da proposta inicial do Projeto de Gestão Territorial e Ambiental do Território Indígena Xakriabá – PGTA TI Xakriabá. Esta minha colaboração foi aprimorada pelos conhecimentos que adquiri no curso básico de Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental (PNGATI). Essa ação fortaleceu meus conhecimentos sobre a sustentabilidade e suas práticas bem como acerca das lutas dos povos indígenas pela garantia dos direitos territoriais, ambientais e de respeito às suas tradições. Pude, por meio do PNGATI, conhecer diversas iniciativas de sustentabilidade em territórios indígenas do Nordeste Minas Gerais e no estado do Espírito Santo.

Aos 24 anos de idade, atuando como professora de cultura na escola indígena Xakriabá, me senti honrada por ocupar um cargo que tradicionalmente era destinado aos mais velhos, conhecedores de nossa cultura com profundidade. Nessa mesma época, atuei como supervisora no subprojeto de Línguas, Artes e Literaturas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência para a Diversidade (PIBID Diversidade), alocado na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Lá realizei atividades de orientação e supervisão dos cursistas Xakriabá, durante o ano de 2014, apoiando iniciativas que visam fortalecer a cultura de meu povo. A formação em licenciatura indígena me oportunizou neste período também participar de bancas avaliadoras nos trabalhos de conclusão de curso de estudantes indígenas e não indígenas.

Em 2015, recebi o convite da Secretária de Estado de Minas Gerais, Senhora Macaé Evaristo, para coordenar o Programa de Educação Escolar Indígena de Minas Gerais. Foi um grande desafio pois, pela primeira vez, uma representante indígena assumiria tal lugar. Passei a auxiliar nas políticas públicas educacionais para a educação escolar diferenciada. Grandes passos já foram dados, tais como: a criação da Comissão Estadual de Educação Escolar Indígena de Minas Gerais e o início das discussões, no estado, sobre a criação da Escola Indígena. Essa missão marca um avanço e um desafio, tanto permitindo o protagonismo indígena no fazer das políticas públicas dentro do

órgão central como proporcionando, pela primeira vez, a interlocução do órgão central com o chão da escola indígena, por meio de processo consultivo e colaborativo dos Povos Indígenas de Minas Gerais. Atuo também como coordenadora do Programa Saberes Indígenas na Escola - representando a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais - que consiste em uma importante iniciativa na produção de materiais específicos e diferenciados para as escolas indígenas. Esse Programa me permite participar do processo de difusão desses saberes além de conhecer um pouco mais sobre os demais povos indígenas do meu estado.

Além disso, meu ingresso no Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT/UnB) me possibilitou a interlocução com e entre diversos sujeitos, individuais e coletivos, entre os saberes e práticas, desde as narrativas tradicionais até o diálogo com outras epistemologias. Esta interlocução traz consigo uma tarefa desafiadora, que é contribuir para o processo descolonização dos conhecimentos perpassados também no meio acadêmico. É importante reconhecer o crescente protagonismo de acadêmicos e anciões indígenas, que cada vez mais deixam de ocupar apenas o lugar de objetos de pesquisa para se tornarem produtores de conhecimento de nossas comunidades, reafirmando a importância do pertencimento étnico como locus para produção de outras epistemologias. Ocupar, marcar e demarcar o espaço no meio acadêmico é sem dúvida uma ferramenta de luta, além de nos empoderar nesse espaço de diálogo onde os saberes se encontram. No MESPT, por meio do diálogo de saberes entre conhecimentos tradicionais e acadêmicos, os estudantes contam suas histórias e podem refletir com as teorias produzidas anteriormente com possibilidades de recriação de alternativas possíveis para as problemáticas existentes. Desse modo, além de exercício intelectual e político que envolve essas epistemologias indígenas e de outros povos tradicionais, participar dessas interlocuções exige também criatividade e um nível considerável de apreço à subversão. Parte dessa subversão é a todo momento confrontada por estranhamentos, aqueles mais previsíveis (advindos de outros), mas também aqueles que nós mesmos nos lançamos ao conviver com outros povos que se aproximam, mas também guardam singularidades em relação à nossa história.

É importante dizer, acerca dessa relação com os povos tradicionais, que o meu primeiro contato com outros povos e grupos étnicos não se deu no MESPT, mas se iniciou a partir dos meus 13 anos de idade, quando comecei a trilhar o caminho no Movimento Indígena. A partir deste período, passei a considerar que, embora não tenha

validação e certificação formal, foi no Movimento Indígena e de povos e comunidades tradicionais que me formei para a vida, por meio do que alguns autores chamam de educação não formal. O movimento para mim também é uma universidade, pois além de produzir um conhecimento corporificado pelo engajamento do corpo na luta, possibilita encontros e reencontros de saberes, encontros estes que nos ensinam em uma instituição não reconhecida, muitas vezes invisibilizada mas que é um lugar onde se valoriza não apenas o ponto de partida e ponto de chegada, como também a trajetória entre linhas da trilha que tecem o encortinado dos conhecimentos.

Apesar de ainda existir um grande desafio, a nossa presença na universidade faz diferença e tem sido muito mais que formação acadêmica, tem também nos preparado para transitar em mundos diferentes, conhecer o “novo”, outras culturas, outros conhecimentos, mas com a convicção de que o que queremos mesmo é fortalecer e tornar ainda mais significativas a nossa cultura e a nossa identidade.

Buscando ir a reflexões mais subterrâneas, a indagação que me provoca nesse momento é: Quais foram os estranhamentos que tive ao lidar com outras comunidades tradicionais no MESPT? A princípio, o estranhamento foi quase semelhante ao susto provocado por um espelho quando, acostumado a refletir o exótico, de repente mira e vê a si mesmo por meio de outra face, tantas vezes excessivamente diversa da sua.

Figura 16: Foto da turma MESPT (2016-2018), representação da nossa diversidade. Foto: Carolina Araujo (2017).

É quando percebemos como as nossas lutas se assemelham, e como as outras populações tradicionais buscam reafirmar suas identidades, assim como nossas populações indígenas o fazem. É visível que a luta é semelhante quando se trata da questão territorial, e compreendemos que uma luta não enfraquece a outra, pelo contrário, nos faz refletir o quão urgente é a aliança destes povos, que têm suas vidas e sentidos de pertencimento ancorados nos processos de demarcação de terra, saúde, educação, organização social, culturas e identidades. A face semelhante que se reflete nesse espelho são as estratégias de resistência e a resiliência que historicamente nos foram ensinadas, engendrados que somos pelas lutas. É como diz Boaventura de Sousa Santos, temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza, mas temos o direito a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.

A proposta apresentada pelo MESPT/UnB em sua ementa já me motivou, pois ia ao encontro de princípios alternativos que acreditamos e fazemos na prática, de tal forma que tem me dado inspiração para trabalhar e colocar nesta roda de debate nossas experiências e contribuição, outra hora exercitamos para obter melhor compreensão, fazendo debates em torno de alguns conceitos ainda estranhos, mas que acabamos por descobrir que utilizamos eles em nossas práticas no dia a dia. Ainda nos convida a reaver nossas práticas educativas por meio da interculturalidade não apenas de forma superficial, mas sim compenetrada, experimentando a cultura de outros sujeitos, já que só assim podemos conhecer, por meio da interação. A interculturalidade é uma proposta que deveria ser tomada com mais urgência e seriedade pelo sistema nacional de educação, uma vez que há uma contribuição muito expressiva dos diversos sujeitos para a formação da sociedade brasileira neste país multicolorido. Não cabe mais trabalhar com um pensamento curricular como “disciplinarização”, precisamos, ao contrário, questionar este modelo de uniformização, que faz com que tomemos sempre como ponto de partida as segmentações, numa expectativa (que não se concretiza muitas vezes) de chegar ao todo. Ao indigenizar práticas educativas, a proposta é o contrário: o convite é para partir do todo, daquelas que são nossas raízes profundas, para chegar às miudezas, estas, pensadas sempre como práticas que nos levam a atuar no mundo de forma ativa, criativa e subversiva sempre que necessário.

1.8. Traje-História: o barro, o genipapo e o giz em narrativas tradicionais e