• Nenhum resultado encontrado

Traje-História: o barro, o genipapo e o giz em narrativas tradicionais e processos

CAPÍTULO 1. TECER HISTÓRIAS É COMO TECER UMA REDE DE

1.8. Traje-História: o barro, o genipapo e o giz em narrativas tradicionais e processos

Na formatura Xakriabá Nós usamos nossos trajes, Com nossa vestimenta de ritual,

A gente faz uma viagem. A pintura corporal. Nos conecta a ancestralidade, É força presente da tradição e da espiritualidade.

Nosso canto entoa, força da oralidade e memória, Cada detalhe vai lembrando um tecer da “traje- história”.. (Célia Xakriabá, 2018)

Figura 17: Foto da primeira turma que se formou no ensino médio, nas escolas indígenas Xakriabá em 2007. A foto retrata a valorização das vestimentas tradicionais Xakriabá usadas nesta cerimônia. Foto: Edgar Correa Kanaykõ. (2007).

Foram diversas coisas que vivi e que hoje também considero que é um jeito de moldar a nossa própria história, por isso estou sempre a exercitar a tentativa de converter essas vivências em experiências. Ao longo de minha trajetória, o que tem me impulsionado é a certeza de que é possível construir, a partir o do protagonismo da coletividade e da tradição, um futuro de valorização das culturas dos povos indígenas. É necessário e urgente dar voz e vez às narrativas dos povos indígenas, para que de fato tenhamos uma sociedade verdadeiramente democrática e na qual um diálogo simétrico seja possível. Todos os dias o ser humano passa por ruas, estradas, caminhos, e nestes se depara com várias coisas e diversas situações. Nessas travessias, muitas coisas nos

passam despercebidas, como se fossem irrelevantes, e assim, desperdiçamos possibilidades de reconhecer outros fazeres epistemológicos.

Foi com este pensamento que comecei a pensar em como relacionar a minha trajetória ao longo do tempo com os aprendizados Xakriabá, observando a cultura de um povo que sofre com mudanças, vibra e traz vitórias com algumas delas e se fere com outras. Aquilo que trazemos como marca talvez mais significativa vem em tonalidade escura por meio da pintura, do genipapo e urucum, é elemento que vai penetrando, formando desenhos, como se estivesse tecendo rede; preenchendo os espaços do corpo e dando vida. As pinturas que nos fortalecem e embelezam lembram que o sentido profundo está no que às vezes não se explica e que nem todos poderão compreender. Está na espiritualidade de receber, não apenas como dever. Assim vemos nas entrelinhas do saber diante do “olhar”, onde muitos vêem e poucos “enxergam”. Uma vez que esse enxergar exige tomar consciência e ver além. E a partir daí esmiuçar o que se passa é como ver o interior de alguém. Pois muitos falam, mas as raízes precisam se fincar, na voz de guerreiros, de um povo que não se cansa de lutar, que aprendeu na prática o significado da resiliência. O que comecei a descrever é oculto para os que ainda não conseguiram enxergar, é um convite a retirar a venda dos olhos, e compreender os limites da ressignificação que entoam a cultura e as traje-histórias Xakriabá.

Figura 18: Pintura feminina feita por mim, Célia Xakriabá, que demonstra a força da pintura para além da beleza. Essa pintura se chama encontro das águas e remete a relação histórica do povo Xakriabá com rio. Foto: Célia Xakriabá. (2017).

A ideia de que há um modo “de se trajar”, um modo de ser indígena de forma a ser legitimamente reconhecido como povo, significa historicamente uma imposição “de se usar um traje” aos povos indígenas. Uma imposição ultrajante e que buscamos combater por meio de nossas narrativas, coletivas e subversivas, que começam agora a ganhar ecos, desta forma, não dá para falar de trajetória sem falar das Trajes-Histórias únicas que nos impuseram representações. Uma outra narrativa busca enfatizar isso: a necessidade de enxergar para além de olhar. A possibilidade de nos desfazermos dos trajes que nos oprimiram e cercearam nossos corpos. A expectativa de contar histórias por meio dos nossos corpos e suas inscrições, por meio de nosso entoar, da ressonância da oralidade e de uma razão que dialoga com os mistérios dos “encantados”. Mas como encontrar, para tanto, a narrativa mais acertada? É o que busco delimitar no esforço de construção da pesquisa. Segue abaixo algumas definições marcadas por incompletudes e abertas ao diálogo e aprendizados, ainda em busca de uma narrativa que venha talvez como poesia, talvez como desenho, talvez como pintura ou outra tessitura possível.

Conforme anuncio desde o início do memorial, argumento que a história Xakriabá é marcada por três temporalidades: da barro, do Genipapo e do Giz. Três símbolos que contam sobre a nossa trajetória, inspirados em nossas raízes profundas. O período de aprendizado que denomino de barro representa um período em que não existia a presença da instituição escola, mas que já existia a educação indígena, transmitida pelo entoar da palavra, na oralidade. Portanto, não tinha escrita mas tinha memória. Foram conhecimentos adquiridos e experiências vividas por muitas gerações, passadas dos mais velhos para os mais novos, importantes desde o tempo dos antigos até os dias de hoje na preservação das tradições e na construção da identidade de cada Xakriabá que chega.

Quanto ao período do Genipapo, faço referência aos momentos rituais em que as nossas tradições se materializam em nossos corpos. O povo Xakriabá e o genipapo estabeleceu historicamente uma forte relação com as pinturas corporais, representando o fortalecimento da nossa identidade como um dos processos que configuram a nossa forma de fazer educação indígena (não na escola, mas em nosso cotidiano). Quando nós nos pintamos, em momentos específicos, acreditamos que não é somente a pele que está sendo pintada, mas o próprio espírito. A pintura corporal marca e demarca a identidade, neste contato entre o corpo e o espírito.

Já o terceiro período é o do Giz. Utilizo o giz para simbolizar a ressignificação da escola, a partir da nossa concepção de educação, fazendo frente à escola que chega

como instituição externa, em um primeiro momento desagregadora de nossa cultura. Somos Xakriabá e, após muita luta, podemos construir narrativas em que contamos a nossa própria versão da história, respeitando os processos próprios de uma escola diferenciada, que não suprime o conhecimento e o modo de ser Xakriabá. O Giz é uma referência ao que chamamos de "amansamento da escola".

É nesse representar dos símbolos, das cores, no entoar da oralidade, que vamos moldando a nossa história com culturalidade.7 Quanto mais conhecemos o novo, mais sentimos a necessidade de retomar às nossas origens. Por trilhar toda minha vida da educação básica na escola indígena, passei a refletir sobre algumas questões, como que estrategicamente usamos o espaço da escola para dialogar e aproximar das complexidades vivenciadas no território desde algumas práticas, bem como a própria luta territorial.

7 Entendo culturalidade como uma tradição que reforça a nossa identidade de pertencimento, conceito que menciono no sentido de resgatar algo que se dá anteriormente ao tempo da interculturalidade, da educação indígena contemporânea.

Figura 19: Foto desenho do tempo do amansamento do giz, ilustrado por Geilson Xakriabá. Foto Célia Xakriabá (2018).

CAPÍTULO 2. CONCEPÇÕES DE UMA XAKRIABÁ SOBRE A AUTONOMIA