• Nenhum resultado encontrado

3.1 Tradição oral: os provérbios como recurso estético

3.1.1 Provérbio I

Na averiguação desse provérbio, listei os elementos relacionados a ele: a relação com a natureza – entendendo como forma de ligação vital –, a produção e o poder.

O segundo capítulo da obra, intitulado O desperto nome dos vivos, é iniciado pelo seguinte provérbio: “O mundo já não era um lugar de viver. Agora, já nem de morrer é.” (COUTO, 2003, p. 24). Com um tom meio pessimista, esse provérbio dá abertura à chegada de Marianinho à Ilha de Luar-do-chão em que, sendo recebido pelos familiares, desembarca na terra dos seus ancestrais. Neste momento, quando desce, intenciona colocar os pés na água, mas o tio lhe puxa, como se a ação fosse inadequada. E então:

“[...] ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no chão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos — de um lado a família; do outro, nós, os chegados. Ficam todos assim, parados, à espera. Até que uma onda desfaz o desenho a areia. Olhando a berma do rio, o tio Abstinêncio profere:

— O homem trança, o rio destrança.

Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume. (COUTO, 2003, p. 26).

A relação com a natureza fica evidente no trecho anterior, bem como a vitalidade que emana dela, uma vez que “para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente ‘natural’: está sempre carregada de um valor religioso” (ELIADE, 2010, p. 99). Para Altuna, os bantu consideram certos lugares e fenômenos da natureza como centro de interação vital, como também símbolo de transcendência divina. Nesse sentido, “[...] a Lua, o Sol, certas montanhas e lagoas, rochas com formas fantásticas, o arco-íris, o raio, o trovão, certas florestas, a chuva, os eclipses [...] podem fortificar ou destruir o homem e a comunidade” (ALTUNA, 2014, p. 426), visto que são dotadas de vida eminente (ALTUNA, 2014). Pensando assim, há de confirmar que a correspondência estabelecida entre o homem e a natureza configura uma conexão vital entre a corrente de participação vital e de dependência de cada princípio ancestral. Ciente disso, o tio Abstinêncio preza por manter a prática dos costumes, reiterando a relação com o homem e com o rio.

75

Outro exemplo dessa conexão entre o humano e os recursos naturais recorre quando Marianinho está à margem do rio observando as mulheres:

Estou à margem do rio, contemplando as mulheres que se banham. Respeitam a tradição: antes de entrar na água, cada uma delas pede permissão ao rio:

— Dá licença?

Que silêncio lhes responde, autorizando que se afundem na corrente? Não é apenas a língua local que eu desconheço. São esses outros idiomas que me faltam para entender Luar-do-Chão (COUTO, 2003, p. 211).

Marianinho vai entendendo que existem algumas relações com a natureza, as quais o jovem ainda não compreende. Altuna continua contribuindo ao apontar que “esta integração da natureza, de todas as vitalidades, ‘explica’ o mundo, a existência, e origina a visão negra optimista, calma e sossegada do universo” (ALTUNA, 2014, p. 82, destaque do autor). Essa forma de se relacionar com a vida reflete na elaboração das personagens no que se refere à maneira de pensar a produção e o poder.

É possível observar que o provérbio de abertura é uma lástima por causa da ruptura com alguns costumes, o que caracteriza o perfil de crítica desse gênero, conforme orientou Moreira. Essa fratura pode ser exemplificada por meio da forma com a qual as relações de produção e poder são conduzidas na narrativa. A ideia de produtividade comunitária se sustenta, uma vez que há a compreensão de que a terra e tudo que nela habita é doação dos preexistentes (ALTUNA, 2014; LEITE, 1997). Assim, na narrativa, o incêndio ocorrido no cais em uma embarcação de troncos é entendido como resultado das infrações cometidas contra a forma de produção bantu. Diante da adversidade, tio Abstinêncio e Marianinho dialogam:

Fico sentado no cais a assistir o reflexo das chamas na água, num silencioso desdobrar de luz. Abstinêncio se aproxima e se acomoda junto a mim. O suspiro lhe vem quase no chão:

– Foi bem feito!

Esse era sua certeza: o incêndio era punição, vingança divina. Estavam desmatando tudo, até a floresta sagrada tinham abatido. A ilha estava quase dessombreada. (COUTO, 2003, p. 213).

A forma de produção ancestral exige uma relação cíclica com os elementos ancestrais, garantindo a harmonia da comunidade. No entanto, em oposição às superproduções, Leite aponta que “a tecnologia suficiente de que são dotadas essas sociedades elimina a possibilidade da criação de necessidades artificiais”, pois a ideia de condições favoráveis de

76

existência descarta a “concepção segundo a qual o bem-estar depende da evolução instrumental” (LEITE, 1997, p. 112), estando “convencido da inutilidade de produzir mais do que o necessário e imposto pelo grupo” (ALTUNA, 2014, p. 152).

O entendimento sobre o poder perpassa a relação com a produção (LEITE, 1997). A lógica da ambição, a produção em demasia, do lucro e do acúmulo são contrários à forma de organização do poder em sociedades bantu – ainda que em cada uma haja diferença de sistematização. Assim, diante de uma realidade em guerra, em confrontos por obtenção de benefícios, privilégios e dominação, a relação de poder se torna problemática. Em diálogo com o pai, essa condição aparece:

Fazia trinta anos que meu pai anunciara que iria fugir e juntar-se à luta pela libertação. Eu ainda não era nascido. A reunião foi a três: meu pai, minha mãe e o Avô Mariano. Minha mãe fungava, em resignação. A reação do mais-velho foi de descrença. Que esses que diziam querer mudar o mundo pretendiam apenas usar nossa ingenuidade para se tornarem os novos patrões. A injustiça apenas mudava de turno.

[...]

A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem tão mansos dentro de nós que se revelam apenas por um imperceptível pestanejar de pensamento (COUTO, 2003, p. 222).

A preocupação do avô com aquilo que havia se tornado o poder era recorrente, garantindo que para a restauração dele nos moldes ancestrais “não basta que seja pura e justa a nossa causa. É preciso que a pureza e a justiça existam dentro de nós” (COUTO, 2003, p. 223). Consoante a esse posicionamento da personagem, “o poder nunca é pessoal” (ALTUNA, 2014, p. 228), portanto, pertence e é restaurado pela coletividade, para que o mundo seja um lugar, conforme o provérbio, tanto de viver quanto de morrer.