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Durante a realização da pesquisa, fui constando que as observações apresentadas referentes à Religião Tradicional Bantu se embaralham com o que foi visto referente à ancestralidade nas seções anteriores. Altuna (2014) apresenta uma relação paradoxal para a discussão aqui tratada ao afirmar que:

Durante muitos anos, o conjunto de crenças tradicionais bantu não logrou a dignidade de ser considerado uma religião. Seria apenas um conglomerado grosseiro de superstições que tinha de ser desprezado e eliminado sem consideração.

Afirmava-se que essas crenças não trazem nenhuma contribuição, porque a sua religiosidade não ultrapassou o feiticismo tosco e elementar. Todavia, basta debruçarmo-nos sobre esse conjunto de crenças e cultos para encontrar uma estrutura religiosa firme e digna (ALTUNA, 2014, p. 353).

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No intuito de defender a existência de uma religião sólida em África, o autor critica outros pesquisadores quando afirmam que “a vida e o comportamento dos negros estão determinados apenas pelos instintos mais primitivos” (FROBENIUS, 1913, p. 13 apud ALTUNA, 2014, p. 353). No entanto, a defesa de Altuna se aproxima da tentativa de provar que a religião mais próxima daquela pregada por Jesus Cristo já existia em África: “apesar de suas sombras, por vezes bem densas, a Religião Tradicional contém ‘preparação evangélica’ tão notória e vivida que, talvez, seja ela a religião não-cristã mais próxima da Mensagem de Jesus de Nazaré” (ALTUNA, 2014, p. 354).

Nota-se, então, que a utilização de termos, como “preparação evangélica” ou “Mensagem de Jesus de Nazaré”, não corresponde àquilo que parece caracterizar a doutrina. Além disso, ao buscar definir o que é a Religião Tradicional Bantu, o autor esbarra na dificuldade de resumi- la em apenas uma palavra, que seja capaz de sintetizar a dimensão e a complexidade de seu funcionamento, uma vez que nesta investigação, Altuna menciona termos como “Feiticismo”, “Animismo”, “Naturismo”, “Ancestralismo”, “Manismo”, “Animantismo” e o “Totentismo”, informando que “nenhum deles foi capaz de ‘abarcar sua completude’” (ALTUNA, 2014, p. 364) a definição. Esse embaraço ocorre, pois “não existe nenhuma instituição, seja no campo social, seja no político ou ainda no econômico, que não assente num conceito religioso” (ALTUNA, 2014, p. 366), o que origina a dúvida em torno de como nomear essa crença. Nesta busca, o autor informa quais “requisitos” a Religião Tradicional Bantu comportaria, mencionando especificamente em relação à cultura:

[..] os componentes da Religião Tradicional bantu: noção clara de um Ser Supremo Criador, crença em seres intermediários, tais como espíritos não incarnados e génios, antepassados muito activos e ligados ao mundo visível e que, por isso, são honrados com profusão de cultos. A possessão reforça esta crença e actua como reintegrador social. (ALTUNA, 2014, p. 367, destaque nosso14).

No mesmo sentido, Oliveira (2002)15 endossa o ponto de vista da antropóloga Iraê Batista Ludin quando afirma que “religião é uma instituição que possui os seguintes aspectos: um caráter normativo, algo sagrado; rituais ou manifestações cerimoniais rigorosamente estruturadas; unidade no ritual e a crença em algo sobrenatural” (OLIVEIRA, 2002, p. 47-48). Entre Altuna e as contribuições dessa antropóloga há um elemento diferenciador: o caráter normativo. A Religião Tradicional Bantu parece possuir uma “norma” muito mais abrangente,

14 Incorporação

15 Oliveira analisa a cultura moçambicana, mas usa “Religião Tradicional Africana” ao invés de “Religião

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afinal, “onde se encontra o indivíduo, aí está a religião no seu aspecto global” (OLIVEIRA, 2002, p. 48). Torna-se viável afirmar que essa religião é prática de vida que engloba diferentes ritos e costumes conforme o povo a que se refere.

Neste caso, a religião para o povo bantu possui um significado divergente à concepção ocidental. Oliveira afirma que “toda a cultura africana é perpassada pela religião e por isso não compreenderemos plenamente o/a africano/a sem entender sua religião” (2002, p. 13). No entanto, para essas sociedades africanas, religião é vida, não uma instância institucionalizada. Não há separação entre a vida e todas as suas dimensões, uma vez que “todas as tradições africanas postulam uma visão religiosa do mundo” (HAMPATÉ BÂ, 1982, p. 173), ou seja, a religião “estava (e está) inextricavelmente ligada à cultura africana” (OPOKU, 2010, p. 591). Oliveira (2002) acrescenta ainda que “o conceito de religião está quase sempre influenciado pelas diferentes experiências vividas pelos diversos povos e reflete em seu próprio universo de socialização” (p. 46), em que a forma de organização social e as crenças estão intrinsecamente ligadas aos antepassados.

Sem essa possibilidade de definição categórica do que é a Religião Tradicional Bantu apresentada por esses autores, parece que essa religião se aproxima do que definimos anteriormente como relação ancestral no contexto comunitário. O próprio Altuna (2014) aponta que “a África negra conserva a religião que recebeu dos antepassados, como fator decisivo de sua cultura” (p.365), o que nos faz compreender que religião tradicional e ancestralidade se mesclam nas comunidades bantu, sendo difícil diferenciá-las. Ao mesmo tempo, algo parece unificá-las: a tradição. Ela se torna o vetor de direcionamento no processo de socialização das comunidades, orientando afirmar que “na religião tradicional não existem dogmas. As comunidades apenas assimilam as crenças e práticas pela tradição” (OLIVEIRA, 2002, p. 52).

Pensando assim, a tradição é fundamentada na relação com o sagrado que se faz agente, inserindo o indígena numa condição que o diferencia do profano, afinal, “o sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades ‘naturais’” (ELIADE, 2010, p. 16). Novamente religião e ancestralidade se entrelaçam, pois conforme Mircea Eliade, no livro O Sagrado e o Profano, (2010), “para aqueles que têm experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se um hierofania” (p. 18), ou seja, qualquer elemento pode revelar

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o sagrado, logo, vale o registro de que tanto a ancestralidade é religião à medida que regula a existência de todos os seres viventes.

Na narrativa URCT UCCT, a relação é dicotômica, polarizando a religião colonial e as práticas sagradas autóctones, mas não há referência nomeada à Religião Tradicional Bantu. Essa relação fica evidente na epígrafe deste capítulo em que “a fé no deus dos católicos” deixa evidente que não é um movimento voluntário da sociedade de Luar-do-Chão. A vida é norteada por outras crenças, outros deuses e outras formas de estar no mundo. Por esse motivo, a busca é por elementos ancestrais.

Levando em consideração estes elementos observados, continuei esta pesquisa entendendo que se a Religião Tradicional Bantu está fundamentada na vivência dos bantus, concordando que “a chave, para entender esta Religião não pode ser senão a compreensão da participação, da solidariedade vertical e horizontal, do anseio de viver em comunhão fortificante com os canais da vida [...] com a comunidade” (ALTUNA, 2014. p. 368), portanto, assemelha-se à relação ancestral, pois para o indivíduo essa religião “torna-se força motriz da sua vida” (ALTUNA, 2014, p. 370) e “o princípio de tudo é ancestral, muitas vezes mítico, que deu origem ao grupo em questão” (LUDIN, 1992, p. 46 apud OLIVEIRA, 2002, p. 55). Logo, ancestralidade é religião no sentido em que esses conhecimentos norteiam a vida do sujeito, organizando-a de modo que as existências são moldadas por meio de sua. Sendo assim, pensando na questão ancestral em URCT UCCT, há também necessidade de analisar como essa tradição permanece historicamente na narrativa coutiana.