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Introdução

Desde o início dos anos 1870, a Monarquia brasileira via-se cer- cada de questionamentos, mas o regime mantinha-se sob o centra- lismo de D. Pedro II, que governava evocando a imagem de soberano revestido de poder sagrado, legitimando suas decisões pessoais não somente como chefe da nação, mas como príncipe solenemente in- vestido pelo sacerdócio, tal qual nos tempos medievais.

No regalismo3 brasileiro, a dualidade das fontes do poder, que advinha de “Deus” e do “povo”, inscrita na Carta de 1824, permitia ao imperador escolher para ministros aqueles que lhe pareciam mais

1 . Universidade Comunitária da Região de Chapecó. 2 . Universidade Federal de Santa Catarina.

3 . Regalismo descende de regalia, relativo à “realeza” ou que “pertence ao rei”. Ao longo da Idade Média, o vocábulo deu origem à noção de “regalismo”, dou- trina que sustentava a intervenção do chefe de Estado em assuntos religiosos (Cf. KRITSCH, 2002).

dóceis à sua vontade. Seu poder arbitrário, que se manifestava nas mudanças intempestivas do Ministério, gerava constantes críticas e desconfortos, tanto de conservadores quanto de liberais.

De outra parte, a propaganda republicana avançava na medida em que aumentavam os descontentamentos ao regime vigente. Soma- va-se às vozes dos liberais o coro dos positivistas, clamando pela reforma das instituições e pela derrubada dos privilégios da Igreja Católica. A célebre Questão Religiosa também muito contribuiu para o desmoronamento da instituição imperial, pois, de um lado, serviu para a difusão da ideia democrática e republicana, na qual as liberdades de consciência e de culto eram suas balizas principais; de outro, cooperou para o descrédito da ordem monárquica, diante de sua impotência à subversão dos bispos.

Assim, aos poucos, a histórica aliança entre Estado e Igreja foi sendo minada, e sinais do enfraquecimento das relações entre trono e altar já haviam se manifestado, tanto pela publicação do Decreto n.º 7247/1879, que instituiu a liberdade de ensino e dispensou os acatólicos das aulas de Instrução Religiosa, quanto pela Reforma Eleitoral de 18814, que estendeu a elegibilidade aos não católicos.

Contudo, o imperador mantinha-se fiel ao regime regalista, e a separação entre os poderes político e religioso era algo que ele pro- curava evitar. Do modo similar, também a hierarquia católica lutava para manter a aliança com o poder secular, apesar do crescente des- contentamento dos prelados da constante interferência estatal em assuntos eminentemente eclesiais. Os religiosos insistiam na ideia de que todo poder emanava de Deus e que, portanto, seria trágico um imperium separado do sacerdotium. Somente a Igreja poderia sal-

vaguardar, com sua auctoritas, a moral e os bons costumes, sem os quais, qualquer sociedade poderia ruir.

A queda do regime monárquico foi apressada por outros aconteci- mentos, como a abolição da escravatura, oficializada em 13 de maio de 1888. Com ela, sobreveio a crise na lavoura, e as classes conserva- doras abandonaram o trono e rumaram às fileiras republicanas. Ade- mais, a doença do imperador e suas constantes ausências, devidos às suas viagens à Europa, o receio do coroamento da princesa Isabel em um possível terceiro reinado, o aumento dos impostos, entre outros pontos, contribuíram significativamente para o fim da Monarquia.

Diante do cenário desolador, era perceptível à opinião pública que o Império estava desabando. Como alternativa, defendia-se um regime diametralmente oposto: a república federativa presidencial. Nas capitais das províncias, a imprensa realizava a “evangelização” pela derrocada do trono. Nas escolas militares, os oficiais estudavam a doutrina presidencialista de Auguste Comte.

Em março de 1887, caía o imperador gravemente doente e logo correram boatos alarmantes sobre o seu estado de saúde. A opinião pública percebera que o imperador não conseguia mais governar. Foi justamente no momento em que se constatou um “vazio do poder” que os militares tomaram à dianteira. Benjamin Constant, em reu- nião secreta no Club Militar, propôs a revolta contra as autoridades constituídas. Ele era o principal difusor das doutrinas de Auguste Comte no Exército, pois desde longa data atuava como professor na Escola Militar.

Em 10 de novembro de 1889, Constant foi ao encontro do general marechal Deodoro, homem de grande reputação, que detinha auto- ridade para reunir em torno de si grande parte da Armada. O general

aceitou a “solução republicana”e, para tirar o caráter puramente militar da “revolução”, no dia seguinte, aliaram-se a quatro civis: Quintino Bocaiúva, Francisco Glicério, Aristides Lobo e Rui Barbosa. O plano conspiratório ganhou mais força no dia 13, quando o ma- rechal Floriano Peixoto, encarregado da segurança do Ministério, aderiu ao movimento (MAXIMILIANO, 1918). E assim, na manhã de 15 de novembro, as tropas destituíram o regime monárquico.

Considerando esse cenário, neste capítulo, intenta-se com- preender como os processos de laicização do Estado e do ensino público foram tratados e incorporados no arcabouço jurídico da Re- pública brasileira.5 Para isso, serão analisados o teor e o processo de construção dos decretos, anteprojetos e da própria Constituição de 1891. O exame levará em conta a realidade social brasileira do final do século XIX, para contrastar a distância entre as ideias im- portadas e a situação real interna. Procurar-se-á demonstrar que a República idealizada por notáveis homens públicos, formados nas escolas europeias e estadunidenses, chocava-se frontalmente com uma “massa” profundamente religiosa, analfabeta e desprovida dos meios básicos para o exercício de seus direitos civis. Assim, por mais

5 . Faz-se necessário precisar o sentido dado ao termo “laicização” neste tra- balho. Desde a origem do cristianismo, o termo “laicus” passou a designar aquele que não era clérigo. Contudo, registros de 1487, indicam que, na língua francesa, “laicus” deu origem a “laïque”, com sinônimo oposto a clero. A partir do século XIX, “laïque” começou a indicar um espaço que estava para além do controle re- ligioso, assumindo contornos de oposição ao clerical ou até como anticlerical. Foi aí que os termos como “laicidade”, “laicizar” e “laicização” começaram a ser em- pregados, principalmente nos países de língua latina, onde a separação do poder político ocorreu em meio a uma luta direta contra a Igreja Católica. Já no contexto norte-europeu, a terminologia mais utilizada para expressar a mesma ideia foi “secularização” e “secularismo”. É que nos países anglo-saxões, como resultado da Reforma protestante, havia menor monopólio eclesiástico, e a separação entre o temporal e o espiritual se deu de modo distinto (Cf. CECCHETTI, 2016).

que a República fosse nomeadamente laica, o povo continuava ape- gado à religião, e essa peculiaridade não podia ser desconsiderada.

Neste sentido, infere-se que a laicização do Estado avançou mais no campo jurídico que propriamente em nível das mentalidades e que as contradições entre os textos legais e as práticas do Governo republicano permitiram a persistência de cordialidades e alianças entre agentes estatais e religiosos.