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Na literatura portuguesa (incluindo as obras de natureza mais filosófica, como as do padre António Vieira), é possível reconhecer linhagens de reflexão identitária de diferentes matizes, do tema até à autoria (personalidades da Igreja) e à elaboração simbólica através da qual se esboça ou reforça Portugal como nação eleita e de missão, signo inscrito na mítica e fundadora Ourique, sucessi- vamente recordada e reconfigurada, até na bandeira.

Na modernidade marcada pelo désenchantement du monde (Max Weber, Marcel Gauchet), as artes continuaram a devolver-nos ima- gens de uma espiritualidade marcadamente cristã, mesmo nos casos em que a universalidade emerge como um valor ecuménico e, even- tualmente, alheio a definições exclusivistas.

Sobre esse fundo de continuidades, desenham-se as descontinui- dades. Numa grande e bem fundamentada angular de quatro séculos, Miguel Real sintetiza, numa conclusiva reflexão sobre os Traços Fun-

damentais da Cultura Portuguesa (2017):

Assim, se quiséssemos definir o tempo moderno e contem- porâneo da cultura portuguesa entre 1580 – data da perda da independência – e 1980 – data do acordo de pré-adesão à Co- 1 . Universidade de Lisboa.

munidade Económica Europeia –, passando simbolicamente pelo ano de 1890 – data do Ultimatum britânico a Portugal –, atravessando 400 anos de história pátria, defini-lo-ía- mos como o tempo do canibalismo, o tempo da culturofa- gia, o tempo em que os portugueses se foram pesadamente devorando uns aos outros, cada nova doutrina emergente destruindo e esmagando a(s) anterior(es), estatuídas estas como inimigas de vida e de morte, alvos a abater, e as suas obras como negras peçonhas a fazer desaparecer. Católicos ou erasmitas, papistas ou hereges protestantes, jesuítas ou “pombalinos”, religiosos ou maçónicos, tradicionalistas ou modernistas, espiritualistas ou racionalistas, cada corrente só se entendia como una e independente quando via o seu reflexo “puro” nos olhos aterrorizados e impuros do adver- sário, quando o desapossava de bens, lhe subtraía o recurso para a sobrevivência e, em última instância, quando o prendia ou matava, […] como aconteceu com os maçónicos e repu- blicanos face ao legado pombalino, fundado numa das mais impressionantes mitologias culturais alguma vez inventadas em Portugal, erguendo a maior e mais importante estátua do Marquês de Pombal em pleno centro de Lisboa. (REAL, 2017, p. 230-231)

Procuremos, nesta grande angular, alguns padrões da cartografia do nosso imaginário pelas letras nacionais. E vejamos como a lite- ratura nos oferece reflexos de uma caminhada para a via que parecia ser a única possível quando a Monarquia se revelou incapaz de re- solver o sentimento de decadência agudizado ao longo do século XIX até ao paroxismo do Ultimatum inglês e dos suicídios de grandes

figuras2, que fizeram Miguel de Unamuno dizer, em 1908, ser Por- tugal “um país de suicidas” (Por Terras de Portugal e de Espanha), e Manuel de Laranjeira confessar-lhe, epistolarmente, que, em Por- tugal, “o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção da moral”, pois, nele, “tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa” (BRANDÃO, 2013): a via para a República, que, apesar de todos os problemas, nunca é posta em causa, pesem em- bora as críticas a ela feitas, mesmo pelos que se empenharam nessa construção de regime.

Portugal emerge de reflexão diversa, que ora o representa como

ser com horóscopo (Fernando Pessoa, António Telmo), com vocação

(Miguel Real), destino (Joaquim Veríssimo Serrão), personalidade (Eduardo Lourenço) e/ou perfil histórico (Pedro Calafate) ou literário (Camões, frei Bernardo de Brito, Fernando Pessoa), com origens lendárias ou míticas (Ulisses, Tubal) ou miraculosas (Ourique), tri- bais (Viriato), que nasce (Damião Peres, Domingos Amaral) e morre (Miguel Real), que tem medo de existir (José Gil) ou não (Carlos Zorrinho), ou que tenta enfrentá-lo (Manuel Carvalho da Silva), ou é feliz (Elizabete Agostinho), sob o signo da profecia (padre An- tónio Vieira, Bandarra), “sobrenatural” (Manuel J. Gandra) e onde há “seres mágicos” (Vanessa Fidalgo), se viaja (José Saramago) e

2 . Recordemos alguns: em 1876, José Fontana; o médico Francisco da Cruz Sobral, em 1888; o escultor Soares dos Reis, em 1889; Camilo Castelo Branco, Júlio César Machado e Silva Porto, em 1890; Antero de Quental, em 1891; o militante ope- rário Luís de Carvalho, em 1893; o escritor operário Henrique Verdial, em 1900; Mouzinho de Albuquerque, em 1902; Trindade Coelho e o jornalista Alberto Costa, o “PadZé”, em 1908; o almirante Cândido dos Reis, membro da carbonária portu- guesa, em 1910; Guedes Quinhones, militante socialista e jornalista operário, em 1911; Manuel Laranjeira, em 1912; Mário de Sá-Carneiro e Manuel Laranjeira, em 1916; Florbela Espanca, em 1930.

o sol dança (Jeffrey S. Bennett)… ora o afirma como determinado por circunstâncias geográficas e de vontade de alguns ou de muitos (Alexandre Herculano, Oliveira Martins, José Mattoso, António José Saraiva, Rui Ramos, etc.), ora lhe denuncia limitações (Vieira, Verney, Antero, António Sérgio e tantos outros), ora lhe evidencia a obra imperial (Henry Morse Stephens, Martim de Albuquerque, António Santos Pereira, A. R. Disney, Maria Isabel João),  ora o pers- cruta entre luz e sombras (Agostinho da Silva, José Eduardo Franco), entre a Europa (Almeida Garrett, Borges de Macedo, Eduardo Lou- renço, Miguel Real, Pedro Calafate, José Eduardo Franco) e o mundo (sebastianismo, Quinto Império)…

Não há, pois, uma essência de portugalidade, mas construções cultu- rais que conferem lógica e sentido ao que é sucessão de multifatoria- lidade; a verdade é que, após a clivagem entre as elites nacionais e as populações potenciada pela tragédia de Alcácer Quibir e, depois, pelas vagas do ouro brasileiro, a refundação romântica, que acompanha as congéneres europeias, retoma o ideário de uma comunidade unida sob o ideário de um povo idealizado que a República reconfigurará: das constituições monárquicas às republicanas, incluindo a de 1975, será em seu nome e em nome de uma modernização de molde europeu que a nação se repensará, em discurso que encobre e/ou ignora o ir- reduzido fosso entre as classes economicamente desfavorecidas e as elites políticas e intelectuais (por sua vez, clivadas também entre a perspetiva tradicionalista e a inovadora, “estrangeirada”).

Decorrendo disso, a própria configuração do “português”, su- cessivamente confrontado pela aventura marítima com o “afri- cano” (o “mouro”, o ímpio, o “cafre”, o negro escravo), o índio e o oriental, de cultura, religião e civilização diferentes, vai caldear-se