• Nenhum resultado encontrado

O Pai na psicanálise: Reflexões críticas

No tópico anterior, discorreu-se acerca da pluralidade de modelos familiares, ressaltando o quanto o modelo familiar - pai, mãe e filhos -, construído historicamente, permanece em alguns momentos como norma a partir da qual se mensuram os desvios familiares e as conseqüências negativas desses “desvios” para a formação dos indivíduos.

Algumas concepções teóricas dão especial lugar a esse modelo e à função do pai na dinâmica familiar. Desde já, é imprescindível uma ressalva sobre os limites do presente trabalho, o qual não tem por objetivo uma discussão das teorias psicanalíticas acerca da função paterna. Portanto, não abarca uma análise do lugar do pai nos diversos autores de base psicanalítica, de modo que a inscrição no título falência do Pai ou falência da Pátria possui um caráter mais provocativo do que conclusivo.

Todavia, configura-se como material de discussão o uso que se tem feito de alguns jargões da psicanálise, ainda que equivocadamente.

A discussão sobre o pai “concreto/simbólico” ou a função paterna, e não o pai concretamente, é diferenciação fundamental na linguagem psicanalítica. No entanto, observa-se que essa diferenciação relevante em contextos acadêmicos ou clínicos não é tão palpável em contexto como o tratado neste estudo, recaindo as caracterizações de falência, ausência ou fragilidade sobre aquele pai concreto, sentado na frente do técnico, reproduzindo relações de poder que aquele pai já conhece, como, por exemplo, entre patrão e empregado.

42

Segundo informações da Fundação Casa3, 51% desses pais, são homens que vivem

realidades concretas muito árduas: ocupam a função de pessoal de serviços, vendedores, trabalhadores não qualificados e operários, ao passo que apenas 1% ocupa o lugar de especialistas das profissões intelectuais e científicas.

Quando saem das salas onde são avaliados, muito provavelmente não tiveram nenhuma explicação sobre função, simbolismo ou algo parecido e serão concretamente cobrados pelas suas fragilidades, o que poderá acarretar a permanência de seus filhos na medida de privação de liberdade, sem nenhum simbolismo ou metáfora. É esse uso o limite do presente estudo.

Para ilustrar o uso, recorreu-se às considerações de Frasseto sobre a leitura de avaliações psicológicas em adolescentes privados de liberdade, com amostra selecionada para elucidar a motivação apresentada pelos psicólogos ao sugerirem a medida de internação. Diz ele que “emerge dos laudos o referencial psicanalítico ou psicodinâmico no qual as conclusões sobre o ser humano vêm ancoradas” (2005, p 108).

Segundo o autor, tais conclusões ocupam o lugar de âncora nas justificativas para a indicação ou manutenção da medida de internação:

O progenitor mostra-se bastante limitado e fragilizado pela idade e saúde debilitada, parecendo absolutamente desvitalizado enquanto figura reguladora (...) Parece ter carecido de figura de autoridade efetivamente atuante enquanto referência de ascendência sobre si, sugerindo falência da função normativizadora familiar (...) Este jovem provêm, portanto, de grupo familiar que se mostrou incapaz de oferecer-lhe condições para seu pleno desenvolvimento bio-psico-social (FRASSETO, 2005, p. 113).

Rauter, ao refletir sobre os pressupostos em que se baseiam as avaliações, exames e procedimentos diagnósticos de indivíduos encarcerados afirma que:

3

43

A idéia de que as relações estabelecidas na infância, pelo indivíduo, com seus familiares, é de fundamental importância na formação da sua personalidade, é largamente aceita pelos chamados profissionais de saúde mental, de várias tendências. A psicanálise, aqui também suporte para tais idéias, tem sido questionada hoje a respeito de suas teorizações sobre o Complexo de Édipo, espécie de mini-drama familiar comum à maioria dos seres humanos. Até que ponto seria generalizável a ocorrência do drama edipiano? Não será ele peculiar a um certo tipo de família, localizada numa determinada época histórica, num determinado segmento social? (RAUTER, 2003, p. 92).

De qualquer modo, mesmo que os psicanalistas afirmem tratar-se de “imagens parentais internalizadas” e não de personagens concretos, o fato é que o modelo edipiano mais difundido é aquele que pressupõe a existência de uma família baseada na autoridade paterna e composta de pai, mãe e filhos (RAUTER, 2003, p. 92).

A autora continua, citando como a difusão do modelo edipiano a que se fez alusão – pai, mãe e filhos – reflete-se nas avaliações:

É a difusão deste modelo edipiano, talvez em desacordo, dirão alguns, com a teoria “pura”, que permitirá a nossos psicólogos e psiquiatras forenses caracterizarem como potencialmente criminogênicas e patogênicas situações do tipo: famílias onde ocorreu a morte do pai ou o abandono precoce por parte deste; famílias onde o pai bebe, está preso ou doente; famílias onde a mãe cria o filho sem pai, ou onde a mãe tem filhos de homens diferentes; famílias onde a mãe está ausente, mesmo que seja por ter trabalhar (RAUTER, 2003, p. 92).

Nesse sentido, objetivou-se aqui, no decorrer da análise documental, verificar se esses pressupostos embasaram posicionamentos estigmatizantes e enfatizar o diálogo dos profissionais do Serviço Social com os supramencionados pressupostos, até porque a mesma autora evoca a relevância das condições concretas de existência e o quanto trazer à tona essas condições possibilita uma melhor compreensão das formas de organização familiar. Veja-se:

E logo nos damos conta de que todos os graves indícios de anormalidade mental ou de tendência a delinqüir encontrados na história familiar dos indivíduos examinados fazem parte da realidade mais comum e cotidiana vivida pela camada da população a que pertencem. Ou seja, as condições de miséria geradoras pela própria exploração capitalista recebem uma leitura estigmatizante, que é utilizada na construção da personalidade criminosa. Entretanto, o que é tomado por nossos peritos como “anormalidade” constitui, na verdade, a regra, o resultado mesmo das

44

Em célebre artigo intitulado Psicanálise da criminalidade brasileira: ricos e pobres4, o

psicanalista Hélio Pellegrino apresenta algumas reflexões sobre o diálogo entre a psicanálise e a crise social, trazendo relevante contribuição ao presente estudo. O autor inicia o artigo expondo a sua leitura sobre a criminalidade e crise social:

A criminalidade, portanto, cresce a partir de um certo tipo de crise social, ou melhor: ela é expressão e conseqüência de uma patologia social suficientemente grave para gerá-la. Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega a lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover uma identificação agregadora entre os membros de uma comunidade.

A vida social, para ser respeitável e suportável, precisa estar irrigada e vivificada por princípios mínimos de justiça, de equidade, de legitimidade do poder político, de respeito pelo trabalho e pela pessoa humana. Esse elenco de valores, acolhido por todos e cada um, irá constituir o Ideal de Eu de uma cultura determinada. O Ideal de eu, referência identificatória comum aos membros de um processo civilizatório, constituirá o cimento capaz de promover a integração - e a coesão - do tecido social.

Quando falta esse cimento; quando apodrece o elenco de valores que constitui o Ideal do Eu de uma sociedade; quando a injustiça impera e a iniqüidade governa; quando a corrupção pulula e a impunidade se instala; quando a miséria de milhões se defronta com a aviltante ostentação de pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que - no presente momento - define e estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade desfralda a sua bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma estrutura social também perversa.

Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa.

A erradicação da criminalidade, através de medidas puramente sintomáticas, é um procedimento ideológico destinado a encobrir a responsabilidade social na produção dessa mesma criminalidade.

O renomado psicanalista, ao expor sua visão sobre a criminalidade, considera-a como expressão de uma patologia social; não faz uso da psicanálise, pois, para atribuir a questões psíquicas a expressão de patologias sociais. Nesse sentido, já em 1.984, estabelece um diálogo interdisciplinar, uma vez que, em sua leitura da criminalidade, considera as questões sociais envolvidas.

No mesmo texto, Pellegrino apresenta um diálogo entre o pacto edípico e o pacto social, apresentando uma exposição sobre o Complexo de Édipo, a saber::

4

45

O Complexo de Édipo é, para o criador da psicanálise, a principal articulação estruturante do psiquismo humano.

Ao mesmo tempo, é fonte e origem das relações elementares de parentesco e das instituições sociais, de caráter leigo ou religioso. É na constelação dos conflitos edípicos que a criança se defronta, de maneira crucial e inaugural, com as figuras da Lei, da interdição, da transgressão, da culpa e do temor ao castigo, advindo do poder de polícia e do papel de juiz atribuídos ao Pai. Vamos relatar, de um ponto de vista descritivo, o Complexo de Édipo, segundo o pensamento de Freud. A exposição que faremos se refere exclusivamente ao Édipo masculino, na sua forma direta, ou positiva. Este caminho implica, sem dúvida, uma simplificação. Através dela, entretanto, ganharemos uma simplicidade e uma clareza elucidativa capazes de favorecer a eficácia da tese que iremos expor.

Par Freud, entre os três e os cinco anos, o menino se encontra na fase genital infantil - ou fálica - de seu desenvolvimento psicossexual. Nessa idade, tendo já o pênis como seu principal órgão de prazer, apaixona-se pela mãe, desejando-a sexualmente, ao mesmo tempo que odeia o pai e imagina a sua destruição, já que este é, segundos sua fantasia, o rival que lhe barra o caminho do incesto.

A vicissitude edípica, cheia de som e fúria, é extraordinariamente penosa, pelas culpas que suscita e pelos temores que desperta. A relação do menino com o pai, nessa época, é marcada por forte ambivalência. O menino odeia o pai e quer matá-lo, mas, ao mesmo tempo, o ama, admira e respeita. Concomitantemente, teme, com todo o seu corpo, a retaliação paterna, por ele imaginada.

O Édipo, representando a gramática pela qual o desejo se estrutura, de modo a integrar-se no circuito de intercâmbio social, significa também uma etapa decisiva no processo de separação entre a criança e a mãe. Esta separação é absolutamente indispensável, caso contrário a criança jamais chegará a superar sua dependência infantil. A construção desse afastamento se inicia com o corte do cordão umbilical. Depois, chega a época traumática do desmame. A seguir, são impostas as regras de controle esfincteriano e de higiene, ligadas à excreção. Por fim, vem o Édipo e a interdição do incesto. A partir daí, o menino perde profundamente a mãe, enquanto objeto sexual, e se credencia ao grave preço desta perda, a ganhar os caminhos do mundo e o amor futuro das outras mulheres. (...) A resolução do Édipo é condição indispensável para a boa inserção da criança no circuito de intercâmbio social.

O menino, no Édipo, esbarra com a potência de interdição da lei e, nesta medida, tem que renunciar à onipotência do seu desejo, o que corresponde a uma terrível injúria narcísica. Ele tem que abandonar o princípio do prazer e aceitar o princípio da realidade, pelo qual vai inserir-se no circuito de intercâmbio social.

Essa grave renúncia, entretanto, não se faz em pura perda. A Lei do Pai, fora de dúvida, exige do menino um sacrifício portentoso. Mas, uma vez integrada, abre para o seu desenvolvimento perspectivas cruciais e fundadoras. A Lei do Pai implica uma ação de troca e de intercâmbio amoroso. Ela pede - mas doa. Constringe, mas liberta. Impõe ao desejo uma gramática mas cria a possibilidade do livre discurso amoroso.

Deveres e direitos

A lei da Cultura é, em sua essência, um pacto, um toma-lá, dá-cá, um acordo pelo qual a criança é introduzida como aspirante a sócia da sociedade humana. Ela adquire, pelo Édipo, um lugar na estrutura de parentesco, ganha nome e sobrenome, tem acesso à ordem do simbólico e, portanto, à linguagem, liberta-se da excessiva dependência à mãe e se torna capaz de iniciar sua aventura humana, como inventora dos caminhos do seu desejo. O Édipo é um crivo crucial. Através de sua estrutura se

46

constitui o modelo básico de intercâmbio entre o ser humano e a sociedade, pela definição de deveres e direitos.

A resolução do Édipo hominiza - e humaniza. A renúncia ao incesto implica, também, a renúncia aos impulsos criminais e anti-sociais. Aceito as regras do jogo da sociedade em que vivo. E passo a jogá-lo.

A capacidade de trabalhar, em qualquer nível, é uma exigência feita pela sociedade a todos os seus membros. Para atendê-la, a criança, mais uma vez, tem que renunciar ao princípio do prazer, acatando - e praticando - o princípio da realidade. Repete-se aqui, ao nível das tarefas, obrigações e deveres sociais, a mesma exigência feita à criança com relação aos seus impulsos edípicos. Para renunciar ao incesto e ao parricídio, a criança teve que abrir mão da onipotência de seu desejo. Este foi o batismo de fogo que a fez ingressar como aspirante a sócia da sociedade humana.

Através do aprendizado escolar, profissional e humano, a criança também tem que abrir mão dessa onipotência. Os dois processos - o Édipo e as subseqüentes tarefas de socialização - representam situações estruturalmente análogas. Se o Édipo é o batismo, o trabalho é a crisma pela qual o ser humano se torna sócio da sociedade humana.

Em ambas as situações, as renúncias exigidas são muito graves. Trabalhar é desistir da onipotência do desejo. É adequar-se ao princípio da realidade. É aceitar os princípios de autoridade, hierarquia e disciplina. É poder conviver, cooperativamente, com os outros. É, afinal, cumprir uma exigência imperativa da sociedade, cujo atendimento deve gerar, por justiça, direitos inalienáveis.

Continuando a exposição, o autor apresenta a relevância do cumprimento do pacto social, sendo que esse trecho merece destacada atenção, pois dialoga com as estruturas de dominação, com o capitalismo selvagem e com o desemprego, aspectos tão enraizados no histórico dos adolescentes autores de ato infracional e de seus familiares. Pellegrino enfatiza ainda os efeitos do apodrecimento dos valores sociais:

A partir do trabalho, exigido pela sociedade, estabelece-se um pacto social que, à semelhança do pacto edípico, tem que ter mão dupla. A competência para o trabalho exige um longo e doloroso aprendizado. Em troca deste sacrifício, quem trabalha adquire o sagrado direito de receber, como paga, o mínimo necessário à preservação de sua subsistência e dignidade - e à de sua família. O pacto social se legitima - e se cumpre - através desse intercâmbio. Sem ele, o pacto se torna viciado e se corrompe, com graves conseqüências.

Suponhamos que pacto social não seja cumprido, por parte da sociedade. O trabalhador, de qualquer categoria, não é recompensado pelo longo esforço que fez. Apesar de sua competência, tem as mãos vazias. Não tem emprego ou, se o tem, ganha um salário que não lhe permite viver com dignidade. O aviltamento do seu trabalho é a mais grave ofensa social que possa ser feita a um homem. Ela o atinge na essência mesma de sua condição de pessoa. Ela ofende o seu senso de equidade e de justiça. Ela o frauda na sua esperança - e na sua fé no mundo. Ela semeia em seu coração a descrença e a revolta.

O desrespeito da sociedade pelo trabalho - e pelos direitos elementares do trabalhador - pode levá-lo a uma ruptura com o pacto social. Desprezado, aviltado, degradado, o trabalhador se nega ao pacto. Rompe com ele, questiona-lhe a estrutura, repudia a validade e a justiça dos sacrifícios que,

47

em seu nome, lhe foram exigidos. O rompimento do pacto social pelo trabalhador, em resposta a uma prévia ruptura da sociedade, pode vir a ter conseqüências catastróficas. Não nos esqueçamos que (SIC) o pacto social - e o pacto edípico - se articulam íntima e indissoluvelmente.

O processo civilizatório, em seu conjunto, obedece a uma mesma linha estratégica. Ela exige progressivas e dolorosas renúncias, mas, em troca, fica obrigado, para legitimar-se a criar direitos e vantagens correspondentes. Suponhamos que haja um rompimento grave da relação de mutualidade que sustenta - e legitima - o pacto social. Essa ruptura, fraudadora e conspurcadora da dignidade humana, pode levar ao desespero, à cólera, à revolta. O trabalhador tenderá a repelir o pacto social e os sacrifícios que exige. Tal repulsa, por outro lado, em virtude da solidariedade que existe entre o pacto social e o pacto edípico, pode vir, por retração, a provocar uma ruptura do pacto edípico, ao nível da realidade intrapsíquica. Esse efeito se tornará tanto mais provável quanto mais existir, numa sociedade determinada, além do desrespeito ao trabalho, um clima de apodrecimento dos valores que poderiam cimentar a coesão social.

O rompimento com a Lei do Pai - ou Lei da Cultura -, através da rejeição do pacto edípico, produz efeitos catastróficos na mente e na conduta do indivíduo, e corresponde a um ato de parricídio. O Édipo é uma gramática pela qual o desejo e a agressão se tornam metabolizáveis e entram no circuito de intercâmbio social. O Édipo implica, necessariamente, renúncia e recalque de pulsões anti-sociais e criminais, não utilizáveis pelo processo civilizatório.

Com a ruptura do pacto edípico, ocorre o retorno do recalcado, para usarmos a expressão freudiana. A barreira do recalque, rompida, liberta o enxurro dos impulsos antes contidos: predação, homicídio, incesto, estupro, roubo e violência de todo tipo passam a ter livre curso na conduta. Estão implantadas as condições extra e intrapsíquicas para uma epidemia de criminalidade, como sintoma de patologia social.

O modelo econômico imposto ao país tornou-se conhecido pelo nome de capitalismo selvagem. Tal modelo, excludente e concentrador da renda, criou uma estrutura social em que o desnível entre os que tudo têm e os que nada possuem é dos mais altos do mundo.

O capitalismo selvagem brasileiro foi - e é - um regime genocida e infanticida, e o pacto social que impõe ao país clama aos céus por justiça. Dinheiro gera dinheiro, para os que o possuem, ao passo que o trabalho cria a pobreza para os que trabalham - quando conseguem trabalhar. E, para coroar tudo, o poder arbitrário, a impunidade triunfante, a cupidez sem limite, o consumismo sem freio, tudo isto, de um só lado - o dos donos da vida. Do outro lado, o rosto anônimo da miséria: milhões de brasileiros condenados à penúria absoluta.

Por outro lado, se a delinqüência e a criminalidade são formas perversas de protesto social, as estruturas de dominação do capitalismo selvagem também são formas criminosas de relacionamento social. ‘Mais grave do que assaltar um banco é fundar um banco’ - costumava dizer Lênin, com o seu evidente exagero bolchevique. A piada do velho revolucionário pode, contudo, induzir-nos a pensar. O assalto a um banco é, obviamente, um ato delinqüente, e quem o pratica se coloca fora da lei, exposto aos seus rigores. Já o dono do banco, quando pratica a usura, cobrando juros escorchantes, capazes de paralisar a produção, também comete ato criminoso, sem contudo pagar o mesmo preço do assaltante.

A delinqüência do pobre o coloca fora da lei e o expõe à punição, tantas vezes vingativa e desumana. Com o rico, ocorre quase sempre o contrário. Ele começa por corromper a lei, pondo-a do seu lado. Com isto, compra a impunidade e conquista, com a pecúnia, o poder e a glória. Ao mesmo tempo, usa a lei pervertida para combate o protesto criminoso do pobre. É nesse nível, duplamente perverso, que decorre a repressão policial pura e

48

violência da criminalidade passará a exigir, para seu combate, a violência policial pura e simples. Chegaremos à aprovação da pena capital e à condecoração, por merecimento, do Esquadrão da Morte.

É por aí, é por esse leito, é no rumo da luta que se propõe a construir o futuro do povo, é por aí que se poderá enfrentar, radicalmente, o problema da criminalidade, na medida em que suas origens sejam expostas, questionadas e atacadas - de maneira construtiva. A criminalidade é uma forma enlouquecida de protesto. É preciso que a indignação e a inconformidade do povo possam formular-se em termos políticos, de modo a torná-la desnecessária e, portanto, verdadeiramente ultrapassável.

Ninguém duvida (SIC) que a criminalidade, no momento, pelo caráter que adquiriu, de guerra civil não declarada, está a exigir um tratamento sintomático, criterioso e enérgico. É preciso mobilizar a máquina da polícia, equipando-a, moralizando-a e humanizando-a.

É preciso derrotar o arbítrio, a corrupção, a indignidade, a incompetência. É preciso acabar com a recessão, o desemprego e o arrocho salarial que matam o povo de fome. É preciso matar a fome do povo.

E, por fim, embora não em último lugar, é preciso ter vergonha e amor à Pátria. Quando isto ocorrer, a patologia social e seu efeito - a criminalidade - estarão debelados.

Em seu artigo, Pellegrino já falava sobre o aumento do poder punitivo em relação aos pobres nos dias que corriam. Mais de vinte anos após a publicação de seu artigo, não

Documentos relacionados