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CAPÍTULO 2 – A PSICOSSOCIOLOGIA E PSICODINÂMICA DO TRABALHO

2. Psicodinâmica do Trabalho

A Psicodinâmica do Trabalho não iniciou seus estudos com essa denominação. Ela carrega consigo grande influência da Psicopatologia tradicional, tanto é que já foi denominada de Psicopatologia do Trabalho e, com o desenvolvimento de seus estudos e a expansão de seu campo, teve seu nome alterado. Foi percorrido esse trajeto teórico-metodológico para explicar e entender como a Psicodinâmica do Trabalho se desenvolveu até sua configuração atual.

Além dos estudos de Dejours, que se confundem com o desenvolvimento da teoria, nesta pesquisa adotamos também alguns estudos nacionais como referência para a construção do raciocínio. São eles: Mendes (2007), Lancman e Sznelwar (2008), Mendes e Morrone (2002) e Bueno e Macêdo (2012). Todos eles balizam o desenvolvimento dessa teoria em fases articuladas entre si, ao mesmo tempo em que apontam algumas publicações de Dejours para caracterizar tais fases.

Seguem as fases:

Fase 1: 1950 até 1970 (pré-estruturação) – influência do modelo médico e dos estudos de Paul Sivadon, Louis Le Guillnat, Fernandez-Zoïla e Jean Bégoin, Moscovitz, e, posteriormente, Veil e J. J. Gillon.

Fase 2: 1980, com a publicação de Dejours de Travail: usure mentale: essai de psychopathologie du travail.

Fase 3: início da década de 1990 (nova denominação: Psicodinâmica do Trabalho). No ano de 1993, Dejours publica o livro De la Psychopathologie à la psychodinamique du travail e, no ano de 1995, lança Le facteur humain.

Fase 4: final da década de 1990 até os dias atuais. Em 1998, Dejours lança o livro Souffrance en France. No ano de 2000, publica-se o prefácio para a 13ª edição do livro

Travail: usure mentale, e o Addendum – Nouevelles formes d’organization du travail et

lésions par efforts répétitifs (LER): aprouche par la psychodinamique du travail. No ano de 2003, o mesmo autor publica o livro L’évaluation du travail à l’épreuve du réel: critique desfondements de l’évaluation. No ano de 2010, sai o livro Suicide et travail: que faire? e, em 2012, a coleção Trabalho vivo.

A primeira fase de pré-estruturação corresponde à fundação da disciplina Psicopatologia do Trabalho, em 1952, com a publicação da obra intitulada Psicopatologia do Trabalho (1952), do psiquiatra Sivadon, e outras duas publicações de Le Guillant, com o nome Psicologia do Trabalho (1952) e Psicopatologia Social (1954). Outros autores, também

da psiquiatria, foram de importância vital para o surgimento e desenvolvimento dessa disciplina, como Zoïla, Bégoin, Moscovitz, Gillon e Veil (LANCMAN; SZNELWAR, 2008).

Todos esses autores permitiram, na época, o surgimento de novas formas de pensar o homem inserido no ambiente de trabalho, seja utilizando o trabalho como modo de integração social de doentes mentais, seja entendendo o trabalho como causador de distúrbios psicopatológicos. Assim, o modelo médico exercia forte influência, até mesmo nos estudos de Dejours desenvolvidos na década de 1970; destaca-se, aqui, a publicação Sobre o princípio do prazer no trabalho (1978).

Evidencia-se, dessa forma, a influência do modelo biológico na história da Psicodinâmica do Trabalho, herdeira da Ergonomia de Wisner (ação sobre condições de trabalho, adaptando-as ao homem para afastar os riscos à saúde, respeitando os objetivos da eficácia) e da Psicanálise freudiana (funcionamento psíquico a partir do modelo médico de diagnóstico e cura das doenças) (BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2003).

Contudo, a Psicopatologia tradicional fracassou diante de seu objetivo: "[...] destacar e caracterizar a doença mental específica originária da organização do trabalho" (DEJOURS, 2008, pg. 23). Essas pesquisas, apesar de contribuírem para a expansão da disciplina, não possibilitaram tal relação. Entretanto, trouxeram a compreensão de que, em alguns trabalhadores, o comportamento, apesar de anormal, não podia ser caracterizado como patologia.

Diante de tal fracasso, uma nova Psicopatologia começa a se estruturar na França a partir de 1980, sob a égide do psiquiatra Dejours. Esse movimento representa o início da segunda fase e tem como referência o livro Travail: usure mentale – essai de psychopathologie du travail, publicado na França em 1980 e traduzido no Brasil, em 1987, com o título A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho5.

O termo Psicopatologia, usado desde Freud (1901) no sentido de se entender as “Psicopatologias da vida cotidiana”, remete à terminologia pathos, que veicula a questão do sofrimento e não apenas da morbidade. Essa proximidade permitiu, mais adiante, trabalhar com o funcionamento psíquico de sujeitos portadores de desejos, o que possibilita a investigação de processos psíquicos, mesmo quando esse sujeito não sofre de doença mental. Por isso, a denominação Psicopatologia do Trabalho continuou denominando tal disciplina.

Dessa forma, a obra de 1980 traz consigo um modelo para tornar a "normalidade" o objeto de estudo da Psicopatologia do Trabalho. A proposta não mais focava a doença mental,

mas sim as estratégias elaboradas pelos trabalhadores para enfrentar mentalmente o trabalho e manter o equilíbrio psíquico. Dejours denominou esses mecanismos de “estratégias defensivas”, talvez uma das principais descobertas do autor (DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYET, 1993). Passou-se a buscar a origem do sofrimento proveniente da relação sujeito/organização do trabalho e a compreensão desse sofrimento e das estratégias defensivas (individuais ou coletivas).

Dejours (1992a) diferenciou, ainda, os conceitos de “condições de trabalho” (ambiente físico, químico, biológico, higiene e segurança) e “organização do trabalho” (divisão de trabalho, conteúdo das tarefas, relações de poder e, mais adiante, relações de trabalho). O sofrimento surge quando a organização do trabalho ataca o funcionamento mental dos trabalhadores. As pressões advindas da forma como o trabalho está organizado podem causar um desequilíbrio no funcionamento psíquico e isso, por sua vez, pode aflorar no corpo por meio de mecanismos da psicossomática. A organização do trabalho, nos moldes taylorista- fordista, não estimula a reflexão e o enfrentamento do sujeito em relação à sua realidade (desejo da produção sobrepõe o desejo do sujeito).

É no conflito entre organização do trabalho e funcionamento psíquico que está a fonte de sofrimento. No entanto, nesse conflito está também a chave das possibilidades de análise. As estratégias defensivas variam de acordo com a situação, podendo ser de proteção (modos de pensar, agir e sentir a situação, visando à compensação e à racionalização das situações desestruturantes, quando as mudanças são desestimuladas), de adaptação e de exploração (exige investimento físico, sociopsíquico e do próprio desejo do trabalhador para negar o sofrimento e a submissão ao desejo da produção).

Dejours (1992a) focou a questão da doença e do sofrimento, voltando-se para a patologia advinda do sofrimento no trabalho e nas maneiras de se lutar contra isso em busca da saúde dos trabalhadores. Ou seja, a saúde é deixada em segundo plano. O referido autor construiu um histórico para retratar a evolução das condições de trabalho, principalmente da classe proletária. Logo após, trouxe a ideia de que as estratégias defensivas, apesar da sua utilidade e efetividade, podem ser utilizadas em benefício da lógica produtivista capitalista, o que vai repercutir na vida do trabalhador, tanto dentro como fora do trabalho.

Existem, além disso, formas criativas utilizadas pelos trabalhadores para fazer seu trabalho em função das prescrições. Tudo isso confere aos trabalhadores aquilo que Dejours, Abdoucheli e Jayet (1993) vão denominar, inicialmente, de “regras de ofício”, quando os próprios trabalhadores constroem seu modo operatório. É necessário envolver processos psíquicos para essa alternativa inventiva, além de rupturas com as normas. Essa transgressão é

denominada posteriormente de “inteligência astuciosa” e, mais tarde, finalmente reconhecida como “inteligência prática”, capaz de conduzir o trabalhador ao prazer no trabalho.

Em A loucura do trabalho (1992a) é exposto, também, o funcionamento do aparelho mental dos trabalhadores insatisfeitos e ansiosos perante as consequências do trabalho: a questão do medo presente em todas as atividades profissionais e do desgaste (físico, psicológico e social). Percebem-se, ainda, diversas formas de sofrimento (físico, mental, sensorial e emocional) de várias atividades profissionais, vinculando esse sofrimento a tarefas repetitivas.

Na referida obra, há uma discussão sobre o sofrimento, não o deixando restrito apenas ao caráter pejorativo. Ele pode advir do corpo (ações mecânicas de ordem ergonômica) ou do psiquismo (insatisfação em relação aos significados das atividades e falta de reconhecimento). O sofrimento relacionado ao trabalho, para Dejours (1992a), pode ser causador de problemas e doenças mentais – sofrimento patogênico –, ou mobilizador, no próprio sujeito, de melhorias para sua vida – sofrimento criativo.

Consequentemente, para Dejours (1992a), a única forma de se evoluir em relação à saúde mental é por meio de um "duplo movimento": 1) transformação da organização de trabalho e 2) dissolução dos sistemas defensivos. Não existe solução ideal, mas é necessário ter sempre esperança na possibilidade de evolução. Configura-se, portanto, a importância do trabalho para a existência humana.

Assim, a solução não está na retirada do trabalho dos trabalhadores, mas em encontrar meios que privilegiem a saúde. Uma possível saída está na (re)apropriação do desejo dos sujeitos e no consequente resgate do pensar e agir criticamente sobre a organização do trabalho, voltado para a construção coletiva.

Existe, ainda, na mesma publicação, o “Anexo”, que traz questões metodológicas e propõe a importância da fala e do silêncio dos sujeitos, bem como a interpretação e a análise. A palavra do trabalhador é a via de acesso às vivências subjetivas, capaz de nos oferecer parte do trabalho real. Para isso, é necessário um espaço (coletivo), já que a pesquisa em Psicopatologia do Trabalho é um tempo de elaboração do vivenciado, a fim de estabelecer condutas visando à transformação por meio das estratégias coletivas.

Percebe-se, nessa fase, que trabalhar apenas com entrevistas individuais como método, seria privilegiar apenas a dimensão individual ligada ao passado e à história particular do próprio sujeito, o que, por sua vez, oferece baixa contribuição às dimensões material, social e profissional. Para ter acesso a essas dimensões e analisar a organização do trabalho, relacionando-as, começou-se a utilizar as entrevistas coletivas em um local comum aos

trabalhadores, vinculado ao seu trabalho. Entende-se que os trabalhadores em grupos são capazes de reconstruir a lógica das pressões que os fazem sofrer e que possibilitam, desse modo, formas de lidar com as estratégias defensivas.

O modelo causalista vai aos poucos sendo trocado pelo modelo dinâmico, privilegiando as estratégias defensivas. A confirmação se dá quando, na análise dos dados, fica evidente o descompasso na descrição do trabalho feita pelos diretores (eficiência, prescrição) e pelos trabalhadores (parte do real). Isso fez com que a metodologia contribuísse, cada vez mais, para a compreensão da realidade do trabalho (DEJOURS; ADDOUCHELI; JAYET, 1993).

Dejours (1992a) descreve os passos de sua proposta, apontando oito etapas:

1ª Etapa – Pesquisa inicial: fase de análise da demanda (demanda advinda do próprio grupo) e preparação da pesquisa (definição daqueles que participarão como pesquisadores e participantes, visitas ao local de trabalho com os diretores e funcionários para entender a organização do trabalho por diferentes prismas).

2ª Etapa – Pesquisa propriamente dita: realizada no espaço de trabalho. Constitui-se na apresentação dos pesquisadores e do tema da pesquisa (estudar quais relações podem se estabelecer entre a organização do trabalho e o sofrimento psíquico). Aqui, também é apontada a importância da fala do trabalhador no processo coletivo. Substituições ocasionais de participantes podem ser feitas sem alterar o andamento da pesquisa.

3ª Etapa – A solicitação, o grupo homogêneo e o coletivo: quem deve formular a solicitação da pesquisa é o grupo interessado. Esta é a fase em que o pesquisador analisará se o que foi pedido é aceitável e possível de ser trabalhado. Se isso for aceito, há a explicação dos riscos e responsabilidades de cada um e do coletivo, bem como a elucidação da forma de remuneração do pesquisador.

4ª Etapa – O material de pesquisa: parte mais complexa de ser formulada. Corresponde ao resultado do que foi discutido pelo coletivo e não visa diretamente à exposição da realidade, mas à vivência subjetiva dos trabalhadores (obtida por meio da fala).

5ª Etapa – Observação clínica: material fundamental para discussões. Não corresponde à descrição dos fatos observados. Como a observação por si só já é subjetiva, o foco está na interpretação do pesquisador sobre aquilo que observou. O pesquisador ilustrará e articulará a fala dos trabalhadores, contribuindo para o desenvolvimento e encadeamento do processo. A redação das observações é feita após cada encontro, a partir da memória do pesquisador.

6ª Etapa – Método de interpretação: não há como objetivar sofrimento e prazer; tais dados já são subjetivos e passam, ainda, pela subjetividade do pesquisador. Por isso, sempre

existirá uma lacuna entre a palavra do trabalhador e a experiência do pesquisador. Daí a necessidade de esse pesquisador ter posição diferente entre as pessoas que participam da pesquisa. Isso pode aumentar as possibilidades de os demais participantes falarem sobre a temática e sobre si.

7ª Etapa – Validação e refutação: a validação da pesquisa pode se dar em dois momentos. Um, durante a própria pesquisa, quando as interpretações, as hipóteses e os comentários do pesquisador oferecem continuidade à pesquisa ou não são aceitas e, a partir daí, reformuladas. O outro momento se dá ao final do processo, quando uma reunião específica é realizada (devolutiva) para apresentação da síntese dos resultados sobre a relação entre a organização do trabalho e o sofrimento, para apreciação crítica dos trabalhadores. Já a refutação corresponde à preocupação com caráter metodológico do processo e à preocupação com o rigor científico. Na época, isso fica claro nas preocupações do próprio Dejours.

8ª Etapa – Metodologia e teoria em Psicopatologia do Trabalho: estão baseadas na concepção de homem e na subjetividade da Psicanálise. Tem, ainda, a palavra como mediadora privilegiada da relação homem/trabalho. A ação já começa na atividade de pensar.

Ponderamos que nessas etapas é notável a aproximação com a proposta de pesquisa qualitativa, bem como a influência da Psicanálise, a ruptura com os modelos behavioristas e os estudos de estresse, de caráter experimental, predominantes na época. Desse modo, foi possível entender a “normalidade” como um produto da dinâmica humana e das relações intersubjetivas.

Consequentemente, os trabalhos de elaboração metodológica foram gradativamente aperfeiçoados e, em 1988, Dejours publica a obra que retrata, enfim, a aceitação da Psicopatologia do Trabalho nos meios científicos. A obra é denominada de Plaisir et

souffrance dans le travail – Seminaire Interdisciplinaire de Psychopathologie du Travail.

Esse trabalho não teve tradução em um livro específico no Brasil. As ideias e partes do que nele é discutido foram incorporadas a edições brasileiras mais recentes de A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho (DEJOURS, 1992a) e Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho (LANCMAN; SZNELWAR, 2008).

Na década de 1990, ganham destaque as ideias de Dejours sobre as pressões do trabalho que, por si só, são incapazes de fazer emergir psicopatologias, uma vez que o indivíduo é capaz de compreender, reagir e se defender da situação a ele imposta. Esse sujeito é único e constrói suas defesas em função de seu passado, suas vivências, sua história e sua personalidade. Essa “nova” ideia de considerar a análise do sofrimento psíquico, resultando

do confronto dos homens com a organização do trabalho, ou seja, análise dos processos intra e intersubjetivos mobilizados pela situação de trabalho, fez com que Dejours efetivamente mudasse o foco da Psicopatologia para a “normalidade”. O que levou o autor, em 1992, a propor a nova denominação: Psicodinâmica do Trabalho. Tais questões assinalam o início da terceira fase.

Existem duas obras marcantes nessa terceira fase. Em 1993, é publicado o livro De la Psychopathologie à la psychodinamique du travail, traduzido no Brasil em 2004, intitulado Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho e, em 1995, o livro de Dejours Le facteur humain, traduzido no Brasil, em 1999, com o título O fator humano.

Foi com o livro De la Psychopathologie à la psychodinamique du travail, de 1993, que se procurou superar a distância existente entre Psicopatologia do Trabalho e Psicodinâmica do Trabalho. Ele ainda auxilia na elucidação de alguns pontos epistemológicos da teoria e método. No Brasil, essa obra foi traduzida em 2004 e traz um importante texto do próprio Dejours, denominado Addendum, que caminha no sentido da passagem de uma denominação para outra. Esse texto foi originalmente publicado na França como Addendum 1993, para edições do livro Travail: usure mentale, e no Brasil foi incorporado apenas posteriormente na obra Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho.

Apesar do rompimento com a Medicina, a Psiquiatria, a Psicologia do Trabalho tradicional e com o modelo biológico característico dessas disciplinas, a fim de se afirmar como disciplina autônoma, produtora de conhecimento que se dá na práxis, a Psicodinâmica do Trabalho sempre se serviu e reconheceu esses estudos em sua história, utilizando-os de maneira crítica e reflexiva para auxiliar no entendimento do trabalho real.

Quando Dejours propõe a extensão da disciplina ao adotar a nova denominação, incorpora novos conceitos e oferece-lhe novo ânimo, uma vez que passa a creditar a existência de prazer no trabalho. O psíquico pode ser incorporado ao trabalho da mesma forma que o físico e o cognitivo (LANCMAN; SZNELWAR, 2008). O trabalho deixa de ser apenas um gerador de problemas e sofrimento e passa a ser entendido, também, como possibilidades de o homem obter prazer, um constituinte do homem. Nessa perspectiva, o sofrimento assume papel de destaque na teoria. Ele surge quando há um impeditivo na relação da organização do trabalho e do desejo do trabalhador, configurando-se, ao mesmo tempo, como articulador entre saúde e doença.

Lancman e Sznewar (2008) relatam, segundo Dejours, que existem duas dimensões que estão em constante enfrentamento: a sincrônica (herdada da história singular do sujeito) e a diacrônica (que surge no reencontro do sujeito com as relações de trabalho). Nesse

reencontro, o sujeito pode desenvolver tanto o sofrimento criativo como o sofrimento patogênico.

Notamos, a partir do exposto, que Dejours considera e adapta conceitos originários da Psicanálise para entender a relação dialética entre sofrimento e prazer na construção do sujeito. A personalidade do sujeito se desenvolve em etapas e está enraizada na infância, quando é marcada pela relação com os pais. Assim, “[...] os obstáculos com os quais se choca o desenvolvimento psicoafetivo da criança ocuparão posteriormente um lugar central na relação psíquica do adulto com o trabalho” (LANCMAN; SZNELWAR, 2008, p. 155).

Para essa disciplina que começa a se estruturar entre o sujeito e a organização do trabalho existe um espaço entre o “trabalho prescrito” e o “trabalho real”, que deve possibilitar o modo operatório e a “inteligência prática” de cada um, a fim de adaptar a organização às suas necessidades e desejos. Entende-se o trabalho não apenas como simples prescrição de tarefas, mas também como um operador privilegiado do sujeito na confrontação com o real (DEJOURS, 2001).

Quando esse espaço entre prescrito e real é bloqueado, inicia-se o domínio do sofrimento. Historicamente, é possível estudar esse movimento por meio de duas frentes: o primeiro – e mais antigo – é o do sofrimento advindo da relação entre psiquismo e organização do trabalho (marcado pela análise das estratégias defensivas). O segundo refere- se ao desdobramento do sofrimento em direção à saúde (marcado pelo foco nas instâncias e construções coletivas, para se chegar ao sentido do trabalho e aos processos de subjetivação).

Por subjetivação entende-se o processo de atribuição de sentido construído com base na relação do trabalhador com sua realidade de trabalho, expresso em modos de pensar e agir individuais ou coletivos (MENDES, 2007). O processo de subjetivação é instituído socialmente, e contempla diversas dimensões da experiência humana, entre elas a singular, universal e particular. Assim, invariavelmente a subjetividade é intersubjetividade, já que é construída na relação com o outro, na cultura (VIEIRA; MENDES; MERLO, 2013).

Esses mesmos processos podem ser explorados em função do padrão produtivista, ou seja, o que é explorado não é o sofrimento, mas os processos de mediação contra o sofrimento. O acesso a isso se dá pela fala, pela enunciação e pela escuta do sofrimento, que deve ser compreendido, interpretado, elaborado e analisado num espaço público de discussão, em que serão reconstruídos os processos de subjetivação.

Mendes (2007) relata que isso é possível por meio da “mobilização subjetiva”, processo pelo qual o trabalhador se engaja em uma atividade e lança mão de sua subjetividade, de sua “inteligência prática” e do coletivo de trabalho para transformar as

situações causadoras de sofrimento, o que, por sua vez, viabilizará o reconhecimento (retribuição simbólica desse investimento). Complementando, Mendes e Morrone (2012) expõem que a mobilização simbólica é o processo caracterizado pelo uso dos recursos psicológicos do trabalhador e do espaço público.

Tem-se, nessa terceira fase, a preocupação com a análise do papel do trabalho na construção da identidade e a importância do reconhecimento. Com esses quesitos, o trabalho transgride o prescrito, fazendo uso da “inteligência prática”; portanto, ele é, por definição, humano, exigindo iniciativa, criatividade e inteligência. Dejours, Abdoucheli e Jayet (1993) elucidam que o trabalho se configura como uma atividade manifesta pelos homens para realizar o que ainda não está prescrito pela organização do trabalho. Seria aquilo que dá vida ao proposto.

Essa “inteligência prática” envolve articulações entre requisitos sociais, físicos e cognitivos e requer, ainda, “[...] condições particulares de concordância entre o teatro do trabalho e o teatro interno das fantasias e da história singular” (DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYET, 1993).

Na infância, quando estão estabelecendo sua personalidade, as crianças põem em cena seus desejos na relação com os pais e usam o sofrimento como enredo, o que recebe o nome de “jogo” (LANCMAN; SZNELWAR, 2008). Nesse jogo é estabelecido um teatro, uma cena,

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