• Nenhum resultado encontrado

Psicologia do Testemunho: introdução à prova testemunhal – prova por

por reconhecimento (ocular e auricular)

Segundo Wells & Loftus (2003), um processo criminal é uma tentativa de reconstrução de um evento passado, com base nas evidências disponíveis. Portanto, uma vítima e/ ou testemunha de um crime pode ser considerada uma evidência e usada como prova em tribunal (Odinot & Wolters, 2006; Sauer, Brewer, Zweek, & Weber, 2010).

De uma forma genérica, as informações facultadas pelas testemunhas passam por dados gerais, tais como a roupa do ofensor, a cor e marca do carro, a descrição de objetos e do local, ou até de possíveis diálogos (Wells & Olson, 2003). Por serem uma fonte de informação, as testemunhas são fundamentais na ausência de outras evidências físicas incriminatórias (Deffenbacher et al., 2008) e, muitas vezes, representam o único meio disponível para identificar o autor do crime e sujeitá-lo a uma pena legal (e.g., Deffenbacher et al., 2008; Kebbell & Milne, 1998; Wells & Olson, 2003). No entanto, não significa que a informação de que disponham possa ser realmente útil ou estar correta.

A testemunha, na qualidade de vítima ou observadora do acontecimento, é chamada a relatar o crime que presenciou. Com o intuito de proceder a uma identificação do ofensor e depor acerca do acontecimento, a testemunha é convocada em várias fases do processo. A primeira fase pode decorrer no local do crime ou na esquadra, perante os agentes policiais. Aqui, a testemunha é solicitada a descrever o ocorrido, o suposto autor e, em alguns casos, pode analisar algumas fotografias de suspeitos. Numa fase subsequente, a testemunha pode ter que fazer a prova por reconhecimento, através de um alinhamento policial, a partir do qual terá que identificar (ou não) o suspeito dentre um conjunto de indivíduos (Brewer & Wells, 2006; Brewer & Wells, 2011). Se a testemunha realizar uma identificação, esta decisão irá certamente dirigir a IC e, em último caso, influenciar a opinião dos jurados e/ ou do juiz. A composição do alinhamento deverá tem em conta as características descritas pela testemunha na primeira abordagem feita pelas autoridades policiais, de forma que os elementos do alinhamento partilhem essas características (e.g., Darling, Valentine, & Memon, 2008; Fitzgerald, Price, Oriet, & Charman, 2013; Tunnicliff, & Clark, 2000). Posteriormente, a testemunha pode ser chamada no decorrer do julgamento, onde o juiz pode avaliar a precisão das informações relatadas por ela e determinar se o contexto do crime lhe permitiu reter ou não a identificação do ofensor. A credibilidade da testemunha estará a ser avaliada e determinará a sentença do ofensor.

28

Apesar de as testemunhas oculares deterem um papel de relevo no contexto judicial, também existem casos em que as testemunhas auriculares desempenharam um papel determinante na resolução de crimes. Embora na grande maioria dos casos, a vítima tenha visto o ofensor, noutros isso não aconteceu, e a voz ou outra informação auditiva pode ser uma pista importante. Considera-se uma testemunha auricular aquela que ouviu o ofensor, mas não o viu por diferentes razões (e.g., condições de obscuridade, ofensores mascarados, telefonemas obscenos, pedidos de resgate). Contudo, a precisão destas testemunhas também é questionável (e.g., Sherrin, 2015; Mullenix et al., 2011; Broeders & Van Amelsvoort, 1999).

A experiência das pessoas em reconhecerem vozes familiares (e.g., família, amigos, políticos) criou a ideia de que o reconhecimento através da voz é muito preciso e claro (Hammersley & Read, 1996). Contudo, vários estudos têm mostrado resultados contraditórios em relação ao reconhecimento de vozes familiares, revelando que nem sempre se é capaz de identificar vozes de pessoas da própria família (McClelland, 2008).

A validade de uma testemunha auricular no sistema judicial é ainda limitada (Solan & Tiersma, 2003), embora a identificação por voz seja tratada como uma prova direta de identificação na atualidade (Stern, Mullennix, Corneille, & Huart, 2007), e um pouco por todo o mundo (Hollien, 2012). Ainda assim, a memória de vozes, comparada com a memória visual, é uma área de investigação negligenciada (e.g., Wilding, Cook, & Davis, 2000; Cook & Wilding, 1997). O facto de a precisão das testemunhas auriculares ser discutível incide-se na falta de metodologia específica. Alguns autores apontam que a identificação de vozes não deve ser um espelho da identificação ocular e que, por essa razão, é necessário investir e explorar procedimentos diferentes (Hollien, 2002; Hollien, Bennett, & Gelfer, 1983).

Independentemente de poder tratar-se de uma testemunha ocular ou auricular, ao longo de todo o processo judicial, a fiabilidade da testemunha é colocada em causa. Isto acontece porque, à semelhança das provas físicas, o traço mnésico também pode ser contaminado, perdido, destruído ou produzir resultados que podem levar a uma reconstrução incorreta ou imprecisa dos factos (Wells & Loftus, 2003), culminando numa identificação errada. Deste modo, a fiabilidade do testemunho pode ser afetada por dois tipos de variáveis, que serão abordadas numa secção adiante: variáveis de sistema, que são aquelas que podem ser controladas pelo sistema judicial, e variáveis estimadoras, que

29 dizem respeito às variáveis que estão fora do controlo do sistema judicial e que só podem ser estimadas (e.g., Ahola, 2012; Brewer & Wells, 2006; Cutler, Penrod, & Martens, 1987; Deffenbacher et al., 2008; Wells, 1978; Wells & Loftus, 2003).

No CPPP, no artigo 147º, é reconhecida a prova por reconhecimento, como meio de prova. Apesar da sua vasta aplicação, apresenta elevadas taxas de erro (cerca de 75%) (Busey & Loftus, 2007; The Innocence Project, 2014). Estes erros, designados de falsos positivos, acontecem quando a testemunha identifica um suspeito que não é, na realidade, o ofensor do crime que presenciou (Wells & Olson, 2003) e devem-se à qualidade da memória dos eventos, particularmente na fase da recuperação da informação (e.g., Kneller, Memon, & Stevenage, 2001). Há estudos que têm apontado variáveis como o stresse, o nível de violência ou a presença de armas, como sendo responsáveis pela diminuição da fidelidade das testemunhas oculares e pelos erros na identificação (Berhman & Davey, 2001; Christianson, 1992a; Steblay, 1992).

Por outro lado, a memória de uma testemunha divide-se na memória para detalhes centrais (e.g., ofensor) e na memória para os detalhes periféricos (e.g., contextuais). Para testar ambas, deve-se ter em conta que se trata de processos cognitivos diferenciados, isto é, a identificação do ofensor é um teste de reconhecimento que requer que a testemunha escolha uma entre várias opções, enquanto a memória para os detalhes periféricos pode ser uma tarefa de recordação ou de reconhecimento. Esta diferenciação mnésica pode dever-se às diferenças de armazenamento da informação (e.g., Loftus, 1971).

Os tipos de informação que as testemunhas podem facultar podem ser caracterizados em domínios específicos de estudo (Figura 4). Como já vimos, uma parte importante da IC é reunir toda a informação possível sobre o crime. Para tal, devem ser consideradas as informações no momento da codificação, da recordação e do reconhecimento.

Recordação Reconhecimento

Testemunhas oculares

Recordação do evento Descrição da face Alinhamento de faces (reconhecimento de faces)

Testemunhas auriculares

Recordação do conteúdo

Descrição da voz Alinhamento de vozes (reconhecimento de vozes)

30

Importa salientar que, em todas as fases em que a vítima e/ ou testemunha é ouvida, é crucial atentar à forma como irão ser colocadas as questões ou que tipo de entrevista ou abordagem utilizar, de forma a evitar enviesamentos e interferências que, como veremos de seguida, podem comprometer não só a identificação do ofensor como todo o processo subsequente.

Documentos relacionados