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Como explicitado, o projeto epistemológico moderno implicou na separação mente (razão, unicidade, clareza, coerência interna) e corpo (incompletude, obscuridade, finitude), o que gerou, no âmbito do conhecimento, um abismo entre sujeito e objeto. No plano social, este projeto epistemológico constituiu uma organização das relações entre sujeitos mediada pela concepção de autonomia, na qual cada indivíduo passa a ser responsável por si mesmo. Esta forma - ou ideal - de organização social que foi explicitada pela revolução francesa: o lema "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" exprime a idéia de uma sociedade organizada por indivíduos iguais em sua autonomia, e portanto livres para organizar a própria vida, e a crença de que, sendo os homens fraternos, esta organização regularia, harmônica e espontaneamente, a sociedade. Porém, em diversos aspectos – econômico, social, subjetivo, entre outros – não

foram garantidas ao sujeito as possibilidades de uma “existência apaziguada” (BISWANGER, 1976): as relações sociais foram se revelando menos fraternas do que o lema da revolução francesa havia idealizado. Isto levou ao questionamento da superioridade, liberdade, unicidade humanas – ou seja, o questionamento tanto do sujeito epistêmico quanto da experiência subjetiva privatizada, em seu caráter de singularidade. É o contexto destas vicissitudes do projeto epistemológico moderno que implicou, a partir do século XIX, no surgimento da Psicologia como ciência. Os projetos de Psicologia que começam a emergir no século XIX guardam estreita relação com os aspectos do sujeito expurgados pelo método, seja para seu controle e “cura”, seja para uma expressão e desvelamento da cisão, uma sua genealogia.

Neste sentido, podemos compreender os diversos sistemas teórico–práticos que constituem o campo atual das psicologias através de sua relação com esta cisão: de um lado, psicologias que terão a perspectiva de, resguardando a cisão provocada pelo método e afirmando a racionalidade do sujeito, procurar “limpar” o expurgado quando este se apresente e se revela por entre o conjunto coerente da representação; de outro, psicologias que buscarão um desvelamento desta cisão, resgatando não apenas o expurgado, mas procurando compreender a condição dividida do sujeito, realizando assim uma crítica ao método.

Pode-se compreender esta questão através da análise do nascimento e desenvolvimento dos diversos projetos de psicologia a partir do século XIX. Se Wundt, ao fundar o primeiro laboratório de psicologia, colocará o homem em uma posição intermediária entre natureza e cultura, muitos de seus seguidores realizarão projetos de psicologia com uma concepção de homem como organismo, exclusivamente biológica. Permeando esta concepção, está a possibilidade de um estudo do homem através do método, de uma consideração exclusiva do observável e previsível. Neste sentido, não apenas a concepção de sujeito é a de um sujeito previsível e claro, mas também a concepção de um conhecimento legítimo relaciona-se a

busca de universalização e objetividade. Assim, o projeto de psicologia de Titchener e a Psicologia Funcional buscarão uma compreensão completa do humano. A hipérbole desta concepção pode ser encontrada no romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley história de uma sociedade que se pretende completamente clara, onde, desde a forma de concepção dos indivíduos, inteiramente organizada pela engenharia genética, passando por seu condicionamento desde a primeira infância, levam à sua posição rígida na organização social. Até a morte tem data marcada para ocorrer, e o tempo não deixa marcas: técnicas que deixam o corpo jovem até os 60 anos, e a morte obrigatória depois, eliminam a possibilidade de qualquer vestígio de impureza.

Por outro lado, o desenvolvimento da Psicanálise, do desenvolvimento cognitivo de Piaget, da Psicologia da Gestalt, se desenvolverão como projetos de Psicologia que buscarão uma compreensão do homem para além do representado, observado e previsível. Além disso, partirão de uma concepção de conhecimento legítimo a ser buscado de forma contextualizada.

Deste modo, a concepção da possibilidade de uma investigação no âmbito da clínica, do individual, engendrada por Freud, e que se tornou um dos pilares das diversas teorias e práticas psicanalíticas, é permeada pelas noções de que é possível a constituição de um conhecimento legítimo pela investigação de uma subjetividade particular e de que este conhecimento caminha em uma dada perspectiva, em uma dada interpretação. Da mesma forma, as teorias psicanalíticas apresentam um homem incompleto: a própria acepção da dualidade consciente/inconsciente conduz a uma compreensão de que o homem não é totalmente claro a si mesmo. É neste contexto que a possibilidade de uma investigação clínica faz sentido: se há coisas no homem que não são percebidas por ele próprio, se o homem é singular e plural ao mesmo tempo, compreender esta inter-relação implica em um inclinar-se ao humano, a cada subjetividade. Nesta diretriz, está implícita a impossibilidade de uma

apreensão completa do humano, assim como é inapreensível o inconsciente. Por outro lado, isto não significa uma falta e rigor: o detalhamento dos relatos clínicos de Freud, por exemplo, ilustra esta questão. Um outro aspecto a ser apreciado é a consideração de uma inter-relação entre sujeito e objeto, de que o investigador da realidade subjetiva influenciará a realidade a qual investiga. Freud (1969, apud. PRISZKULNIK, 1995) explicita este aspecto ao afirmar que “... pesquisa e tratamento coincidem” (p.143).

A concepção, por exemplo, da Psicologia da Gestalt, de que o percebido é também dependente do percebedor, não havendo uma relação linear, contesta tanto a separação sujeito objeto quanto a generalização, a conceitualização universal, concebidas pela tradição metafísica.

Nesta concepção, a posição histórica destas psicologias é exatamente a de uma crítica ao positivismo científico e sua epistemologia. Apesar disso, muitas de suas idéias continuam a permear as questões relativas à produção de conhecimento no que se refere à sua legitimação bem como sua pesquisa, embora recusando o rigor metodológico positivista, prendia consigo um reconhecimento epistemológico calcado nesta tradição. Nas palavras de FIGUEIREDO (1995a)

No miolo deste mal-entendido, o que se passa em torno da psicanálise é paradigmático. (...) Nenhum sistema teórico foi mais longe que a psicanálise no descrédito do autodomínio, no descentramento e na dissolução da unidade do sujeito(...). Não obstante, desde Freud até os dias de hoje, uma preocupação da psicanálise tem sido a de ser reconhecida como ciência diante de algum tribunal epistemológico. (p.21)

Pode-se compreender que um dos aspectos a ser considerado relativamente a este fenômeno é o de que o surgimento da ciência e da psicologia é, de certa forma, o surgimento de instituições, havendo, assim, também uma certa institucionalização das concepções, engendrada pelo método e pela conceitualização matematizável: o método e o conceito são, no projeto epistemológico moderno, a um só tempo formas de construção de leituras, ou percepções da realidade e formas de institucionalização, de engessamento, dessas leituras e percepções. Dessa forma, as possibilidades de compreensão da realidade, expressas através de teorias, experiências, etc., tendem a transformar-se em modelos técnicos ou, mais que isso, em verdades que reduzem a possibilidade de vislumbrar novos aspectos. Se este é um movimento possível, presente nas e próprio das formas de conhecer modernas, assim como o são as inúmeras tentativas de ao mesmo tempo, criticar e refletir sobre as vicissitudes destes movimentos e criar novas vias de construção de percepções, estes dois fenômenos – construção/engessamento e crítica/criação – se expressarão também na transmissão das percepções e compreensões da realidade, bem como nos meios considerados legítimos para perceber, compreender e comunicar. Dessa forma, considerando investigação e transmissão como momentos diferentes na elaboração do conhecimento, este movimento presente nas ciências estará também presente nas práticas educativas, como veremos a seguir.