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4 PSICOSE E SUJEITO

No documento EXISTE SUJEITO NA PSICOSE? (páginas 34-47)

Embora já estivessem presentes no corpo teórico da psicanálise os delineamentos primeiros para a compreensão das psicoses, na época, chamada por Freud de paranóia, o primeiro grande texto sobre o assunto é seu estudo “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia”, no qual empreende uma análise do livro escrito por um paranóico, Daniel Paul Schreber, intitulado “Memórias de um Doente dos Nervos” (CORIAT & PISANI, 2001, p. 44).

A questão da “loucura” e da paranóia no campo da psiquiatria clássica sofreu várias transformações de nomenclatura e uma definição mais clara das diversas formas com que esta poderia se manifestar ainda não havia sido feita (LOPES, 2001; CORIAT & PISANI, 2001). “Foi somente no início do século XX que Kraepelin introduziu um pouco de clareza na definição da paranóia” (CORIAT & PISANI, 2001, p. 44).

Lacan cita as palavras de Kraepelin:

‘A paranóia se distingue dos outros porque ela se caracteriza pelo desenvolvimento insidioso de causas internas, e, segundo uma evolução contínua, de um sistema delirante, durável e impossível, de ser abalado, e que se instala com uma conservação completa da clareza e da ordem no pensamento, no querer e na ação’ (KRAEPELIN apud LACAN, 1985, p. 26).

Freud, ao lançar-se em 1909 ao estudo do livro escrito por Schreber, o faz de forma diferente da tradição psiquiátrica. E temos nova ruptura com a tradição - além da subversão que o sujeito freudiano, Sujeito do desejo causou na tradição filosófica de um sujeito pensante e autoconsciente, como anteriormente apontado. Freud propõe nova abordagem dos fenômenos paranóicos. “Ele demonstrou que o desejo era legível (...) desde que se dispusesse da chave certa, do código para decifrá-lo” e “propôs a idéia de uma coerência específica a ser encontrada no delírio” (CORIAT & PISANI, 2001, p. 44 e 52).

No texto supracitado, Freud (1996 [1911], p. 78) ainda nos diz que “a formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma

tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”, imprimindo outra diferenciação da abordagem psiquiátrica clássica.

Freud assinala alguns mecanismos que entram em jogo na paranóia, dentre eles destacam-se a projeção, o recalcamento e o narcisismo.

Coriat & Pisani (2001, p. 58) dizem que Freud construiu uma teoria que misturava esses dois elementos (recalcamento e narcisismo), uma vez que sua teoria do recalcamento não se aplicava facilmente à paranóia.

De acordo com Freud (1996 [1914], p. 82), no artigo Sobre o Narcisismo: uma introdução, um neurótico obsessivo ou histérico, “enquanto sua doença persiste, também desiste de sua relação com a realidade. Mas a análise demonstra que ele de modo algum corta suas relações eróticas com as pessoas e as coisas”.

O que acontece no caso do paranóico é bastante diferente, pois ele

“parece realmente ter retirado sua libido de pessoas e coisas do mundo externo, sem substituí-las por outras na fantasia. Quando realmente as substitui, o processo parece ser secundário e constituir parte de uma tentativa de recuperação destinada a conduzir a libido de volta a objetos” (idem).

Freud (idem) ainda nos diz que a “libido afastada do mundo externo é dirigida para o ego e assim dá margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo”.

Coriat & Pisani (2001, p. 58) afirmam que a característica da paranóia seria o retorno dessa libido para o eu, não a retirada desta do mundo externo. Sintetizando estas idéias, temos:

“Na paranóia, o recalcamento consistiria num desligamento da libido, parcial ou geral. A libido anteriormente ligada a objetos externos volta-se para o eu. Esse processo (...) seria a etapa do recalcamento propriamente dito, enquanto o delírio seria a expressão de um retorno do recalcado, reconduzindo a libido aos objetos que ela havia abandonado”.

Sobre a projeção, Freud considera que este é o mecanismo que forma a paranóia (ibdem, p. 57). Citamos suas palavras:

“A característica mais notável da formação de sintomas na paranóia é o processo que merece o nome de projeção. Uma percepção

interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa. Nos delírios de perseguição, a deformação consiste numa transformação do afeto; o que deveria ter sido sentido internamente como amor é percebido externamente como ódio” (FREUD, 1996 [1911], p. 73).

Num segundo momento, apontou que estes “mecanismos projetivos encontram-se em todas as configurações, patológicas ou não, ainda que percebamos na paranóia um caráter particularmente cego de imputação ao outro” (CORIAT & PISANI, 2001, p. 58). E indicou também uma diferença entre neurose e psicose:

“Na neurose, um fragmento da realidade é evitado por uma espécie de fuga, ao passo que na psicose, a fuga inicial é sucedida por uma fase ativa de remodelamento;(...) a neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la” (FREUD, 1996 [1924], p. 207).

Freud (1996 [1911], p. 78) ainda aponta, no mesmo texto, que “foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora”.

Anos depois, Lacan retoma esta afirmação atualizando-a em seus próprios termos: “sucede (...) que tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da

Verwerfung, reaparece no real” (LACAN, 1985, p. 21) [grifo nosso].

Conforme abordamos as demais estruturas, passemos, portanto, à compreensão da estrutura psicótica, já partindo das colaborações de Lacan à teoria, que com suas teorizações acerca dos campos Real, Simbólico e Imaginário, possuía instrumentos mais sofisticados para o desenvolvimento e prosseguimento da teoria freudiana de modo geral e especificamente um caminho de melhorar suas concepções sobre a psicose e seu possível tratamento.

Calligaris (1989, p. 9) afirma que a clínica psiquiátrica clássica “é uma clínica em que, se não há fenômenos psicóticos, se não aparecem fenômenos elementares da psicose, não há psicose”.

Como tratado no capítulo anterior, a abordagem psicanalítica atual não se atém unicamente ao sintoma, à doença ou à questão da etiologia. Atualmente,

podemos dizer que “a psicanálise é uma clínica estrutural num sentido forte, na medida em que o diagnóstico é diretamente na estrutura mesma do sujeito” (ibdem, p. 31).

Exatamente por ser uma clínica estrutural e não fenomenológica que a psicanálise pode dizer de uma psicose – ou estrutura psicótica – fora do delírio.

É após a vivência do Édipo que ocorre “a definição da estrutura psíquica e conseqüentemente o modo como o sujeito irá operacionalizar a castração, o desejo e o seu papel sexual” (TORRES, 2004, p. 173 – 174). Assim, a constituição destas estruturas começa no drama do Complexo de Édipo.

A criança é chamada pela mãe a ocupar o lugar do falo, como um substituto. É por essa via que a criança se inscreve no desejo materno. No primeiro momento do Édipo, “o Outro materno encarna a lei. (...) não é que haja uma lei e a mãe seja sua representante. [Ela] É a própria lei. Assim como o filho é o falo, ela é a lei” (BLEICHMAR apud SOARES, 2007, p. 23 – 24).

No segundo momento edípico, temos o início da separação da díade mãe- filho, propiciada pela terceira figura, o pai que interdita. Nas palavras de Soares (2007, p. 25), notamos que

“no segundo tempo lógico do Édipo, o pai (...) que pronuncia a interdição ainda não é o pai simbólico. (...) Ele dita a lei (...) mas não a representa. Para ser simbólica, a lei pode ser evocada, representada por alguém, mas não pode ser encarnada. A castração remete justamente a essa separação, ao deslocamento de um personagem com a lei”.

A castração de que se trata em psicanálise é a castração simbólica que acontece no terceiro tempo do Édipo e é “quando, para a criança, há perda da identificação com o falo, e que este passa a ser uma entidade independente de um personagem (ibdem, p. 26). Ou seja, a criança já havia perdido a própria identificação com o falo, havia deixado de ser o falo e agora ninguém mais se identifica com ele, nem o próprio pai.

Neste terceiro tempo, a Lei simbólica é evocada, torna-se significante e “é no nome do pai que se deve reconhecer o suporte da função simbólica” (LACAN, 1998, p. 279).

Tomemos uma rápida síntese sobre o já discutido Significante Nome-do-Pai e sua função, como prévia para tratarmos do conceito da Verwerfung ou foraclusão, partindo de Lacan.

O Pai, em psicanálise, representa uma função específica de legislador, significante que simboliza a lei para a criança, promovendo a triangulação junto ao segundo elemento da relação (a mãe) e propiciando o fim da simbiose.

Ao trazer a interdição do livre acesso da criança à mãe (e vice-versa), o Pai simbólico, substitui o significante fálico (desejo da mãe) pelo significante estruturante Nome-do-Pai.

Soares assegura que a entrada em jogo deste significante (Nome-do-Pai) sinaliza “a entrada do sujeito na ordem simbólica permitindo a inauguração da cadeia significante no inconsciente. Entretanto, na psicose, o terceiro não entra. O significante fundamental para a instauração da ordem simbólica está foracluído” (SOARES, 2007, p. 26) [grifo meu].

A partir de Lacan, observamos a ordem simbólica e seu caráter crucial na etiopatogenia da psicose (DOR, 1991b, p. 103). Lacan (1998, p. 582) nos diz que

“é num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose” [grifo meu].

A análise do livro de Schreber lançou importantes instrumentos para a compreensão da paranóia, mas, “é em ‘O Homem dos Lobos’ que Freud introduz genialmente a noção de Verwerfung” (CHECCHINATO, 1988, p. 21) que será um conceito crucial para as contribuições lacanianas para a compreensão da psicose.

Na obra que compreende o caso “O Homem dos Lobos”, História de uma neurose infantil, Freud (1996 [1918], p. 88) escreve que “uma repressão é algo muito diferente de uma rejeição”. Checchinato cita esta afirmação usando outra tradução e a inovação presente nos termos lacanianos: “uma foraclusão [Verwerfung, rejeição] é algo diferente do que um recalque” (FREUD apud CHECCHINATO, 1988, p. 21) [grifo meu].

“A Verwerfung será tida por nós, (...) como foraclusão” (LACAN, 1998, p. 565). O termo foraclusão se inscreve como efeito de tradução da palavra alemã

Verwerfung (utilizada por Freud), mas também como prolongamento lógico do termo freudiano (DOR, 1991b, p. 93), ou seja, trazendo novas concepções.

Foraclusão ou Forclusão vem do francês forclusion, um termo jurídico que equivale à prescrição (SOARES, 2007, p. 25), ou como aponta Dor (1991b, p. 102), refere-se à

“abolição simbólica de um direito que não foi exercido no prazo prescrito (...) é principalmente essa idéia de uma anulação simbólica que Lacan subscreve, ao utilizar o conceito de foraclusão. Trata-se, para ele, de enfatizar a abolição de um significante”.

A foraclusão sempre se refere à Lei, ou seja, é a Lei (simbólica), o significante Nome-do-Pai que é foracluído. Foraclusão é a abolição, a prescrição do momento (lógico) no complexo de Édipo, no qual o significante Nome-do-Pai deveria ter substituído o significante fálico (desejo da mãe), libertando a criança do desejo materno, ou seja, o pai real interditor deveria ter acedido ao psiquismo da criança como Pai simbólico (DOR, 1991b, p. 102; SOARES, 2007, p. 26).

Entretanto, o Nome-do-Pai não é um significante especial, mas exatamente como todos os outros. A diferença é que ele ocupa um lugar de destaque como significante primordial. Em outras palavras, é o lugar que ele vem ocupar – lugar na substituição metafórica do significante fálico – que o torna diferenciado em relação aos outros. “(...) o significante Nome-do-Pai é um significante qualquer que virá ocupar este lugar decisivo. Neste sentido (...) os significantes Nome-do-Pai são múltiplos” (DOR, 1991b, p. 105), pois há imenso número de significantes que podem ocupar este lugar.

A foraclusão acontece quando nenhum significante vem para substituir o significante fálico. Deduz-se, então, que “ela [a foraclusão] não se dá de uma vez por todas. Ao contrário, não cessa de se reproduzir sucessivamente” (idem). Assim, a sustentação da estrutura psíquica necessita que, constantemente, um significante venha ocupar o lugar do desejo materno.

Nos Escritos, Lacan (1998, p. 389)nos diz:

“A Verwerfung, corta pela raiz qualquer manifestação da ordem simbólica, isto é, da Bejahung que Freud enuncia como o processo primário em que o juízo atributivo se enraíza, e que não é outra coisa senão a condição primordial para que, do real, alguma coisa venha se oferecer à revelação do ser”.

Soares nos explica que “a foraclusão da lei significa que não há sequer inscrição da relação com a lei. Em outras palavras, a lei não estrutura, não organiza. Assim, quando ela aparece, é em forma de arbitrariedade, de abuso do outro” (SOARES, 2007, p. 26).

Com a foraclusão do Nome-do-Pai, temos o fracasso da metáfora paterna e a não-emergência do recalque originário, isto é, a assunção da castração simbólica.

A foraclusão do Nome-do-Pai e o fracasso da metáfora paterna trazem à estrutura psicótica uma série de diferenciações em relação às outras estruturas (neuróticas e perversa). A compreensão destas diferenças se dará tendo como referência o próprio significante paterno.

Tomando por exemplo comparativo a neurose, podemos falar que, nesta, todo o saber circunda e se estrutura em torno de um ponto nodal, o significante primeiro, S¹, Nome-do-Pai. Assim, toda a rede de significantes se remete a este significante principal, é medida e considerada tendo-o como referência. Há um ponto fixo que sustenta toda a rede significante. Nas palavras de Calligaris (1989, p. 15), lemos que

“o sujeito neurótico, que resolveu confiar na função paterna, está referido a um saber e, mais geralmente, habita um mundo orientado, organizado ao redor de um pólo central ao qual se devem e se medem todas as significações. (...) uma organização na qual a referência a um centro decide do valor de cada ponto”

Na psicose, pode-se dizer que esta rede não está orientada ou organizada em relação a este Um ponto nodal. Isto significa que neste caso “não há amarragem de um ponto de ‘capiton’, tampouco haverá organização centralizada do seu saber e do seu mundo” (idem).

Sem o norteamento propiciado pelo Nome-do-Pai, os significantes na rede do psicótico circulam livremente sem possuir um ponto de amarra e sem ter um valor específico em relação a um referencial – nenhum vale mais que o outro, todos possuem o mesmo valor. “Todas as significações são significações em si mesmas” (ibdem, p. 12).

Em seu seminário dedicado à questão das psicoses, Lacan fala algo sobre trechos do livro de Schreber que representa estas “significações-em-si” claramente. Ele nos diz que a significação das palavras de Schreber “é uma significação que

basicamente só remete a ela própria, que permanece irredutível. O próprio doente sublinha que a palavra tem peso em si mesma” (LACAN, 1985, p. 43).

Temos aí um exemplo das significações que não possuem um referencial que as norteie ou em relação ao qual se situem com menor ou maior valor. Elas – cada uma delas – possuem significações próprias que não se ligam a uma rede significante, mas referem-se a si próprias.

Calligaris (1989, p. 12 – 13) nos fala ainda de que esse é um sujeito eminentemente errante, não em referência ao erro, mas à errância, uma vez que todos os significantes tenham valor em si mesmo, todos se tornam possíveis. Esta idéia de alguém vagando indeterminadamente por todas as possibilidades é bastante representativa de uma estrutura psicótica. Não há o ‘por quê não?’ e neste caso, resta percorrer todos os caminhos, uma vez que todos são possíveis e têm o mesmo valor. Não há uma razão fixa que faça com que uma possibilidade se destaque e seja mais atrativa em relação às outras.

Calligaris (ibdem, p. 23) ainda diz que:

“Um psicótico que nunca encontrasse uma crise, seria um sujeito livre, livre de filiação. Mas o problema fundamental da psicose é que infelizmente o sintoma social dominante é a neurose, e que então o psicótico encontra quase sempre a injunção a referir-se a uma instância paterna e por conseqüência uma servidão paralela à do neurótico, só que mais severas por dever servir um mestre real”.

Calligaris ainda traz outra questão: a de que o problema na psicose com os delírios é um problema de comunicação. Comunicação que deveria se articular em torno do Outro (função paterna), no simbólico, como leis da linguagem.

Como o psicótico não consegue amarrar seu discurso em algum ponto norteador do campo Simbólico, ele tenta organizá-lo ao redor de um pólo central Real. A questão é: como realizar a comunicação entre dois campos distintos, a saber, Simbólico e Real, se o Real não permite simbolização e o Simbólico pressupõe a morte da coisa real como tal?

No primeiro capítulo, vimos que o sujeito da psicanálise é o sujeito do desejo e que este é efeito engendrado de linguagem, é o encontro do simbólico com o real.

Miller apud Soares (2007, p. 25) nos diz que ‘a metáfora paterna remete (...) a uma divisão do desejo a qual impõe (...) que o objeto criança não seja tudo para o sujeito materno’. A entrada do Significante-mestre circunscreve uma relação “que

determina que o outro seja, ao mesmo tempo, igual e rival” (MEYER, 2004, p. 118) do sujeito.

Notamos ainda que

“alguns efeitos podem ser apontados em decorrência da foraclusão do Nome-do-Pai na psicose. Em primeiro lugar, a questão do sujeito psicótico como sujeito do desejo fica comprometida, uma vez que só há desejo quando há falta, e uma vez que o significante Nome-do-Pai está foracluído, não há a instalação da falta na psicose” (idem).

Assim, só há desejo a partir da substituição do significante Desejo da Mãe pela Lei Paterna. Mannoni (1999, p. 31) nos diz que “é porque o significante paterno não se opôs ao inconsciente materno que o indivíduo se acha desapossado do sentido da própria vida, e em perigo de não se sentir dono das suas pulsões”.

Arnaut apud Torres (2004, p. 174) assegura que sem a introdução no campo simbólico através da metáfora paterna, o ‘sujeito se reduziria à condição de ‘objeto’, ou seja, um corpo gozoso sem a lei do desejo, incapaz de encontrar um lugar nas trocas simbólicas, exposto à vertente do imaginário e do real impossível’, algo como uma pessoa que não é um significante para outro, apenas um objeto, que não possui desejo próprio e fica assujeitado, subordinado ao desejo materno.

Mannoni (1999, p. 30) nos alerta que o psicótico, quando criança, está fadado “a permanecer numa certa relação fantasmática com a mãe que, pela ausência nela mesma do significante paterno, deixa a criança reduzida ao estado de objeto, sem esperança alguma de aceder ao nível de sujeito”.

Entretanto, de acordo com Meyer (2004, p. 117),

“Lacan indica que a não-inscrição desse significante que ele nomeia de Nome do Pai especifica uma relação singular do psicótico com o simbólico, sendo seu acesso a esse diferenciado em relação à neurose, o que não significa, contudo, que ele esteja excluído do simbólico, uma vez que esse preexiste ao sujeito”.

Em outras palavras, existe uma relação entre o psicótico e o campo simbólico. Todavia, é uma relação muito específica, pois “a noção da foraclusão do significante primordial abre nova perspectiva, que nos leva a nova concepção do inconsciente, marcada por uma rejeição e não pelo recalque”. Recalque que protegeria o sujeito de ser tomado como objeto para o gozo do Outro e não está presente na psicose.

Sobre esta diferenciação no lidar com a linguagem, Lacan (1985, p. 237) nos diz que o psicótico “dá testemunho efetivamente de uma certa virada na relação com a linguagem”.

E, tal como Meyer (2004, p. 18) afirma, “é com base nessa relação especial do psicótico com a linguagem que podemos pensá-lo como sujeito, sujeito da linguagem, e não sujeito do discurso”.

Ainda com Meyer (2008, p. 306), notamos que “a relação do sujeito na psicose com a linguagem se dá de um modo em que ele não se insere ou não é inserido no que chamaríamos de discurso, ou seja, o sujeito está na linguagem, mas não está no discurso”.

Ser um sujeito do discurso, ou estar no discurso, significa estar numa relação dialetizável com o Outro, uma relação de troca e não de assujeitamento, como é caso do psicótico. Ao falar, o sujeito da linguagem esboça uma comunicação que não é compartilhada socialmente, o que o priva do laço social (idem).

O Outro, campo da linguagem, não reconhece o discurso do psicótico e disso deduz-se que a relação entre ambos não é mediatizada. Neste sentido, o psicótico sente a invasão do Outro em si. O desejo do Outro não será captado como vindo do Simbólico, mas como vindo de fora, do Real, desse algo impossível de lidar. Como já citado anteriormente, “o que é recusado na ordem simbólica, (...) reaparece no real” (LACAN, 1985, p. 21).

O sujeito psicótico pode ser considerado um sujeito da linguagem, pois “se apresenta neste caso, completamente exposto à ação do significante, falado e boicotado pelos fenômenos elementares” (ibdem, p. 302-303). Ora, o que os fenômenos elementares demonstram além da invasão do Outro?

Devemos também levar em consideração a diferenciação que Pequeno apud Meyer (2008, p. 304-305) faz entre estes “sujeitos”. Como a metáfora paterna não entrou em cena para instaurar a falta no psicótico, este poderia ser considerado um sujeito do gozo, pois se posiciona como objeto para o gozo do Outro absoluto e não

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