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4 O HISTORIADOR COMO MEMORIALISTA: NAÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NOS TEXTOS SOBRE SAAVEDRA

4.1. A PUBLICAÇÃO DA OBRA CORNELIO SAAVEDRA PADRE DE LA PATRIA

ARGENTINA EM 1979: O SESQUICENTENÁRIO DA MORTE DE SAAVEDRA

Se o contexto da primeira publicação da obra Cornelio Saavedra padre de la patria

argentina (1979), mencionado no primeiro capítulo deste trabalho, foi marcado, de um lado, pelas comemorações do sesquicentenário da Revolução de Maio, que tinham por objetivo reunir a população argentina em torno da rememoração de uma das mais importantes datas pátrias, e de outro, pela grande instabilidade político-econômica, no ano do sesquicentenário da morte do líder de Maio, a Argentina se vê diante de outra realidade: o Proceso de

Reorganización Nacional. Entretanto, para compreendermos o Proceso, é necessário retroceder um pouco no tempo.

Desde o período entre guerras, a Argentina vinha assistindo ao crescimento de uma corrente antiliberal, que Beired (2001) denomina de “nacionalismo de direita”, Segundo o autor, os intelectuais desta corrente “investiram-se da missão de salvar a nação contra o que julgavam ser uma vasta conspiração de forças inimigas da Argentina, cuja encarnação eram: as finanças internacionais, a democracia, o liberalismo, o bolchevismo, os partidos políticos, o movimento operário, os imigrantes, e em particular os judeus”. Livrando o país de todas estas ameaças, o caminho estaria aberto para o resgate de diversas características que estariam perdidas: “o passado glorioso, a tradição hispânica, o catolicismo, a família e valores, tais como ordem, hierarquia autoridade, disciplina e heroísmo, enfim, valores inerentes a uma concepção autoritária da identidade nacional” (BEIRED, 2001, p. 305).

Ainda segundo o mesmo autor, esta corrente foi tomando força com o passar dos anos e a instabilidade político-econômica enfrentada pelo país a partir de meados do século XX. Em 1966, com a chamada “Revolución Argentina”, as Forças Armadas depõem o presidente Arturo Illia e, em 29 de junho, assume o cargo de presidente o tenente general Juan Carlos Onganía. Já nesta época, segundo Luna (2010, p.131-132), “las claves de su acción fueron la despolitización, la verticalización y la tecnificación”. Para tanto, o governo militar atuou em

várias frentes: “(...) la ‘Revolución Argentina’ proclamó la necesidad de erradicar los brotes guerrilleros y la amenaza de la insurrección izquerdista. Los partidos políticos fueron disueltos, intervenidas las universidades y se ejerció una censura que abarcó todos los campos del quehacer público y privado”. Neste sentido, buscava-se construir na Argentina uma moral controlada pelo Estado, já que “el ideal subyacente en la nueva estructura del Estado se sintetizaba en ‘el restablecimiento de la moral’, es decir, la instauración de valores que pudieran enfrentar el peligro de la subversión marxista” (LUNA, 2010, p.131-132).

Os anos seguintes foram bastante conturbados. O regime militar perdurou até 1971, quando, ao entrar em uma grave crise, deu espaço para uma transição para a democracia que foi tutelada pelas Forças Armadas. Entretanto, embora tenham colocado em prática o chamado Gran Acuerdo Nacional, um pacto entre o exército e os partidos políticos para uma transição constitucional e, inclusive, tenham saído vitoriosos das eleições de março de 1973, os militares assistiram o regresso de Juan Domingo Perón ao país, após seu exílio e, num golpe de Estado, a convocação de novas eleições para 23 de setembro do mesmo ano, as quais o ex-presidente e sua então esposa, “Isabel” (María Estela Martínez), venceram com 61,85% dos votos.

Os grupos de extrema direita voltam ao poder com a morte de Perón em julho de 1974. Sua esposa e, até então, vice-presidente, assume a presidência e, a partir daí, alguns grupos peronistas assumiram a repressão de movimentos que se posicionavam contra as políticas do Estado, como os sindicatos e os partidos de esquerda. Muitos foram os desaparecimentos e mortes ocorridos nos dois anos de governo de Isabel.

(...) los grupos paramilitares, apoyados por las estructuras policiales, iniciaran la represión de los peronistas que se oponían a la metamorfosis del movimiento. Los activistas de derecha y la policia enfrentaron a tiros las acciones reivindicativas de los trabajadores; los locales de la tendencia y los partidos de izquierda fueron atacados con bombas; muchos militantes fueron secuestrados y asesinados. La serpiente se arrastraba cada vez más con mayor agilidad. (GONZALEZ JANSEN apud LUNA, 2010, p. 176).

As políticas iniciadas pela presidente abriram espaço para um novo golpe das Forças Armadas em 1976, que dá início ao Proceso. Neste ano, uma junta composta por Jorge Videla, representando o Exército, Emilio Massera, pela Armada, e Ramón Agosti, representando a Fuerza Aérea, assumiu o comando do país, tendo nomeado o primeiro de seus membros como presidente. Este período de governo militar foi marcado por políticas econômicas que beneficiaram as grandes corporações industriais. A hiperinflação, que chegou

112 a mais de 100% ao ano, os altos juros e a pouca diversificação da indústria interna argentina facilitaram a concentração de poder econômico nas mãos de poucos.

Dentre as principais características do período, porém, podemos ressaltar dois aspectos. Em sua obra intitulada Historia de la Argentina, 1955-2010 (2011, p. 144), Marcos Novaro argumenta que os militares procuravam, a partir de diversas políticas públicas – que passavam, inclusive, pelos conteúdos escolares –, “reeducar y reorganizar a los actores sociales y políticos” para empreender, com o apoio de grupos católicos, sua luta contra o comunismo.4 Note-se que esta já foi uma das características do governo militar de finais da década de 1960. Assim, havia uma grande preocupação com a formação política e moral da população argentina, à procura de um controle eficiente das dissidências.

O mais notável, entretanto, foi uma espécie de crescimento e internalização da ação estatal, traduzida no próprio controle, na autocensura, na vigilância do vizinho. A sociedade patrulhou a si mesma, se encheu de kapos, como escreveu Guillermo O’Donnell, assombrado por um conjunto de práticas que – desde a família às roupas ou às crenças – revelava como o autoritarismo potencializado pelo discurso estatal estava arraigado na própria sociedade. (ROMERO, 2006, p. 200).

Este controle da população passava também – e aí encontramos o segundo aspecto que gostaríamos de ressaltar – pela intensa repressão exercida pelo Estado contra os cidadãos considerados “subversivos”, tanto que Luis Alberto Romero (2006) denomina-a genocídio. Segundo o autor, os militares procuravam “cortar o mal pela raiz”, eliminando seus adversários, considerados inimigos também da nação, em ações que, de certo modo, eram aceitas pela sociedade que se encontrava amedrontada e imobilizada.

4 Já na primeira metade do século XX, grupos católicos integristas argentinos haviam refletido sobre a situação

interna do país, com a sucessão de regimes políticos e de crises políticas, econômicas, sociais e culturais. Para estes grupos, era necessário que a Igreja acompanhasse as diferentes disputas pelo poder e seus reflexos na sociedade, salientando que a solução para estes conflitos estaria, sempre, na doutrina cristã tradicional (ZANOTTO, 2014). Segundo Giorgi (2010, p. 54), a “Revolução Argentina” já havia sido apoiada por diversos intelectuais católicos: “un número significativo de sociólogos, politólogos, filósofos, economistas, abogados, entre otros, apoyarán y se sumarán activamente a la experiencia de la Revolución Argentina, desde diversas posiciones. Se trata de una militancia en el campo político y cultural, en universidades, conformando think tanks y ocupando cargos en el Estado. En este grupo se destacan particularmente los sujetos socializados o insertos en redes y espacios socio-religiosos”. Ao mesmo tempo, surgiram outros grupos, como o denominado Tradição, Família e Propriedade (TFP), que, explicitamente confessional, procurava atuar no sentido de “defende[r] um modelo de crer, de vivenciar as crenças, de agir a partir delas, de compreensão de Igreja e também do papel que essa instituição teria ante a sociedade e o Estado” (ZANOTTO, 2014, p. 235). Neste sentido, estes grupos passaram a apoiar regimes como os civil-militares, procurando empreender, junto aos círculos nos quais atuavam, e de acordo com as pretensões destes governos, a “construção de uma nova Argentina, pautada em elementos de ordem, hierarquia, autoridade, verdade absoluta, combate e também dinamicidade, vitalidade e criatividade” (ZANOTTO, 2014, p. 237).

O discurso da autoridade, grandioso e opressor, retomou duas questões tradicionais da cultura política argentina e as desenvolveu até as últimas e terríveis conseqüências. O adversário – de contornos indefinidos, que podia incluir qualquer dissidente – era o não-ser, a ‘subversão apátrida’ sem direito a voz ou à existência, que podia e merecia ser exterminado. Contra a violência não se argumentou a favor de uma alternativa jurídica e consensual, própria de um Estado republicano e de uma sociedade democrática, mas a favor de uma ordem que era, na verdade, outra versão da mesma equação violenta e autoritária. (ROMERO, 2006, p. 200).

Neste contexto, no qual os intelectuais de direita valorizavam um idealizado passado nacional e em que, através de políticas públicas e repressão, a população passou a ser reeducada e reorganizada, é interessante notar que não encontramos qualquer referência a comemorações ou a atos públicos relativos ao sesquicentenário da morte de Cornelio Saavedra. A única iniciativa associada à data foi a reimpressão, subsidiada pelo Ministerio de

Cultura y Educación de la Nación, da obra Cornelio Saavedra padre de la patria argentina (1979). Cabem, portanto, as perguntas: Tendo sido fruto de uma ação governamental, qual teria sido a intenção do Estado ao publicar novamente esta obra? Teria alguma preocupação educativa? Através dela procurava-se resgatar um personagem que poderia servir de exemplo para a nação? Nos próximos tópicos deste capítulo, procuramos responder a estas questões.

4.2. A CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA SOBRE SAAVEDRA E SOBRE A