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CAPÍTULO IV – VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES, INIQUIDADES NO ÂMBITO JURÍDICO E PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS

QUADRO 6 – META E PRIORIDADE RELATIVAMENTE À SAÚDE MENTAL DA MULHER DIAGNOSTICADA COM TRANSTORNO

MENTAL

O II PNPM e a saúde mental da mulher

META PRIORIDADE

Implantar cinco experiências-piloto, uma por região, de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero.

Promover a implantação de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero, considerando as especificidades étnico-raciais;

Fonte: II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2008, 204p.

Nesse sentido, a prioridade do II Plano é, justamente, promover a implantação de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero, considerando as especificidades étnico-raciais. No projeto da secretaria especial de política para as mulheres, a questão da cidadania da mulher com sofrimento psíquico, vista sob a ótica da saúde e gênero, ainda está em fase de estudo e implantação.

Retomando a pesquisa de campo junto às mulheres com transtorno mental, é valido pontuar que - além dos casos já elencados – tive conhecimento de outras situações que expressam uma clara violação de direitos humanos das mulheres.

Um desses casos foi relatado por um membro da equipe de saúde mental. Ele relatou que: ―em casos graves de retardo mental em mulheres que já estiveram em estado de gravidez, os familiares pedem para se fazer a esterilização (laqueadura das trompas). As crianças, concebidas por essas mulheres ou são encaminhadas para entidades de adoção, ou ficam com os próprios familiares, e podem ser até abandonadas‖.

A questão é que, nesses casos de retardo mental grave, são feitas essas cirurgias esterilizadoras sem dimensionar a questão a partir da mulher. O assunto é tratado com certo sigilo e resume-se pela saída mais cômoda para os familiares. Esteriliza-se a mulher

162 DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana; a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes,

com transtorno mental grave. Assim, os abusos sexuais podem continuar a ocorrer sem o inconveniente da prole advinda dessa violência. O mais grave é que não há investigação sobre os casos, seja para descobrir a paternidade, seja para comprovar a autoria do crime de estupro.

Outra situação gravíssima de violação de direitos humanos das mulheres chegou- me ao conhecimento através do relato de mulheres que já estiveram internadas no HC. Eram casos de estupro e abuso sexual. Algumas pessoas da equipe de saúde mental, a partir dos relatos dessas mulheres, afirmam que já ocorreram situações em que um funcionário do hospital ou um paciente mantinha relações sexuais forçadas com mulheres internadas, especialmente, durante o repouso noturno, quando o número de técnicos que trabalha no local diminui. Acrescento que algumas mulheres passam à noite contidas fisicamente, isto é, amarradas a cama, ou dopadas quimicamente, sendo alvo fácil para esse tipo de crime sexual. As alas masculinas e femininas são interligadas por um salão comum. E a equipe de saúde mental possui técnicos e profissionais de ambos os sexos trabalhando nas duas alas.

Tais fatos são graves, mas não se tem notícia de nenhuma sindicância ou processo administrativo disciplinar instaurado internamente para apurar essa situação. Tampouco existe inquérito policial instaurado. As mulheres relataram situações dessa natureza que foram, evidentemente, negadas pelos supostos agressores. E ficaram por isso mesmo. Mais uma vez, o silencio e a tolerância para com a violência, gerando impunidade.

No que se refere ao desrespeito aos direitos humanos dentro de instituições de assistência psiquiátrica, é importante destacar que, segundo Prado (1999)163, além da análise sanitária e institucional, é fundamental observar os aspectos clínicos e, também, as implicações éticas e jurídicas do tratamento oferecido nesses espaços. Ora, de acordo com o autor existe uma completa ―(...) ausencia de derechos humanos em los pacientes

psiquiátricos ingressados en instituiciones manicomiales sin adecuadas condiciones de tratamiento.‖ (PRADO. 1999. p. 246)

Na opinião do mesmo autor, nos últimos anos tem-se observado um aumento do interesse da comunidade internacional pelo tratamento das pessoas que padecem ou sofrem de alguma enfermidade mental. Segundo Prado (1999), este interesse está intimamente relacionado com a ―(...) preocupación internacional por la protección de las

personas que se encuentran en situación desventajosa y cujos derechos se vem a menudo

163 PRADO, Ramón. La Psiquiatría: Ética y Derechos Humanos. Ver. Hosp. Psiq. Hab. XL (3) sep-dic.

restingidos‖ (p. 250). Prado observa, ainda, que as pessoas com transtorno mental são

bastante vulneráveis e que, por isso mesmo, necessitam de uma atenção diferenciada. De acordo com o autor, tem que se evitar, ao máximo, que as pessoas portadoras de transtorno mental tenham, necessariamente, os seus direitos humanos restringidos . Neste sentido, Prado (1999) destaca que, da relação entre ética e justiça, relativamente à atenção e ao tratamento dos portadores de transtornos mentais, deve-se salientar os seguintes direitos:

I. Direito do portador de transtorno mental a ser tratado em todo momento com a solicitude e o respeito à dignidade própria de sua conduta como pessoa. II. Direito a não ser qualificado como ―doente‖ mental e nem ser objeto de

diagnóstico ou tratamento nessa condição por razões políticas, sociais, raciais, religiosas e outro motivos distintos ao estado de sua saúde mental.

III. Direito a receber a melhor atenção e tratamento apropriado menos restritivo, segundo as mais elevadas normas técnicas e éticas.

IV. Direito a ser informado sobre seu diagnóstico e um tratamento mais adequado e menos rigoroso, e de prestar e revogar seu consentimento para recebê-lo. V. Direito a não ser objeto de provas clínicas nem de tratamentos experimentais

sem seu consentimento.

VI. Direito a que se mantenha a confidencialidade das informações apontadas pelo paciente.

VII. Direito a receber educação, capacitação e possibilidade de trabalhar.

VIII. Direito a não ser discriminado ilegalmente no gozo do exercício de seus direitos, em atenção ao seu estado de saúde.

Levando, pois, em consideração as observações de Prado (1999), é lícito afirmar que as falas das mulheres com transtorno mental e os demais depoimentos colhidos em campo expressam um situação desrespeitosa e bastante indigna. Aliás, quando se fala em violação de direitos humanos, deve-se aplicar como critério corretivo, qual seja, o da dignidade. Muito embora tal critério possua todo um caráter metafísico e, portanto, abstrato, deve-se considerar, à esteira de Dworkin que, para o reconhecimento desse valor intangível, é necessário, também, reconhecer que os sujeitos são portadores de autonomia. De acordo com o filósofo, para este conceito,

Devemos encontrar uma explicação mais plausível do objetivo da autonomia e nos perguntar se os pacientes demenciados teriam direito à autonomia de acordo com tal explicação. A alternativa mais plausível enfatiza a integridade, não o bem-estar do agente capaz de fazer uma escolha (aquele que irá eleger o caminho solucionador do conflito fático, como, por exemplo, o médico); nos termos dessa concepção, o valor da autonomia deriva da capacidade que protege: a capacidade de alguém expressar seu caráter – valores, compromissos, convicções e interesses críticos e experienciais – na vida que leva. O reconhecimento de um direito individual de autonomia torna possível a

autocriação. Permite que cada um de nós seja responsável pela configuração de nossas vidas de acordo com nossa própria personalidade – coerente ou não, mas de qualquer modo distintiva. Permite que cada um conduza a própria vida, em vez de se deixar conduzir ao longo desta, de modo que cada qual possa ser, na medida que um esquema de direitos possa tornar isso possível, aquilo que fez de si próprio. Permitimos que um indivíduo prefira a morte a uma amputação radical ou a uma transfusão de sangue, desde que tenha havido uma informação prévia de tal desejo, porque reconhecemos o direito que ele tem de estruturar sua vida de conformidade com seus próprios valores. (DWORKIN 2003 : 319).

Como podemos observar, a defesa dos direitos humanos envolvem uma argumentação de princípios que se relacionam e se implicam reciprocamente. Ou seja, não se pode argumentar acerca de temas como dignidade sem considerar a autonomia e vice-versa. Nestes termos, os direitos humanos das mulheres com transtorno mental somente fazem sentido quando se leva em consideração a possibilidade dessas mesmas mulheres serem consideradas dignas de respeito, enquanto cidadãs e, portanto, titulares dos direitos políticos e civis que, verdadeiramente, possuem.

É neste sentido, portanto, que devemos pensar na inclusão das mulheres diagnosticadas com transtorno mental no âmbito da participação efetiva no circuito de direitos que lhes devem ser conferidos, a partir, obviamente, do reconhecimento de sua condição de pessoa humana. Ora, se a Lei nº 10.216/2001 procura humanizar o tratamento psiquiátrico, reconhecendo a cidadania da mulher ―louca‖ e, também, a Lei nº 11.340/2006 visa proteger a mulher de potenciais violências (doméstica e familiar), o II Plano Nacional de Políticas das Mulheres (PNPM) amplia o reconhecimento de direitos, o que permite considerar que os casos analisados nesse estudo denotam abuso e violação de direitos, na medida em que ferem o princípio da dignidade, que, por sua vez, constitui- se no pressuposto do exercício pleno da cidadania.

No que diz respeito a este conceito específico, BARSTED (1994)164 escreve que, originado na Europa do século XVIII, a noção de cidadania tornou-se:

... crucial para o debate político brasileiro, travado no final da década de 70. Vislumbrava-se, na época, a perspectiva de redemocratização do Estado brasileiro, e tal expectativa colocou na ordem do dia a necessidade da implantação de um ideário da modernidade, sintetizado nas demandas por liberdade e igualdade, envolvendo homens e mulheres. (BARSTED. 1994: 9)

164 BARSTED, Leila de Andrade. Violência contra a mulher e cidadania: uma avaliação das políticas

públicas. RJ: Cadernos CEPIA (CIDADANIA, ESTUDO, PESQUISA, INFORMAÇÃO E AÇÃO). pp. 1- 61. (mimeo).

Embora não se tenha como escopo apresentar soluções prontas e acabadas às questões formuladas sobre violação de direitos humanos das mulheres praticados pelas instituições (médica e jurídica), levando em conta as implicações dessas decisões na vida dessas mulheres diagnosticadas com transtorno mental é um avanço ouvir e perceber como essas mulheres concebem a proteção que o Estado lhes oferece, a fim de que possamos refletir sobre que perspectiva de dignidade e cidadania que elas possuem em nossa sociedade e buscar alternativas para sua concretização, consoante o mandamento constitucional que prevê igualdade de tratamento entre homens e mulheres e que proíbe discriminações negativas em nosso país.