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A tentativa de distinguir entre obras boas, ruins e indiferentes dentro de cada uma das práticas, quando feita com plena seriedade e sem presunção de classes e hábitos privilegiados, é um elemento indispensável do processo social fundamental da produção humana consciente. E quando encaramos essas tentativas, como processos sociais, podemos prosseguir na investigação, ao invés de interrompê-la.

Raymond Williams (Cultura).

As discussões em torno das manifestações culturais no ocidente perpassam pele intensa reflexão sobre os conceitos de cultura, como por exemplo, os seus meios de produção, as questões ideológicas que permeiam as várias formas de representações sociais. Nesse conjunto de análises, destaca-se o profícuo debate acerca das disputas entre Cultura e cultura. As organizações sociais são estabelecidas por questões que norteiam tanto o comportamento, quanto as diversas maneiras de organização da sociedade. Nesse universo de elucubrações, no século XX, um movimento intelectual coloca-se em evidência, denominado de Estudos Culturais, que procurou ampliar as percepções do que seria cultura e suas íntimas relações com as práticas sociais.

Estudiosos como Raymond Williams, Stuart Hall, E. P. Thompson, Terry Eagleton, Homi Bhabha e Frederic Jameson promovem diversas análises sobre as transformações que a sociedade ocidental passou, no século XX, além de um intenso debate na mudança da própria crítica na área dos estudos culturais. As análises desses estudiosos pautam-se na maneira de olhar as questões culturais, as formas de organização, além de estabelecer reflexões sobre as complexas estruturas de relações sociais. Marcados pela releitura da teoria marxista mais clássica, que acreditava que a cultura seria resultado da relação entre classes, os novos estudos sobre a cultura ocidental percebem que tais questões não perpassam mais por uma disputa entre uma ideologia socialista do mundo e um modo de vida capitalista, mas que a produção cultural ultrapassa essa ótica.

170 Afirma Eagleton311 que “a cultura pode ser aproximadamente resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico”. Ou seja, é um complexo que açambarca todo conhecimento, crença, arte, lei, tudo aquilo que o ser humano, como ser ativo de uma sociedade, produz, definição essa pertencente à antropologia clássica oriunda do século XIX.

Nesse intenso debate sobre o que viria a ser cultura, surgem as discussões sobre a sociedade moderna e pós-moderna, sendo que a segunda não significou mais a busca por um mundo civilizado, pois esta base, estruturada até o século XIX, não mais dava conta dos grandes conflitos das sociedades ocidentais, principalmente após as Grandes Guerras do século passado. “É por causa dessa articulação complexa entre pensamento e realidade histórica, refletidas nas categorias sociais do pensamento e na contínua dialética entre “poder e ‘conhecimento’, que tais rupturas são dignas de registro”312.

Essas reflexões pautam-se nas intensas relações culturais estabelecidas nas sociedades do século XX, e elas são complexas, porque se percebe que as formas de organização social mudaram, e a maneira de olhá-las também. E um dos debates mais intensos dá-se em volta das significações sobre as práticas de alta cultura e as estruturas de uma cultura popular e ou de massa.

Quando se fala em estruturas e formas de organização culturais, a troca de experiências e as relações que surgem de encontros entre pessoas que pensam, produzem, comungam das mesmas ideias são resultado de visão de mundo, estabelecida na teia social. Isso gera comunidades ideológicas, voltadas tanto para o estabelecimento de regras, quanto de formas de se expressar em sociedade, pois, como aponta Eagleton313, a simples reunião de pessoas num mesmo lugar, como profissão ou geração, constitui uma expressão de cultura. Isso só ocorre quando há o compartilhamento de um conjunto de práticas, como o modo de falar, saberes comuns, formas de organização e sistematização de valores que produzam

311 Idem, (p.54).

312 HALL, Stuart. Op. Cit., (p.131). 313 EAGLETON, Terry. Op. Cit., (p.59).

171 autoimagens. Ou seja, os aspectos abrangentes a corporações proporcionam modos de ver o mundo e não, necessariamente, medidas perceptivas únicas, particulares.

Essa ideia ajuda a compreender a produção cultural teatral em Belém do Pará, do século XX, pois se percebe que as práticas cênicas analisadas, nesse trabalho, configuram-se como ações em grupo. Não são interesses individuais, puramente, mas a comunhão de pensamentos e formas de fazer arte, que representam, além do esforço individual de cada estudante, intelectuais em formação, empenhados para o amadurecimento da arte teatral, a organização em comunidade artística, que necessita de estruturação e divisão de tarefas, para que esse organismo cultural se estabeleça e permaneça ativo. Como afirmou Eagleton, essas organizações só se tornam cultura quando compartilham modos de fala, compartilham pensamentos, ou seja, criam um sistema de valor que ajuda em sua autoimagem.

A autoimagem é um fator muito importante para se entender a produção cultural do TEP, pois, como visto anteriormente, eles destacavam que suas ações estavam voltadas, inicialmente, para satisfazer seus próprios anseios intelectuais, além de colocar o objeto estético como elemento promulgador de suas necessidades. Esta postura diante do fazer artístico representou o desejo de inserção em certos círculos sociais. Os articuladores desses processos criativos em arte defendiam que as plateias locais não valorizavam, ou não conheciam os elementos poéticos do repertório cultural erudito. Por isso, ao mesmo tempo que os “desprezavam”, queriam conquistá-los, educar seus gostos, mais alinhados para a produção do mercado profissional e ou popular do teatro local.

No entanto, há nisso um sentido contraditório, devido à intensa necessidade de se agradar e conquistar o público consumidor/apreciador de arte. Os intelectuais do TEP argumentavam que ao mesmo tempo que era necessário educar a sociedade local para o teatro, faltava a esta mesma sociedade a maturidade e a percepção para obras de tão “alto valor” cultural.

Dessa maneira, quando se pensa a produção artística, é necessário considerar diversos pontos para uma reflexão sobre o seu papel, principalmente, no que corresponde às suas relações com a sociedade. Ela interage nas transformações sociais e, da mesma maneira, é resultado desses processos de mudança. Neste campo

172 de investigação, surgem alguns elementos de análise que se destacam: a relação entre as formas314 e as transformações sociais; o papel do artista na sociedade; e a recepção de tais produções.

Esses pontos de reflexão nos ajudam a entender as produções teatrais no Pará, no século XX. Para tanto, pauto-me, nesse momento, no debate promovido por Raymond Williams315, o qual discute a relação entre o artista e a sociedade, usando como exemplo as companhias teatrais na Inglaterra elisabetana, no que diz respeito ao conceito de “proteção” e “manutenção”. Nesse ponto, ele fala sobre o patronato e no que se pautam tais relações. Havia um apoio, por meio da recomendação social, e que “muitas vezes não implicava relações de troca econômica. O que realmente estava sendo trocado, num determinado tipo de sociedade marcada por patentes desigualdades de classe, era a reputação e honra confiantemente recíprocas”316.

Ao estabelecer a relação entre artistas e mercado, Williams317 afirma que a categoria “artesanal” traz em si situações simples, ligadas à tradição, representantes de modos de vida antigos, mas presentes em muitos lugares, principalmente quando o produtor independente dispõe sua obra à venda. Ele não depende, de imediato, do mercado, e, por isso, não está sujeitado às suas regras, controlando todas as etapas do processo cultural (produção e circulação), fato este que o faz considerar-se autônomo.

314 Segundo Williams (1992, p. 147), “é certo que determinadas formas de relação social estão

profundamente incorporadas a outras formas de arte. Será necessário examinar alguns exemplos concretos no caso do teatro, a respeito de cujas formas mais importantes, em ordens sociais muito diversas, dispomos de extenso registro. Em primeiro lugar, temos de reconhecer que não pode haver uma separação absoluta entre aquelas relações sociais que são evidentes, ou que se podem descobrir como condições sinalizados de tipos de atividade cultural especificamente indicados – e aquelas que estão tão incorporados à prática, como articulações formais particulares, que são ao mesmo tempo sociais e formais, e podem, em certo tipo de análise, ser tratadas como autônoma”. Nessa relação entre formas de arte e organizações sociais, podemos apontar que, ao analisar as práticas teatrais em Belém, a partir das ações do TEP, seja necessário percebê-las como uma maneira de pensamento e comportamento de determinados grupos. Porém, como venho apontando ao longo desse trabalho, esse conjunto simbólico surgiu a partir do confronto (mais ideológico do que prático) às outras atividades teatrais presentes no circuito cultural da cidade. Por isso, pautado na leitura de Williams, a investigação sobre as condições sociais, evidentes ou não, particulares ou coletivas, perante o modo de produção artística diferenciada revelam relações de poder político, econômico, além de mostrar processos de seletividade e estratificação.

315 WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1992.

316 Idem, (p.41). 317 Idem, (p.44).

173 É interessante perceber a relação estabelecida entre a discussão proposta por Williams (1992) e as ações do TEP, pois este grupo teatral estabeleceu como metas a realização de trabalhos voltados para satisfazer seus gostos, seus ideais artísticos, desligando-se do chamado mercado teatral, o qual ele criticava. Afirmava que os espetáculos produzidos pelo meio profissional eram de mau gosto, voltados muito mais para os interesses de um público “desqualificado”, como eles pensavam, do que ao propósito de uma investigação poética, da preocupação em oferecer obras de qualidade. É evidente, que inicialmente, o grupo paraense voltou-se para a sua meta primeira, a de formação intelectual de artistas no e para o teatro. O TEP defendia que boas obras eram as que pertenciam ao cânone, denominado por eles de clássicos (como as obras gregas e as do século XVIII), e as modernas (como por exemplo, Ibsen, Tchekhov à sua contemporaneidade).

A discussão sobre as formas e suas implicações nas transformações sociais, proposta por Williams (1992), é tomada a partir de sua relação, por exemplo, com o teatro. Ele mostra como o teatro grego, o elisabetano, o naturalismo, o teatro burguês e as tendências modernas são processos que refletem não apenas mudanças estéticas, mas são resultado de mudanças sociais. Cada forma teatral está intrinsecamente relacionada às culturas às quais elas pertencem. Ao tomar como base de análise tais ideias, para se observar as práticas teatrais no Pará, são necessárias algumas adaptações.

Percebe-se que as transformações da sociedade paraense não estão ligadas, diretamente, às mudanças estéticas almejadas pelos intelectuais e artistas locais, mas de alguma maneira, tais agentes culturais buscavam transformações sociais, por meio da produção artística. Isso pode ser percebido através da política cultural do Estado Novo, que garantia os suportes midiáticos, como jornais e revistas; além de se ver a estreita relação do grupo paraense com as políticas do Teatro do Estudante do Brasil, que buscou intensamente uma articulação com os governos da época.

No caso da produção artística local, é interessante observar a análise que Benedito Nunes, pertencente a uma geração posterior ao TEP, faz ao relatar como se

174 deu a formação e o comportamento do chamado grupo “Os Novos”318, na busca pelas mudanças culturais no Pará:

Alguns anos depois desse grito libertário, um dos nossos ilustres confrades, Haroldo Maranhão, fundou e dirigiu o Suplemento Literário de “A Folha do Norte”. Mais moderno do que modernista, esse antiprovinciano tabloide dominical instrumentou, difundindo tudo o que de melhor e mais novo se fazia na literatura e na arte do país e do estrangeiro, o esforço de atualização que cada qual começara a empreender por conta própria. E golpeou o isolamento que ilhava a produção local. Os primeiros poemas de O ESTRANHO319 foram surgindo nas páginas do Suplemento, onde líamos as

últimas poesias de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, alternando-se com os versos de Ruy Barata e Paulo Plínio Abreu, que nós, os então chamados “novos”, somados a um Cauby Cruz e a um Mário Faustino, que não haviam pertencido à nossa Academia, tínhamos aprendido a admirar. O encarte dominical de “A Folha do Norte”, que durou de 1946 a 1951, também direcionou a convivência intelectual que nos ligava, por meio de nosso atualizadíssimo mestre, Francisco Paulo Mendes, a pessoas mais velhas ou apenas menos jovens do que nós. Por fim, criou-se o espírito comum na maneira de sentir e de pensar o mundo real e a literatura320.

Nota-se, na análise do crítico, produzida anos depois, que o Suplemento

Literário do Jornal Folha do Norte321 foi uma ação de mudanças, pois, segundo as perspectivas dos integrantes desse movimento, suas produções artísticas e intelectuais procuraram tirar Belém de um suposto isolamento intelectual, a partir da circulação de textos estéticos e filosóficos, e que provocara mudanças significativas para as artes locais. Tal suplemento permitiu que os artistas de Belém dialogassem com os de outros lugares do mundo e do Brasil, além de fazer circular pela cidade textos modernos e alguns de vanguarda.

Destaca-se que no referido suplemento não havia um debate sobre o teatro, tal fato exemplifica que a arte dramática não tinha força, ou essa geração de literatos pouco se interessava pelo teatro, embora mais tarde, no final dos anos 1950, alguns

318 Os Novos foi um grupo vanguardista literário dos meados dos anos 1940 (1946-1951), responsável

por um dos mais significativos movimentos culturais da região Norte. Suas ações serão abordadas com mais profundidade no capítulo seguinte, quando se abordar os trabalhos do Norte Teatro Escola do Pará.

319 Livro de estreia do poeta paraense Max Martins. Juntamente com Benedito Nunes e Alonso Rocha

fundou o Grupo Os Novos. Esse grupo tinha como ideal a renovação estética, contrapondo-se à tradição parnasiana.

320 NUNES, Benedito. Max Martins, Mestre-Aprendiz. In: Max Martins: Poemas reunidos, 1952-2001.

Belém: EDUFPA, 2001, (p.20).

321 Sobre O Suplemento Dominical da Folha do Norte, consultar: MAUÉS, Júlia. A modernidade literária da Folha do Norte. Belém: UNAMA, 2002.

175 deles, como Benedito Nunes, vieram participar do movimento teatral, e Francisco Paulo Mendes, que atuou no TEP e depois, nos anos 1960 contribuirá, como docente, no Serviço de Teatro da Universidade do Pará322.

Antes do Suplemento Literário da Folha do Norte (1946-1951) aparecer, na área teatral, já existia em Belém o movimento do TEP, e uma iniciativa de produção dramatúrgica local, com Mário Couto. Mas, é possível elucubrar que tal ação não se fortaleceu, pois, além dos dramas de Couto, citados anteriormente, em periódicos da década de 1940 não se vê outras obras. Sabe-se que ele investiu no gênero crônica. Sobre sua produção literária, Francisco Paulo Mendes relata que se iniciou, “propriamente, aos seus dezessete para os dezoito anos, pelo conto e pelo teatro”323. Com relação à produção teatral, destaca:

De seu teatro uma das peças, Toque a Serenata de Schubert, chegou a ser encenada pela professora Margarida Schivazappa, no Teatro da Paz, por iniciativa de O Teatro do Estudante. Era uma comédia com o mesmo clima dos contos e dela Dalcídio Jurandir comentaria: “Mário Couto é um dos nossos mais interessantes conteurs. Agora faz teatro. Toque a Serenata de Schubert, sua peça de estreia, apresenta, além daquelas virtudes que os seus contos já denunciavam, muitas outras. Mário Couto nos dá uma peça leve, mas rica de intenções e de subentendimentos. E, na verdade, não se pediria mais para um estreante de teatro”324.

Paulo Mendes ressalta, ainda, que o jovem Mário Couto teria sido um contista e um teatrólogo de excelentes produções e conseguiria grande êxito, devido à sua qualidade na elaboração poética. No entanto, ou não quis ou não pôde prosseguir sua produção dramatúrgica. As contingências de sua vida não o permitiu, levando-o para a atividade jornalística e o aprofundamento na elaboração da crônica literária, segundo Mendes.

A produção de textos teatrais estava nas pautas de discussões do movimento amador brasileiro do século XX. Além de valorizar o cânone nacional e estrangeiro, além das vanguardas, os artistas e intelectuais dessa época pensavam em formas de

322 Esse ponto será abordado no terceiro capítulo desse trabalho.

323MENDES, Francisco Paulo. Prefácio. In: COUTO, Mário. A grande viagem. Coleção Pará de Todos os

Versos, de todas as prosas. Belém: Diário do Pará, 2012, (p.13).

176 estimular o surgimento de novos escritores do gênero dramático. Sábato Magaldi325 afirma, ao analisar o teatro brasileiro a partir da perspectiva dramatúrgica, que não foi possível, até o momento de seu texto (década de 1960/70) estabelecer especificidades da área cênica capazes de se dinamizar com outras formas de cultura. Portanto, não houvera, ainda naquele contexto, a integração à vida social brasileira das práticas teatrais, fator este que se daria pela qualidade nos trabalhos apresentados que não conseguiam chegar de forma consistente às diversas camadas da população.

Magaldi ressalta, também, que o problema de uma nacionalização do teatro brasileiro não está intimamente ligado a temas e formas de abordagens sobre a cultura brasileira, mas a questão explica-se pelas organizações e ações de uma política cultural, voltada para a formação de uma identidade nacional, de uma intensa relação com a área cultural. Sem os investimentos nesse setor, não há como a sociedade ser um agente participante, e tampouco as estruturas necessárias para que um sistema cultural, como o teatro, tenha condições de se manter vivo nas relações sociais.

No entanto, como se verá mais a frente, os artistas e produtores culturais buscaram-, a partir do início da década de 1950, diferentemente das questões surgidas som a criação do SNT, em 1937 (que norteou o setor artístico dos anos 1940) -organizar-se e reivindicar por melhorias que pudessem ajudá-los não apenas em sua sobrevivência, enquanto mercado de trabalho, mas que a sociedade brasileira tornasse as atividades culturais elemento orgânico de suas práticas. Portanto, era necessário e urgente que os circuitos culturais fizessem parte das relações socioculturais do país.

No Pará, antes mesmo do TEP, no início do século XX, o literato e jornalista José Eustáquio de Azevedo escreveu sobre um “teatro nacional”, na perspectiva da criação dramatúrgica, e tentou, ao modo da época, a busca de modelos nos cânones europeu e brasileiro. Essas questões representaram um empenho de uma criação

325 MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro/

177 poética que considerasse os elementos nacionais, e os esforços de artistas em tornar o teatro elemento orgânico da sociedade. Ele diz:

Afirmam escritores patrícios que, no Brasil, não há teatro e nunca o houve; que, no Brasil, não há um dramaturgo que haja criado uma obra de valor; que, finalmente, nós nunca tivemos atores, a não ser o esporádico João Caetano.

Pois eu, com risco de que me chamem de doido, afirmo e provo o contrário. De que precisamos é de público; público educado; público de bom gosto literário e artístico; público que faça face aos sacrifícios de empresas criteriosas; público que não dê palmas a Os Milagres de St.º. Antônio; que não apinhe a plateia só quando aparecerem nos cartazes os anúncios de melodramas como Os dois garotos, Os estranguladores de Paris, de dramalhões como o Zé do Telhado ou As duas órfãs, ou, finalmente de deslavadas revistas de ano onde imperam o maxixe rafiné, a exibição de pernas de todos os feitios, os fadinhos apimentados, a pornografia literária326.

Observa-se, no excerto acima, novamente o destaque dado ao papel do público da época, pessoas que tivessem educação e bom gosto para as obras literárias, que não se rendessem a gêneros de baixa qualidade, como os melodramas e as revistas. Essa discussão gera questões complexas, pois ao mesmo tempo em que se exigia um refinamento do gosto, havia uma segmentação social, porque, de acordo com os objetivos desses intelectuais, o comportamento do público se dava a partir de sua posição de classe, fato que revela uma visão aristocratizante da arte teatral.