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As interfaces do conceito de qualidade são apresentadas na Figura 5, com o objetivo de mostrar que aquelas instituições apresentadas anteriormente fazem parte da construção desse conceito para o campo. Do lado esquerdo, os elementos que constroem o conceito de qualidade dos programas e, do lado direito, a construção do conceito de qualidade em pesquisa. Mais especificamente, o que se quer tratar é: quem e como se qualifica a pesquisa e os programas em nível nacional e internacional.

Figura 5: Conceito de qualidade Fonte: Elaborado pelo autor.

O conceito de qualidade de uma instituição, no contexto nacional, passa diretamente pelo conceito CAPES e, internacionalmente, se relaciona à acreditação e ao posicionamento em rankings. Percebe-se que elementos institucionais, discutidos anteriormente, são utilizados para atribuir valor e qualificar os programas diretamente.

Sob o ponto de vista da pesquisa, o que a qualifica nacionalmente é a pontuação que ela gerou e os resultados que ela trouxe, financeiros ou em forma de convites. Internacionalmente, a qualificação da pesquisa

via publicação é medida pelo impact factor, e quanto às relações, os convites também são alguns resultados que qualificam a produção do pesquisador. Interessante perceber que o conceito de qualidade passa, especialmente, pelos resultados – sistema de pontos, financeiros, selos e distinções, sociais ou relacionais, sendo estes últimos relacionados diretamente aos pares.

Observa-se, em um relato, que se almeja e, consequentemente, se considera qualidade chegar a um nível de produção científica semelhante aos padrões norte-americanos e ingleses. Essa busca mostra um dos aspectos do que é considerado qualidade de um programa na perspectiva do Entrevistado 6.

Então se nós pegarmos as escolas líderes no Brasil, nós ainda estamos muito distantes, pegando até a Europa continental, uma Erasmus, uma Bocconi, até mesmo Nova de Lisboa, ESAD. Eu acho que esse é o próximo desafio desses programas líderes no Brasil, como se aproximar desses programas. Nível de produção científica deles está cada vez mais próximo de universidades norte-americanas ou inglesas, enfim (ENTREVISTADO 6).

As distorções na análise da qualidade dos programas de pós- graduação, ambiente em que se produz e se faz pesquisa no país e na área, são também postas. No ambiente nacional, o já discutido “produtivismo” tem seu impacto também nessa discussão. A qualidade da pesquisa é questionada pelo Entrevistado 4 como resultado de uma lógica produtivista: “nunca se fez tanto recall de paper”. O termo recall é termo comum ao setor industrial automobilístico, de produção em série, quando há defeito em um lote. Isso quer dizer que artigos têm sido colocados em circulação com defeitos, sendo necessário corrigir no processo de avaliação ou até mesmo desconsiderar o artigo em função de problemas na sua construção. O produto científico e a prática científica que gera tal produto passam a ser alvos das críticas dos próprios produtores. Eles produzem o sistema, apoiam o sistema e acabam trabalhando para manutenção do sistema.

Quando se questiona, no campo, o “produtivismo”, o ponto central não está em questionar a necessidade de produzir e comunicar na ciência, mas em questionar a ciência enquanto um fim em si mesma, que engendra uma lógica deturpada, prejudicando a qualidade: “O problema não é a produtividade, é colocar uma consequência como um fim em si mesmo, nesse sentido a qualidade pode cair” (ENTREVISTADO 4).

Dessa maneira, a crítica à qualidade operada pelo entrevistado leva em conta processo de produção e resultados outros, em vez de passar pelo conceito de qualidade promovido pelas instituições, relacionado ao sistema de pontos, por exemplo.

Nesse sentido, também a relevância da produção científica na área é colocada em questão: “Muitas vezes aquela publicação, você publicou hoje: morreu. Ninguém mais sabe mais daquela publicação amanhã e não tem repercussão nenhuma, nenhuma na vida das organizações”(ENTREVISTADO 7). Retomando a discussão anterior sobre financiamento público da pesquisa, em que já se questionou os usos e o fim social da ciência, aqui, a repercussão se relaciona com o quanto a produção científica contribui para a sociedade. O Entrevistado 7 afirma que: “impressiona o crescimento do professor, mas eu acho que esse crescimento ainda não se refletiu para fora da academia”. Esse questionamento do entrevistado corrobora estudos anteriores em que Pinheiro (2013) verificou essa inquietação quanto à relação da ciência com a sociedade no campo e distinguiu dois elementos dessa categoria: o aspecto individual, relacionado às motivações do pesquisador em responder à sociedade, e as pressões externas da sociedade. Mesmo quando não se tratava da utilidade social da ciência, quando se falava em produção científica, o caráter social voltava à tona (PINHEIRO, 2013).

Outra questão, a partir da afirmação de que a publicação “morreu” logo após ser publicada, refere-se ao interesse pelos pares na leitura do artigo. Hagstrom (1974) afirmava que havia, em geral, uma preocupação por parte do cientista pela leitura do artigo publicado pelos seus pares. Se a preocupação do autor estivesse relacionada apenas a alcançar posições, isso era considerado degradante, nota-se, aqui, que apesar da crítica desse tipo de publicação, isso não é incomum na prática.

Se o objetivo é contar ponto, depois que pontuou, o artigo já não serve mais nesse sistema de produção. As instituições que dão apoio e constituem o campo acabaram engendrando um sistema em que a produção passa a ser o fim em si mesma para o Entrevistado 7, como se vê no trecho abaixo:

Nós estamos produzindo aqui pra fazer os pontos, pra continuar nos programas de pós-graduação pra ganhar as bolsas, pra fazer núcleos de pesquisa funcionarem com os recursos que nos abastecem com uma bolsa intermediária que nos ajuda e nos supre financeiramente uma condição melhor. Nos

dá uma estrutura melhor, essa coisa toda (ENTREVISTADO 7).

Com o apoio desses elementos institucionais de legitimação, o sistema passa a fazer sentido, mas, na visão do Entrevistado 7, apenas em si mesmo. O fim sendo a publicação, em um sistema que visa a produção rápida, encurtamento de tempos e movimentos da prática científica, a partir do momento que o paper é publicado, ele cumpre seu papel de pontuar, o ciclo se encerra e ele é muitas vezes esquecido – tanto na comunidade acadêmica quanto socialmente. Os pesquisadores, por sua vez, dispõem de pouco tempo para ler seus colegas e nesse sistema de pontos e de produção, muitos dos artigos sequer chegam a ser apreciados pelos pares. Nesse sentido, a própria “mídia” em que se veicula a produção passa a ser um diferencial para que o artigo seja conhecido no campo.

Já sob o ponto de vista internacional de distorção da qualidade, o aspecto que merece destaque é a percepção da submissão da área aos temas e às línguas estrangeiras, já criticada em alguns artigos (ROSA; ALVES, 2011; BERRY, 2004). Portanto, aqui, o impacto dessa distorção se dá durante o processo, na prática científica, e não na consequência da publicação em si. Resgata-se a noção do chamado softpower (FARIA, 2011), neocolonialismo, que passa a questionar a qualidade do conteúdo do que é produzido nacionalmente:

A gente fica replicando coisa que foi feita lá em cima sem o devido ajuste àquilo que é a nossa realidade. E coisas que a gente faz, a gente deixa de dizer porque na hora que vai referenciar é alguma coisa brasileira, mas brasileira não dá IBOPE, é em português. [...] Então você fica invertendo as coisas. Aquilo que é a sua referência acaba sendo, a referência que é instrumental, isto é: isso me viabiliza uma publicação. [...] Hoje esse tipo de problema é muito mais grave, eu acho. Porque você tem uma pressão, que é uma pressão mundial, para você publicar (ENTREVISTADO 4).

O Brasil é um país rico em práticas, mas a dificuldade se concentra na etapa da prática científica de divulgação no exterior, influenciando o processo anterior de produção para se adequar às demandas estrangeiras. O entrevistado 4 corrobora essa noção: “Eu acho que nós temos muitas práticas, temos muitas coisas que são feitas, mas

elas não tem uma divulgação muito maior, em função de um recorte que é muito inspirado naquilo que o Primeiro Mundo quer”. Essa submissão toca diretamente os periódicos internacionais e as demandas, inclusive o que se deve citar num trabalho científico.

Enquanto alguns entrevistados enfatizaram a importância na formação da leitura dos clássicos, hoje a leitura dos próprios periódicos e a indução de citações destes é que é vista com bons olhos na produção científica:

Pra você publicar por ex. algumas revistas que são muito bem avaliadas pedem uma bibliografia internacional e com menos de 5 anos, então isso significa journals, significa que cada vez mais se lê menos livros […] Esse é um tipo de veículo ao qual eu não me submeto. Eu respeito livros. Livros hoje não vale nada na bibliografia, pelo menos na maior parte das publicações bem avaliadas no Brasil (ENTREVISTADO 4).

Essa crítica aponta para um modelo de ciência em que um tipo de conhecimento é mais valorizado, o internacional, em específico os de língua inglesa. Além de uma questão de língua, o entrevistado critica uma dominação de meios de divulgação, os journals, os quais são indispensáveis nesse “jogo” acadêmico.

A qualidade de publicação está relacionada, atualmente, à qualidade do periódico. A criação do modelo de avaliação dos programas no Brasil concebeu um sistema que passou a avaliar o pesquisador individualmente também, principalmente para disputa por recursos financeiros em órgãos de fomento e apoio. Da mesma forma, o impact factor é um projeto político das revistas, dos editores, de valorização da citação de periódicos nas publicações – sem entrar na questão das fraudes de negociação de citações entre periódicos12 e na questão de que publicar num determinado periódico significa publicar sobre determinado tema, em determinada linha editorial, discutir temáticas que interessem internacionalmente, geralmente parte do mundo que lê e acessa os periódicos em inglês.

Outro aspecto pertinente à qualidade da pesquisa relaciona-se aos convites para bancas, eventos e orientações. Esses convites são fruto do

12

A exemplo do esquema de ‘citation stacking’ em periódicos da área médica descoberto pela Thomson Reuters que implicou suspensão da classificação dos periódicos. Disponível em:

reconhecimento da publicação do pesquisador pelos pares. Esse aspecto, ainda que contemple também os periódicos que se participa, se há publicações internacionais, por exemplo, vai muito mais no conteúdo do artigo do que no journal em si. Então geralmente são convidados pesquisadores reconhecidos por determinados temas, ainda que também exista a troca de convites, em um modelo semelhante ao da fraude dos periódicos, embora sem o mesmo aspecto antiético.

Portanto, o conceito de qualidade apresenta esse aspecto dúbio na publicação. Os índices e métricas podem apresentar distorções para construir o conceito de qualidade. Publicação nacional e internacional são medidas importantes para qualidade em pesquisa, mas, sob o ponto de vista nacional, pode haver a distorção de a publicação ser apenas um fim em si mesma, prejudicando a qualidade do artigo em si, enquanto, internacionalmente, pode haver uma submissão ao ambiente externo que se deseja publicar. Em todo caso, a qualidade da publicação não é medida na publicação, mas a partir dos periódicos, e, por isso, as distorções existentes no processo de medir qualidade da produção científica.

Nem sempre foi esse o conceito de qualidade. Algumas alterações e influências provenientes dos elementos institucionais são claras, como é o caso do crescimento da importância dos periódicos. Segundo o Entrevistado 4, “tivemos uma mudança dada pelo próprio andar da sociedade, professores fundadores que se aposentaram, geração nova chega com outras influências”, mas o entrevistado lamenta que com a aposentadoria a erudição da escola foi decrescendo, principalmente quanto à diversidade de formações dos professores-pesquisadores da instituição em que atua. A erudição e a diversidade são uma crítica ao modelo que padronizou um conceito de qualidade. Assim há uma mudança profunda no conceito de qualidade do pesquisador: de um erudito para um produtor de papers. Ainda que no campo exista esse reconhecimento pela erudição, o que é mais comum é a incorporação do novo conceito. Isso mostra que a realidade do que era considerado qualidade, ou melhor, o que pode ser medido como qualidade, não reflete, muitas vezes, o que os pesquisadores consideram qualidade.

Esse aspecto da internacionalização da qualidade das escolas e do campo científico nacional impactou as carreiras dos pesquisadores, assim como foi impactado por essa alteração. Esse novo perfil requer determinadas habilidades. Como foi visto, também, alguns elementos institucionais que dão apoio à carreira do pesquisador em outros países, no Brasil não se fazem presentes. Então, como consequência da

discussão da qualidade na prática da pesquisa e das instituições que compõe o campo, será discutida a carreira do pesquisador.