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CAPÍTULO 3: INSEGURANÇA ALIMENTAR VIVENCIADA PELA

3.1. População em situação de rua do centro do Rio de Janeiro e dificuldades de

3.1.3. Qualidade e quantidade de alimentação que a população em situação de

Em relação ao número de refeições que em média as pessoas em situação de rua fazem, a maioria respondeu de 01 a 02 refeições por dia, muitas não almoçam e somente 02 pessoas responderam fazer 03 refeições ao dia, sendo que uma delas já saiu da situação de rua e o outro se encontra abrigado. Esse depoente é levado pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, pelo serviço de abordagem do centro da cidade, para a Ilha do Governador para almoçar, vai e volta de Van da prefeitura, gasta boa parte da manhã e da tarde para realizar este percurso para poder almoçar. Todos os dias janta no abrigo que funciona só para pernoite, uma vez que a permanência durante o dia não é permitida e não há oferta de atividades neste abrigo no centro do Rio. Estes relatos contribuem para reflexão sobre a situação alimentar de uma pessoa em situação de rua que se encontra acolhida em abrigos, em distinção daqueles que estão morando nas ruas sem acesso a políticas públicas, como será problematizado posteriormente.

Entrevistadora: como é que você tem feito para conseguir essa

alimentação?

Entrevistada: eu não consigo. Eu não almoço todos os dias, eu só

almoço uma vez, a gente só come a noite e isso faz com que a gente coma em excesso a noite tudo que a gente não comeu no dia a gente come a noite, ou seja, duas, três quentinhas, sopa aí fez eu engordar né que as carreatas, como a gente chama só passa no horário noturno. A população de rua só se alimenta uma vez por dia mais esse horário é o horário noturno (PSR, Mulher Militante).

Chama atenção a qualidade da alimentação que a população em situação de rua acessa, ao serem questionados sobre “o que geralmente comiam nas refeições que

faziam nas ruas”, os entrevistados destacaram questões que merecem ser discutidas e aprofundadas.

Entrevistada: mas essa alimentação ou é sopa de legumes sem sal ou é

salsicha, salsicha, salsicha, então hoje nós já não aguenta [sic] nem mais ver salsicha, muitas vezes é só salsicha que a gente chama de salsicha verde e vem crua também picada. É muito raro quando vem alguém que traz um risoto, uma feijoadinha, a gente fica maluco, estrogonofe de frango com arroz e batata palha.

Entrevistadora: isso vem pouco né?

Entrevistada: é outra realidade, ele vem uma vez por mês, ele vem

quinzenal, mas a salsicha minha filha é campeã. É angu com salsicha, arroz com salsicha, macarrão com salsicha, a maioria e nem sequer coloca nenhum molho, você vê que é uma coisa.

Entrevistadora: então a qualidade dessa comida às vezes é duvidosa? Entrevistada: é péssima, tanto que tem gente que está com trauma, aí a

maioria de nós tem diarreia e queimação no estomago, sentem queimação, azia. Há pessoas que trazem água mineral para nós agora e também todinho (PSR, mulher militante).

A gente come comida fria, não tem horário para comer, a gente come quando a pessoa vem e dá uma comidinha para nós, muitas vezes a comida vem azeda, eu já vi amigos meus morrendo com quentinha envenenada e a gente fica com medo de comer comida da mão de certas pessoas, com medo de estar envenenada. Tem gente que traz comida azeda para nós, estragada (PSR, Mulher).

Entrevistada: mais miojo e pão com mortadela e aqui na rua eles dão só

macarrão com salsicha, nunca tem uma carne, um frango.

Entrevistadora: e essas carreatas? Você costuma ir atrás? Entrevistada: vou, toda noite eu vou.

Entrevistadora: aonde que tem essas carreatas?

Entrevistada: é na Almirante Barroso com a Graça Aranha. Entrevistadora: e o que distribui lá?

Entrevistada: distribui comida, essas quentinhas de macarrão com

salsicha, as vezes vem pão com manteiga e um copo de suco ou então pão com manteiga com café com leite (PSR, Mulher).

Entrevistado: (...) eles dão muito Guaravita, esse xarope de guaraná e

eles agora estão com mania de dar bananada também, geleia e nós estamos virando tudo formiga, a gente tem vício de doce. Muito doce. Todos nós somos viciados em doce depois da refeição.

A falta de carne nas alimentações que acessam é um fato presente na fala dos entrevistados, indicam que a vontade de comer carne é tanta que chegam a imaginar a presença de carne nas sopas. Chega a ser teatral a expressão dos inúmeros gestos e a movimentação das mãos quando a entrevistada descreve como os moradores em situação de rua chegam a imaginar a presença da carne nas sopas a eles oferecidas e novamente a qualidade da alimentação aparece no relato.

Entrevistada: tudo é salsicha, muito macarrão, não botam molho e a sopa

desejando ter carne que eles vêem carne na sopa, eu acho aquilo incrível, ele pega uma folha de verdura e diz que aquilo é um pedaço de carne. Só tem um homem que é dono de um restaurante que ele traz a sopa com frango aqui na defensoria e agora no inverno tem vindo sopa de ervilha com linguiça. Eles ficam vendo carne na sopa, eu não vejo carne nenhuma.

Entrevistadora: de tanta vontade de comer?

Entrevistada: de tanta vontade que vê um pedaço de carne dentro da

sopa. Às vezes chama até de sopa de lavagem porque eles misturam tanta coisa, misturam arroz na sopa. Tem uma que a gente chama de sopa de papinha porque eles misturam tudo, arroz, feijão, macarrão e bate no liquidificador a gente não gosta, a gente chama de sopa de papinha, a gente odeia essa sopa, ela vem em uma lata de leite ninho (PSR, Mulher, Militante).

Uma preocupação que faz parte da rotina da população em situação de rua é a quantidade de alimento que conseguem acessar, pois mesmo que as carreatas sejam frequentes, nem sempre a comida é servida com fartura. Um dos entrevistados citou uma macarronada servida embaixo do prédio da defensoria pública e destacou que a mesma estava muito saborosa, demostrando satisfação em poder comer com fartura algo gostoso. Ressaltou que foi servida à vontade, ou seja, um dado preocupante é a disponibilidade em termos quantitativos das refeições oferecidas pelas carreatas.

Como as carreatas, de uma maneira geral, sobrevivem da ação de voluntários, existe um limite de oferta, ou seja, há um número de refeições a serem servidas que nem sempre corresponde a alta demanda, até mesmo porque não existe uma comunicação entre essas instituições ou pessoas físicas quanto aos horários e dias de distribuição. Além disso, a demanda por parte da população em situação de rua é difícil de ser estimada, tendo em vista que em determinados dias existem diversas carreatas distribuindo alimentação, já em outros dias há escassez, o que gera um aumento da demanda para a carreata que está naquele momento oferecendo alimentação. Há também que se considerar o cardápio oferecido, a preferência, por parte dos usuários, por comida à lanche, tendo em vista o acesso mais restrito à refeição e o fato de geralmente não acessarem o almoço. O clima também influencia, como, por exemplo, dias chuvosos, e as características dos dias de distribuição, se são feriados, finais de semana, horário da distribuição e a incerteza se terão acesso à outra refeição. Portanto, muitos fatores influenciam a oferta e demanda da alimentação distribuída nas carreatas. Além da restrição quantitativa as filas são tão grandiosas que alguns não conseguem receber o alimento. Um dos entrevistados descreve a surpresa dos moradores de rua ao receberem comida com carne e que podem repetir:

Entrevistado: Ontem mesmo teve uma carreata que veio aqui que nego

[sic] ficou bobo, veio uma carreata com macarrão temperado com carne moída, batata palha e queijo e refresco à vontade.

Entrevistadora: olha que delícia macarrão com carne moída, batata palha

e mais o quê? Queijo ralado?

Entrevistado: repetiu quantas pessoas quiseram repetir. Entrevistadora: comeu à vontade? (PSR-Homem).

Outra queixa que apareceu na fala de somente um entrevistado, porém nos chamou a atenção, foi a da mulher-militante que destacou a data de validade dos produtos distribuídos, afirmou sempre prestar atenção nos rótulos dos produtos que são distribuídos e ler tudo. Ela observou, com certa frequência, a distribuição de produtos com datas muito próximas de vencer, ou mesmo fora do prazo de validade, e ainda destacou que a maioria da população em situação de rua não se atenta a este fato. Segundo a entrevistada:

Entrevistada: tudo vencida. Aí eu olho a data de validade, vencida.

Todinho, wafer e muitas vezes está perto da data de vencer ou próxima e eles não prestam atenção nisso né, ficam todo bobo “ai água mineral”, um litro e meio e ai eu olho o rotulo tá vencido (PSR, mulher militante).