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CAPÍTULO III. Baixo Tapajós: o berço revolucionário das “hidras cabanas” 3.1 A Queda da Capital do Vale Amazônico e a formação dos Pontos Cabanos

3.2. Quando a Cabanagem era em Pinhel e Vila Franca

No cerne da queda da Vila de Santarém pelas ações dos cabanos do Tapajós, vão surgindo outros pontos e redutos cabanos, dentre os quais citamos aqui a Vila de Pinhel e Vila Franca.

Em Pinhel, na antiga Missão de Santa Cruz (depois rebatizada de Missão de São José Maytapus) algumas “rusgas” entre brasileiros natos e adotivos promoveram um acirramento político pela disputa de poder na Vila. Concomitantemente, a imposição de trabalhos servis aos índios Maytapus, como se estes fossem tapuios e não cidadãos, também provocaram insatisfações nas fímbrias da estratificação índia na Vila.

Em ofício de Raimundo Antônio Fernandes (Vigário Geral) a José Joaquim Machado de Oliveira (Presidente da Província do Pará) enviando o Padre José de Nossa Senhora dos Prazeres (Vigário interino de Pinhel), para representar contra as arbitrariedades praticadas pelo Juiz da dita Vila, informar sobre o estado da Missão de Santa Cruz e sobre o método mais fácil de empreender descimentos dos sertões para as margens do Rio Tapajós, o mesmo assim o narra:

Envio a apresentar-se a V. Exª. o Raimundo Fernandes, José de Nossa Senhora dos Prazeres, Missionário de Santa Cruz, e Vigário interino de Pinhel, que tendo sofrido as maiores violências e arbitrariedades perpetradas pelo Juiz Ordinário d‟aquella Villa se destina representar de viva voz a V. Exª no intuito de obter graças de poder livremente reconhecer- se a sua Parochia sem receio de ser de novo incomodado; tenho esgotado todos os recursos servindo-se nos meios de providências, mas debalde porque nada tem sido bastante para impedir a impetuosa corrente de repetidos despotismos, tendo-se até vedado ao Padre o poder him socorrer as necessidades espirituais de seus fregueses... porque dois ou trez indivíduos assim o querendo ao mesmo tempo que todos os mais ... se contenta quantos a sua caridade, segundo as informações que tenho. Pelo mesmo Padre, será V. Ex.ª informado do estado da missão e das medidas precisas para o seu melhoramento, assim como do methodo mais fácil de empreenderem os decimentos de inúmeros gentios que decejas deixar as brenhas e sim situam-se a margem do Tapajós e que por motivos que aprenderá a V. Ex.ª o referido Padre tem deixado de fazer.

[...] Ex.mº Senhor, que se promova o ... decimento, de grande vantagem sendo huma dentre as aplicações as roças de mandioca ...

Deus guarde V. Ex.ª. Tapajós, 23 de Julho de 1833. Illmo e Ex.mº Senhor Presidente da Província 158. [sic].

Como observado no documento, existia uma disputa de poder entre as edilidades portuguesas. De um lado o Juiz da Vila que estava se posicionando contra a cooptação de índios Maytapus, não porque fosse benéfico ou compadecido, mas, sim, porque via que tal proximidade com os índios (considerados cidadãos) representaria apoio político na Vila.

De outro lado o vigário interino de Pinhel, o Padre José de Nossa Senhora dos Prazeres, discursava em favor de ajudar os cidadãos daquela Vila seja no âmbito material ou espiritual. Este também se interessava pelo poder representativo sobre os índios, por isso empenhava-se em retirar os Maytapus das brenhas das matas e trazê-los para a margem do Rio Tapajós (a chamada política de Aldeamento).

Essa era a Pinhel de meados da década de 1830, onde a convivência cotidiana era dividida entre índios, tapuios (em sua maior parte confundidos com índios) e brasileiros adotivos (portugueses). Quando estoura as revoltas de Muaná, Cametá e Monte Alegre, as autoridades de Pinhel (assim como das demais Vilas) se esforçam para suplantar tais informações, e evitar que o clima de “rusgas” e rebelião chegassem as Vilas do Baixo tapajós e desorganizasse a estrutura política vigente, como se evidencia no Oficio do Juiz Ordinário da Vila de Pinhel José Guedes Aranha para a Câmara Municipal de Santarém:

Ficou mais ou menos claro para as autoridades municipais da região que a revolução era produto dos embates que já balançavam a populosa região do baixo Tocantins (Acará, remediações de Belém), o que inspirava extrema cautela, dada a numerosa população indígena e mestiça que estava descontente com os muros da independência, estando pronta para engrossar as fileiras rebeldes. Nesse sentido, notícias oriundas da região do Tocantins adentravam o espaço público das vilas e lugares, gerando inúmeras expectativas dos setores marginais do médio Amazonas, como bem pode se ver nas atitudes de dois desertores presos em Pinhel, João José e Boaventura dos Santos, que diziam que “todas as palavras das autoridades eram falsas e que já sabiam que Cametá havia se levantado”

159.

158 APEP. Códice 854. Documento 77.

159 Oficio do Juiz Ordinário da Vila de Pinhel José Guedes Aranha para a Câmara Municipal de

Santarém, datado em 12/08/1824. In: APEP. Códice 783: Correspondências de Diversos com o Governo.

No ofício (acima citado) do Juiz Ordinário da Vila de Pinhel José Guedes Aranha para a Câmara Municipal de Santarém, o mesmo narra que parecia ser inevitável esconder as informações de revoltas e insurreições na região tocantina da província do Grão-Pará. Nas falas dos presos de Pinhel (João e Boaventura), os mesmos afirmavam que já sabiam que o levante de subversão de Cametá já havia se instaurado, e de igual modo, as autoridades militares mentiam e omitiam os fatos desta revolta, como estratégia algoz para a delação de correligionários.

Aos poucos, os revoltosos e insurgentes do Baixo Tapajós de diversificadas Vilas e freguesias passam a trocar comunicações e a criar uma rede de sedição, disposta a cooperar com um movimento patriótico de revolta no intuito de ressignificar suas perspectivas de vida sócio-política. Dessa forma, ações revolucionárias na Vila de Alter do Chão, por exemplo, passaram a mobilizar grande parte das vilas situadas ao longo do rio Tapajós, onde estavam reunidos às Vilas de Boim, Pinhel, e Aveiro, além de terem o reforço de uma tropa de índios Mundurucus

160.

Por fazer parte da microrregião do Rio Tapajós, sendo um de seus três distritos ao lado de Santarém e Alter-do-Chão, a população de Pinhel no início da década de 1830, era de 865 indivíduos livres e 16 escravos. Nas palavras de Baena (1839, 328-329):

As casas desta gente são todas telhadas com folhagens e todas uns mesquinhos obstáculos. A lavoura foi destacada como a principal atividade produtiva, porém a produção era reduzida, devido ao fato de sua população supostamente se recusar a produzir excedentes. Estão formalmente submetidas à jurisdição de Pinhel: Aveiro, Itaituba e Santa Cruz.

Os relatos de combates em Pinhel só começam a aparecer em finais de 1836, provavelmente, ao final da pacificação de Belém e final do processo de derrocada de Cuipiranga. Os cabanos dos pontos aos arredores de Cuipiranga teriam migrado em direção ao Oeste, e provavelmente chegaram a Pinhel.

Segundo o antropólogo Florêncio Vaz em entrevista ao Jornal Gazeta, edição especial da Cabanagem (2009, p.10):

160 Ofício do Juiz Ordinário de Alter do Chão para a Câmara Municipal da Vila de Santarém, datado

Só no Baixo Tapajós, além de Cuipiranga, Pinhel, [hoje distrito] no município de Aveiro, foi outro foco de muita resistência. Bem povoada e desenvolvida economicamente, a Vila era localizada estrategicamente sobre uma alta ribanceira de onde se viam longe as embarcações que se aproximavam. Os movimentos cabanos em Pinhel teriam ocorrido por uma revolta inicial dos nativos liderados por Zé Duarte, mataram os comerciantes portugueses e se apoderaram de suas casas e negócios.

[...] Ali deve ter sido um ponto de entrada de uma conhecida trilha que cortava a floresta em direção a oeste, no rumo da aldeia de Luzéa (hoje cidade de Maués, no Amazonas), habitada pelos Mawé, onde os cabanos tinham outro bem guarnecido quartel. Luzéa foi a última cidadela dos rebeldes a se render, em 1840. Anteriormente um grupo de Mawé fora descido para a antiga missão de São José de Maytapus (hoje Pinhel). A partir do relato de Vaz, inferimos que as lutas cabanas em Pinhel se deram pelo sentimento de antilusitanismo, ódio aos portugueses mesmo. Os índios, como já mencionado no capítulo 2 desta dissertação, sabiam que eram considerados cidadãos e por isso não suportavam serem confundidos com os tapuios (que eram explorados nos trabalhos servis e braçais), nem tampouco serem forçados a exercerem trabalho compulsório.

As bandeiras de lutas levantadas por Zé Duarte era de morte aos portugueses, e em contrapartida a conquista de terras e acesso ao usufruto das mesmas. Para conseguirem derrotar o inimigo luso, os cabanos de Pinhel adotaram táticas de guerrilha moderna na Vila. Segundo D. Liloca apud Vaz (2009, p.10), “fizeram trincheiras cavadas com 20 metros de fundo. Botaram aqueles estrepes de paxiuba. Quando os portugueses viessem, eles ficavam espetados lá. Nesse tempo era tudo cheio de trincheira” (sic).

O depoimento de D. Liloca narrado por Vaz (2009), encontra auxílio e defesa na tese de Harris. Em entrevista ao Jornal Gazeta (2009, p. 14), o antropólogo escocês afirma:

Encontrei indícios de trincheiras defensivas em Pinhel. Havia vários tipos delas por lá. Uma delas era um grande fosso arredondado de cerca de vinte metros de diâmetro. Muito provavelmente serviu de armadilha, com algum tipo de camuflagem como cobertura e grandes estacas pontiagudas na base. Havia também pequenas valas, talvez usadas pelas pessoas para defender suas posições e rechaçar algum eventual ataque [...].

Não encontrei o mesmo tipo de indícios fora de Pinhel. É preciso deixar claro, no entanto, que tenho apenas a palavra dos moradores da região de que esses vestígios encontrados são da época da Cabanagem. Mas considerando o fato de não ter ocorrido nenhum outro conflito ou rebelião (que seja documentado), parece provável que as trincheiras sejam mesmo dos anos 1830. Documentos históricos em Belém descrevem a organização defensiva dos rebeldes, que inclui trincheiras em Santarém cobertas com peles de animais e esteiras, entre outros. Até aqui não encontrei registros

oficiais nenhum outro local que teria tido defesas, com exceção de Ecuipiranga, que tinha um forte. Mas considerando-se a existência de trincheiras em Pinhel, parece provável supor que a maioria dos agrupamentos rebeldes tenha tido algum tipo de defesa. Afinal, trincheiras já eram usadas comumente nos mocambos, como proteção.

Tais noções defendidas por Vaz (2009) e Harris (2009) nos levam a crer que as trincheiras estavam presentes no cotidiano dos patriotas de Pinhel. Em viagem expedicionária pela Caravana da Memória Cabana no Baixo Tapajós, vislumbramos essas “possíveis trincheiras”, e, embora a historiografia não dê conta de documentar isto, deixamos aqui registrado essa tática de guerrilha moderna, que ao que tudo indica foi utilizada pelos cabanos de Pinhel.

A título de contribuição, esta foto acima foi tirada com um ator social, na intenção de dimensionar o tamanho da “trincheira”, que conforme Harris afirma, e aqui nós ratificamos, tem um diâmetro de 20 m. Além das trincheiras, D. Oneide Cardoso afirma que na época da Cabanagem, “os cabanos ensinavam as pessoas a usarem os buracos, as tocas de „tatu-açu‟ para se abrigarem das balas de canhão”.

No cerne desta questão, pedimos auxílio em Pinsk (2006. p. 24-25), o qual afirma que:

O historiador, como qualquer cientista, trabalha com evidências e suposições. [...] Se não se arrisca a lançar hipóteses a partir de suposições, corre o risco de repetir o já conhecido, reafirmar o óbvio, [...] Se, por outro lado, abandona as evidências e se permite “delirar” à vontade, pode criar uma interessante obra de ficção [...], comprometida apenas com a imaginação criadora do autor.

Diante do pensamento de Pinsk, convém afirmar que essas informações acerca das trincheiras que se fazem presentes somente nos lapsos da memória coletiva da então comunidade de Pinhel, longe de tentarem restituir o real, são antes uma forma de representação de parte do real, haja vista que todo fato histórico assim como seus vestígios apresentam lapsos de “verdades” e “inverdades”. Cabe, pois, ao historiador, no universo de seu arcabouço metodológico, legitimá-las ou não. Diante disto, não nos propomos aqui a dar o veredito de “resfactue”, nem tampouco esnobar tal registro da memória coletiva, deixemos que o tempo histórico se encarregue de referendar ou não.

Por volta da década final do século XVIII, o diretório vivia os seus últimos momentos do ponto de vista da administração metropolitana. Muito diretores estavam sequestrando a produção comunal para seu próprio benefício. Índios estavam em controle de várias vilas, como Vila Franca, Alter do Chão no Baixo Amazonas, e outros no Marajó 161.

Desde o final do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, Vila Franca experimentou o seu apogeu econômico sob liderança dos índios. Nas décadas de 20 a 30, influenciados pelo Vintismo, a Vila passa a ser coadministrada por brasileiros

161 Cf. SOMMER, Barbara. Cupido na Amazônia: amor e moralidade em finais do século XVIII no

Pará. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (Org.). De Cabral a Pedro I: aspectos da colonização Portuguesa no Brasil. Porto: Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 2001. p. 131-141.

adotivos e natos de cunho liberal. Se por um lado Pinhel ficou conhecida como o local de maior resistência no Baixo Tapajós depois de Cuipiranga, a Vila Franca ficou registrada na história como o maior ponto estratégico tanto para tropas cabanas como anticabanas.

Vila Franca, situada nas proximidades da foz do rio Tapajós no rio Amazonas, a oeste de Santarém, foi criada em 1758. Antes era aldeia Cumaru. Sua população foi arrolada em 2736 brancos, índios e mestiços e 152 escravos. Destacava-se pelo cultivo de maniva a cacau, há também alguns proprietários de pequenas fazendas de criação. Havia um pesqueiro, descrito como lucrativo e também um Cacoal, plantado nos limites com Óbidos. A Igreja, a casa de câmara, e a cadeia eram as únicas edificações telhadas do distrito. (BAENA 1839, p. 302-303, grifo nosso).

Vila Franca situa-se na confluência entre os rios Tapajós e Arapiuns, e da altura de seus elevados barrancos consegue-se visualizar sem nenhuma dificuldade, os navios e embarcações que pelo Amazonas dá sinal no horizonte. Como narrou Baena (1839) as únicas edificações telhadas na Vila eram a Igreja, a Casa da Câmara e a cadeia.

A Igreja hoje encontram-se em processo de deterioração, a espera de pesquisadores do IPHAN e restauradores para diagnosticar a construção do século XIX, está servindo de abrigo para morcegos e um suposto “canhão” que os moradores afirmam ser da época da Cabanagem 162.

Vila Franca já foi uma das mais se não a mais importante Vila do Baixo Tapajós. Chegou a ter o título equivalente a município, contendo senado da câmara, uma igreja de proporções pomposas para a época, além de ruas relativamente bem traçadas.

O declínio de Vila Franca ocorre paralelo à ascensão de Santarém. Após o tempo da Cabanagem, Vila Franca retroage político-economicamente e a Vila dos Tapajó experimenta seu paulatino crescimento. À medida que Santarém é elevada a categoria de freguesia, depois Vila e posteriormente Município, em tempos pós- cabanagem, Franca regressa à categoria de Vila, depois freguesia, depois distrito, até se tornar uma comunidade – sobrando de sua época de Vila, somente a alcunha a seu nome “Vila Franca”.

No entanto, ficam os seguintes questionamento. Porque teria ocorrido este retrocesso político-econômico com Vila Franca? Quais as consequências que os tempos de contestação na Cabanagem impuseram a esta Vila?

Em Vila Franca, na época da Cabanagem, os moradores afirmam que a Santa de ouro [N.ª Sra. Da Assunção] foi enterrada para não ser saqueada pelos cabanos. Ao final da Guerra, os moradores cavaram o local e nada encontraram. Os moradores de Vila Franca relacionam o retrocesso da Vila ao desaparecimento da Santa, pois a partir daí a Franca passou a regredir perdendo seu mérito de Vila e se tornando hoje apenas uma comunidade de Santarém 163.

Ao final da derrocada de Cuipiranga, os cabanos cuipiranguenses invadem Vila Franca e tentam se estabilizar naquele lugar. No entanto, não tardou as tropas repressoras a desembarcarem na Vila de morros altos.

Houve pelas ruas espessas de Vila Franca súbitos combates entre cabanos e tropas anticabanas. Depois os cabanos evadiram-se do local, migrando para Boim,

162 Discussão retomada e ampliada no subitem 3.4, nas páginas 208, 214.

163 Ver os depoimentos e discussões entorno dos relatos de Enoque Arapiun e Benvinda da Silva no

no entanto, deixaram como que registro de sua passagem por Vila Franca um mini- canhão de guerra a porta da Igreja - provavelmente o canhão foi saqueado do quartel militar de Santarém.

Após a retirada dos cabanos de Franca, a Vila foi retomada pelas tropas militares provincianas que fizeram de Vila Franca seu quartel general. Em Vila Franca, foi reativada a cadeia pública da época das Missões religiosas, e a mesma passou a servir para prender momentaneamente os revoltosos do Baixo Tapajós, até ocorrer seu translado para o quartel de Santarém 164.

Vila Franca funcionou como um verdadeiro Ponto anticabano. De Óbidos e do Alto Amazonas, o Pe. Sanchez de Brito e o capitão Ambrósio Pedro Aires aportavam em Vila Franca como um quartel general, faziam reparos nas embarcações, de lá visualizavam as movimentações no Cuipiranga do Tapajós, partiam para as incursões e traziam presos rebeldes para Vila Franca.

3.3. Cuipiranga: o reduto de resistência e das esperanças das “hidras