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O cenário estava pronto. O horário da reunião estava definido e o local reservado. Convites emitidos, emails enviados, confirmações garantidas. Bastava agora que eu, pesquisadora interessada, também garantisse a minha entrada naquele espaço e conseguisse o meu “passaporte” para observar as reuniões e registrar o que lá acontecia.

Em primeiro lugar, é importante esclarecer que a escolha do lugar onde a pesquisa e a observação seriam feitas – nos conselhos comunitários de segurança – partiu de um investimento profissional feito em 2008, a partir de uma consultoria de pesquisa sobre tais instituições feita para a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Antes disso, quando ainda residia no Rio de Janeiro43, já havia tido outras experiências profissionais no tema. Especialmente com relação dos conselhos comunitários de segurança, havia trabalhado44 na elaboração e na implementação de planos municipais de segurança pública em municípios no estado do Rio de Janeiro, onde o desenvolvimento de conselhos comunitários de segurança fazia parte deste trabalho. Além disso, havia tido contato com muitos atores que participavam dos conselhos comunitários de segurança do Rio num curso oferecido pelo Instituto de Segurança Pública, com recursos do governo federal, para os membros dos conselhos, em 2007, onde atuei como professora da disciplina “As competências do Estado na segurança pública”.

Cabia agora escolher quais conselhos observar. Havia decidido previamente que tentaria desenvolver um estudo comparado, e escolhi o conselho comunitário de segurança de Brasília como um dos lugares a conhecer mais de perto. Recém-chegada à cidade, tinha diante de mim cenários ainda

43 Em janeiro de 2009, após ser aprovada em concurso para o Ministério da Justiça, passei a trabalhar como

servidora da Secretaria Nacional de Segurança Pública e mudei meu local de residência para Brasília.

44 Como antes informado em nota, entre os anos de 2002 a 2008 trabalhei em projetos desenvolvidos na área da

segurança pública na ONG Viva Rio. Lá, coordenei um curso para praças da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro durante 4 anos e desenvolvi diagnósticos e planos municipais de segurança para vários municípios do estado (Resende, Barra Mansa, Quatis, Niterói). Nos anos de 2006 e 2007 atuei na implementação do Plano Municipal de Prevenção à Violência da Cidade de Barra Mansa, auxiliando na execução das ações previstas no plano. Na realidade, a inserção profissional neste campo data de 1999, quando passo a integrar a equipe da Central Disque-Denúncia e lá permanecendo por 3 anos.

105 “desconhecidos” e desafio de compreendê-los no contexto da capital federal. O segundo conselho a estudar seria necessariamente no Rio de Janeiro, onde já acumulava experiência e contatos, mas restava decidir qual o local do estado seria mais adequado para atender os objetivos desta pesquisa, cujo objeto ainda estava em construção.

Depois de assistir, no final do ano de 2009, a um seminário oferecido pelo ISP em parceria com a SENASP para “lideranças comunitárias” e membros dos conselhos comunitários de segurança, aceitei o convite do presidente do conselho comunitário de segurança de Duque de Caxias para visitar a sua reunião no mês seguinte. Havia explicado que estava desenvolvendo uma pesquisa de doutorado sobre o tema, meu interesse no assunto e que estava visitando alguns conselhos no Rio de Janeiro por conta disso. Não omiti a informação de que trabalhava na SENASP45, mas expliquei que minha participação ali não era “a serviço” do governo federal. Achei que dizer aquilo pudesse fazer alguma diferença.

Era uma manhã de quarta-feira e havia me deslocado para Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense (RJ), a convite do presidente do conselho comunitário de segurança pública. Ao chegar, aproximadamente às 10h30, a reunião havia acabado de começar. Ela estava sendo realizada na quadra de esportes de uma escola (CIEP) à beira da Via Dutra. Contava com uma grande mesa (que entendi logo em seguida que seria a mesa de “autoridades”), coberta com várias toalhas brancas, cuidadosamente decoradas com vasos de flores e com copos de água à disposição dos que ocupavam seus lugares. Como estávamos numa quadra de esportes, assim que cheguei percebi que a mesa fora colocada de frente para uma pequena arquibancada, que na ocasião estava tomada de alunos, que foram dispensados da aula para assistir à reunião. Ao lado esquerdo da mesa, havia cerca de 20 cadeiras, ocupadas por moradores, pais de alunos e comerciantes da região que atenderam ao convite da diretora da escola em participar da reunião do conselho comunitário de segurança que lá ocorreria naquela manhã. Como a reunião já havia começado, sentei numa dessas cadeiras, logo atrás, abri meu “caderno de

45 Na SENASP, trabalhei em 2009 na Coordenação Executiva da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública e,

em 2010, atuei como Coordenadora Geral de Pesquisa e Análise da Informação da SENASP. Hoje integro a mesma equipe, mas não mais na função de coordenadora geral.

106 campo” e antes que pudesse iniciar minhas anotações sobre a “dinâmica” da reunião e descrever o que se passava ali, fui anunciada (!) e chamada, pelo microfone (!!) (a reunião também estava sendo gravada em vídeo) pelo presidente do conselho comunitário de segurança pública para sentar-me à mesa, ao seu lado. Seguido ao convite, o mesmo fez questão de anunciar-me não como pesquisadora da universidade, mas como representante do Ministério da Justiça, “obviamente presente na reunião para ajudar o conselho a levar suas demandas ao Governo Federal”. Em suas palavras: “Contamos com a presença da nossa representante de Brasília para nos ajudar... Gostaria de fazer uso da palavra?” Constrangida e “surpresa”, agradeci e recusei.46

Passei o restante da reunião em silêncio e sentada ao seu lado, que, vale dizer, situava-se no centro da mesa, que era composta por aproximadamente 25 “autoridades” locais, dentre elas o comandante do batalhão de Polícia Militar, o delegado de Polícia Civil, os secretários municipais da cidade, representantes comerciais ou de entidades de classe, a diretora da escolha – anfitriã do encontro e o presidente do Instituto de Segurança Pública, sentado ao meu lado. Para o presidente do conselho, a presença de figuras tão “ilustres” representara certamente objeto de prestígio e indicador de legitimidade daquele espaço. Também entendi isso logo depois.

Estava ciente de que o fato de trabalhar no Ministério da Justiça, mas exatamente na SENASP, não passaria em branco no momento da minha “entrada no campo”. Dei-me conta de que meu engajamento profissional num campo que decidi me debruçar academicamente era sim uma questão importante e influenciaria na forma como me apresentaria e como seria recebida pelos meus “interlocutores” privilegiados. Episódios como o relatado acima são comuns em muitas pesquisas de campo, uma vez que o espaço de pesquisa é um campo de negociação de verdades, de afirmação de poder e prestígio, de implicações morais, éticas e de “fabricação” de alteridades como é próprio das interações sociais.

107 O conselho comunitário de segurança visitado não foi, por outras questões, o escolhido para servir de comparação ao escolhido no DF. No entanto, percebi que durante a pesquisa seria necessário refletir sobre o processo de pesquisar e interagir com um “outro” nem tão exótico, nem tão familiar, assim como refletir sobre a autoridade e as hierarquias que estão em jogo de parte a parte, a do pesquisador e a do pesquisado (Clifford, 2002). A escolha do tema não era isenta assim como não era isenta minha identidade no campo. Entendi ao longo da pesquisa que este capital social e simbólico seria um recurso utilizado e manipulado durante o trabalho de campo tanto por mim quanto por meus interlocutores. Isso evidencia a dimensão política deste “encontro antropológico”, onde a aceitação, o reconhecimento, as tensões e a legitimação entre os atores fazem parte.

A discussão sobre a natureza política da escolha de um objeto de estudo, das relações “sujeito-objeto”, suas implicações e constrangimentos durante a realização da pesquisa foi (e continua sendo) objeto de discussão na antropologia.47 Sobre este assunto, Umberto Eco, em seu livro “Como se faz uma tese”, faz uma recomendação:

Ora, estando mergulhado numa experiência político-social que lhe permite entrever a possibilidade de fazer um discurso conclusivo, seria bom que ele [o pesquisador] se colocasse o problema de como abordar cientificamente sua experiência.

[Eco, 2009, p. 25. Grifo meu]

Durante o trabalho de campo, fui questionada sobre a utilidade deste estudo pelos meus interlocutores “ele vai servir para quê?”, de qual seria a sua aplicabilidade no contexto dos conselhos e se fazia parte do meu trabalho elaborar uma espécie de “‘manual de funcionamento” dos conselhos, como se a mim coubesse a tarefa de dizer como estes deveriam se estruturar e funcionar48.

47 Sobre as relações entre sujeito-objeto na antropologia ver Levi Strauss (1962), DaMatta (1978), Clifford (2002),

Geertz (2002), Footwhite (2005). Sobre as implicações da escolha de objetos de pesquisa “próximos”, ver Peirano (2006) e Magnani (2002).

48 Durante o trabalho de campo, recebi mais de uma vez o convite para falar num seminário cujo publico alvo eram

os presidentes de conselhos de segurança pública. O convite partira da Diretoria de Assuntos Comunitários (DIAC), responsável, como veremos a seguir, pela ‘coordenação’ do funcionamento dos Conselhos Comunitários de Segurança Pública do Distrito Federal. Recebi o convite com certa preocupação, mas não o recusei. No entanto, o seminário acabou não ocorrendo.

108 Assim, minha identidade e trajetória como antropóloga, pesquisadora e interlocutora profissionalmente “comprometida” com este objeto de estudo, assim como minha experiência como “sujeito” dentre outros sujeitos ora próximos, ora distantes, são questões que se colocam nesta pesquisa e situam o meu lugar de pesquisadora sobre um tema que é bastante próximo e que, por vezes implica em “estar lá” e “estar aqui” simultaneamente. Entre o “lá” e o “aqui” me relaciono com os interlocutores interessados neste tema, ora pesquisados, ora colegas de trabalho, e é essa identidade que me concede os “passaportes”, as chancelas e os privilégios para a entrada no campo.

Decidi observar as reuniões do conselho comunitário de segurança do “Leblon” (na realidade, da 23ª AISP), em princípio, pelas semelhanças entre as características sócio-econômicas desta região e as de Brasília. Posteriormente, compreendi que eram os contextos das práticas observadas durante as reuniões dos respectivos conselhos e os discursos que nestes eram propagados, e não as regiões onde eles estavam localizados, o ponto central da pesquisa. Após observar algumas reuniões do conselho comunitário de segurança da 23ª AISP entre os meses de novembro de 2009 e fevereiro de 2010, telefonei para o presidente do conselho às vésperas da realização da reunião seguinte (em abril) para explicar minhas pretensões e interesse. Esta estratégia também foi utilizada em Brasília, mas com um diferencial: marquei uma entrevista com o presidente do conselho comunitário de segurança de Brasília antes mesmo de observar qualquer reunião. Na conversa, expliquei o objetivo da pesquisa, fiz várias perguntas, pedi documentos e acabei fazendo do presidente do conselho uma espécie de DOC (Foot Whyte, 2005), ou seja, interlocutor mais do que privilegiado ao longo da pesquisa.

Minha autorização para realizar o trabalho e minha identidade no campo foi apresentada publicamente por ambos durante algumas reuniões. No Leblon, foi o comandante do BPM, que eu já conhecia por conta de trabalhos anteriores com a Polícia Militar do Rio de Janeiro e o Viva Rio, que fez questão de endossar a minha apresentação feita em voz alta pelo presidente do conselho comunitário no início de uma das reuniões como “pesquisadora que veio de Brasília para fazer um trabalho sobre o conselho comunitário de segurança da 23ª AISP”, dizendo que eu “era uma pessoa que tinha muito conhecimento

109 sobre a polícia” (!), explicitando e marcando compulsoriamente, a partir dali, o que seria meu comprometimento “no” e “por” aquele espaço.

Em Brasília, fui apresentada também durante as reuniões, dessa vez como antropóloga que estava fazendo minha tese de doutorado sobre os conselhos comunitários de segurança. Evidentemente tal anúncio nunca era feito de forma isolada. Em alguns momentos das reuniões, como veremos na parte II deste trabalho, os presidentes dos conselhos anunciam a presença de pessoas “ilustres” presentes na reunião e sentada à “plateia”, forma de demonstrar o prestígio e a consideração dada ao conselho. A partir dali deixava de ser uma pessoa desconhecida àquele contexto, sendo identificada e classificada no desenho hierárquico daquele espaço.

Já estamos ultrapassando o tempo das autoridades. Eu quero anunciar a presença aqui do Coronel (...), membro do Conselho de Preservação de Brasília, criado pelo Dr. (...) que foi presidente da Telebrasília, que instalou a comunicação telefônica aqui no Distrito Federal; também Luciane Patrício, antropóloga, que está há três anos acompanhando o trabalho do conselho comunitário de segurança para fazer uma tese de doutorado na Universidade Fluminense. O Coronel Sobrinho, nosso querido amigo, ex-SUPROC, que deixou sua marca indelével e ainda ocupa uma função muito importante na Polícia Militar. Quero agradecer nessa oportunidade à Celeste e também ao (...) administrador.

[Fala do presidente do CONSEG de Brasília durante a reunião realizada em fevereiro de 2011]

Muito bem, então eu queria passar a palavra, antes de tudo, para o nosso anfitrião, que é o comandante do nosso batalhão... geralmente nossas reuniões são todas realizadas aqui... porém antes, eu queria registrar a presença de três pessoas aqui que são muito caras para todos nós... A primeira delas é a uma senhora chamada Luciane, que inclusive está presente aqui sempre observando e anotando... jornalista... (sic) está inclusive, o nosso conselho foi motivo de defesa de tese! Incrível! O nosso conselho foi escolhido como defesa de tese. Para estudo, para matéria jornalística. Isso é muito gratificante para todos nós e mostra que nós estamos num bom caminho!

[Fala do presidente do CCS da 23ª AISP no início da reunião do conselho realizada em outubro de 2010]

Minha apresentação como “jornalista”, sempre “observando e anotando”, e que em breve seria motivo de “matéria jornalística” ao mesmo tempo em que me apresentava aos participantes daquele espaço, representava uma das formas usadas de emprestar prestígio e consideração ao conselho, semelhante ao anúncio da presença de outras figuras “ilustres” na reunião, como representantes de associações comunitárias, assessores parlamentares e

110 jornalistas de plantão sentados na “plateia”. A regra da reciprocidade é “dar, receber e retribuir” (Mauss, 2003). A mim foi concedido o “passaporte” de frequentar as reuniões com regularidade, anotar e registrar os discursos dos seus participantes e gravar (sim, com o gravador) as reuniões, imortalizando de alguma forma as palavras circuladas durante o tempo do encontro. Depositava- se em mim uma expectativa sobre o que eu iria falar sobre o conselho e um registro respeitoso poderia ser a contrapartida para dar em troca.

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Parte II – As reuniões do Conselho Comunitário de Segurança da 23ª AISP