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Vivemos momentos de crise. Crise econômica, crise de identidade, valores, interpretação teórica entre outras. Estes momentos são marcados pela gestação do novo e vários são os esforços de compreensão, até mesmo por falta de referência, em torno do que é ou não estabelecido como norma social. Dentro deste contexto disputam as teorias, a capacidade explicativa das novas ocorrências e isto quase sempre acontecem numa tentativa de homogenização, de criar formas de entendimento que dêem conta do “geral”. Se os momentos de crise são privilegiados pelo aparecimento das diferenças, das experiências de lutas múltiplas em diversos “lugares sociais” qualquer tentativa unificadora que não incorpore a riqueza dessas experiências incorre no risco de perder a perspectiva da diversidade.

Os Movimentos Sociais aparecem no espaço urbano como reveladores da diversidade, evidenciando sujeitos distintos em práticas bastante diferenciadas. As tentativas de criar quadros explicativos dos movimentos, de delinear sua identidade, partem da perspectiva da identidade como representando um ser-social, genérico e como são percebidas a partir de uma ótica isolacionista, não as concebendo como relação, perde-se de vista os agentes que a criam e recriam.

Como os Movimentos Sociais Urbanos têm como interlocutor privilegiado o Estado, pois suas reivindicações quase sempre são direcionadas a esta Entidade, não podemos entender a identidade política dos MSU’s sem levar em conta as dimensões que assume essa relação.

A relação entre Estado e MSU’s vai concretizando-se a partir do alargamento enquanto campo de expressão e de lutas coletivas. Enquanto os Movimentos Sociais inscreviam-se no plano “privado”, enquanto o político representava o estreito domínio das lutas institucionais, a mediação entre Estado e Movimentos ocorria por detrás dos bastidores, pois os dois situavam-

se em campos (aparentemente) cindidos: o “privado” e o “público”. O político é o campo de inter-AÇÃO, o campo produtor de novos códigos de comunicAÇÃO, e o campo de mediação entre público e privado. A partir da erupção dos Movimentos Sociais assistimos a uma ampla politização da “sociedade civil”. A política deixou de ser exclusiva dos parlamentos, das instâncias institucionais de representação e adentrou espaços antes considerados de exercício privado. É uma sociedade em movimento, em ebulição, reeditando a política não apenas fora da “política”, como também exigindo a mesma um novo conteúdo, imprimindo novas formas no “fazer política” e constituindo novas identidades políticas.

CARDOSO (1982:3), num texto sobre Poulantzas, comenta sobre o risco de uma visão baseada no “pan-politicismo do social”, ou seja, numa perspectiva de uma inflação do político no social, e uma deflação do estado. Há nesta perspectiva uma tendência a supervalorizar os “novos movimentos sociais” como instauradores de uma nova política, subestimando, ou mesmo não considerando a ação do Estado.

É comum, em contraposição a este veio analítico, encontrarmos, tanto na direita como na esquerda ortodoxa, uma visão do Estado como bloco monolítico, supremo representante e comitê dos interesses da burguesia; ou mesmo um Estado excludente: excluindo a “sociedade”. Esta perspectiva analítica, embora supervalorize o Estado, o empobrece, no sentido de que não consegue percebê-lo também em movimento, implementando ações no seio da sociedade civil. Como esta visão de Estado não segue umas perspectivas dinâmicas, no que se refere a considerar um único e mesmo lugar por ele “ocupado”, não poderia mesmo percebê-lo em suas múltiplas faces. Neste sentido equivale dizer que o Estado é sempre o mesmo, apregado em seus interesses de classe, podendo aqui e ali atender a outros interesses, com o objetivo apenas de legitimar-se enquanto “locus” de poder.

A luta política que se travaria “contra” este Estado, acima da “sociedade”, ocorreria a partir de uma derrubada “de fora”, como se estivesse localizado em um ponto estratégico; e ocorreria ainda de forma ineficaz, por

supô-lo como inimigo encastelado em território próprio, excluindo os demais visitantes.

O Estado aparece ou de forma diluída no campo do político, ou de forma cristalizada na representação dos interesses da classe dominante, e desta forma obscurecido enquanto instância de análise.

O Estado, a partir da “expansão” do político, e da sua presença visível no “social”, também amplia suas fronteiras de atuação, desdobrando-se em múltiplas ações estatais.

Existem versões diferenciadas a respeito da “politização do social”, de acordo com Poulantzas:

“A condição, sempre de não de perder de vista os limites da extensão atual do Estado... que colocam igualmente fronteiras a esta politização do social. Limites estes que, ao que parece, perderam Ingrao, quando parece entender por politização uma ‘inclusão’ exaustiva, possível, ás vezes desejável, do social privado no Estado-síntese da política. Althusser, que critica Ingrao por esta concepção da politização do social, considerando-a como uma ‘politização burguesa’ (o político), mantendo ele próprio a possibilidade de uma outra política, proletária neste caso, mas situada radicalmente “fora” do Estado (a política num fantasmagórico lugar inexistente)”.

(Cf CARDOSO, 1982:4)

Para Poulantzas, como aponta CARDOSO (1982), nos dois casos assinalados dá-se um pan-politicismo generalizado, pois tanto ocorre a politização exaustiva do social no interior do Estado, como a politização proletária fora do Estado. As discussões a respeito dos Movimentos Sociais, de uma forma geral, são “costuradas” internamente a partir das versões sobre a relação Estado/ sociedade destacadas por Poulantzas, nos seguintes termos:

- Os movimentos Sociais representam esforços de politização que ocorrem no seio da sociedade civil, inaugurando novos espaços fora do campo

tradicional/institucional da política.

(EVERS, 1984; TELES, 1982; DOIMO, 1986).

- Os Movimentos Sociais refletem as contradições urbanas do capitalismo monopolista e representam

mais uma prática no território próprio das lutas

políticas, ocorridas no interior do Estado.

(CASTELLS, 1976; BORJA, 1977; LOJKINE, 1985). Dentro da primeira perspectiva há a indicação da “sociedade civil” como espaço “privado”, espaço isolado da “política” e situado “fora” do Estado. E na segunda percepção, há uma consideração do Estado como organismo onipresente, ocupando e representando todo o campo da política. O que fica difícil perceber é a ambigüidade presente nesta relação entre Estado e sociedade; como afirma O’DONNELL (1988:83), existe uma cisão que é aparente entre o Estado e a sociedade e que tem fundamento real na diferenciação de um terceiro sujeito social, que são as ações estatais. Esta

cisão supõe a sociedade civil como as partes privadas e as instituições estatais como a encarnação do público. Devemos acentuar que a cisão entre público e privado é mera fantasmagoria e ainda que não é possível apenas através “do público” entender a dinâmica das relações sociais.

Muitas percepções ambíguas podem ocorrer por ser o discurso do Estado, e esta é sua própria razão de ser no capitalismo, globalizante e unificador, colocando-se como canal legítimo da representação do interesse de todos, destacando-se no âmbito privado, pois coloca-se como a entidade que representa a sociedade. Esta aparência de exterioridade do Estado fundamenta-se no mascaramento da dominação, por outro lado, e ao mesmo tempo, ao precisar agir no campo da coação, explicita a diferenciação entre

Estado e sociedade; o que ocasiona uma tensão permanente entre as duas versões, na tentativa do estado em administrar tais contradições.

Ao situarem-se inicialmente os Movimentos Sociais em espaços não reconhecidos pelo Estado como legítimos enquanto prática política, fica visível que o político (Estado) não está fora da sociedade mas a integra e a compõe. Há a partir da “politização do social”, ou melhor, a partir da explicitação e do desocultamento do “social” como espaço “público” ocorre uma articulação mais direta entre Estado e Sociedade, incluindo os Movimentos Sociais.

A partir desta articulação proliferam-se as ações estatais nos bairros populares e são criados canais institucionalizados para “facilitar” a mediação entre Estado e movimentos; ao nível do Estado são criados também novos órgãos, novas atribuições e novas metodologias de ação.

Em Fortaleza, esta relação mais direta entre Estado e Movimentos Sociais pode ser apreciada através do discurso de Tasso Jereissati:

“Pretende-se contribuir para o fortalecimento da sociedade civil, através do estímulo a práticas comunitárias das Associações, Conselhos, movimentos Populares e Federação de Moradores; respeitando-se sua autonomia e liberdade de ação. Compreende-se que ao Estado não cabe tutelar, suprimir ou substituir a organização da sociedade, mas unicamente estabelecer uma prática democrática de relacionamento, criando, para isso, mecanismos institucionais que a viabilizem”. (GOVERNO TASSO JEREISSATE – Plano de Mudanças, 1987 – 1991, p.89).

No momento em que as ações estatais propõem-se a “criar” associações de moradores, a “organizar” moradores fica transparente que de alguma forma este interesse visa à “organização” dentro dos moldes do Estado. Quanto a esta questão, o próprio Plano de Mudanças acima referido esclarece:

“Ao mesmo tempo, o Governo atuará no sentido de estimular a emergência, o fortalecimento e a consolidação de forças políticas novas, afinadas e

comprometidas com os princípios e diretrizes que

norteiam a ação governamental”.

(p.35, grifos da autora).

Assim como os “novos Movimentos Sociais” ousam no sentido de politizar os “espaços privados”, o Estado expande suas fronteiras, ou melhor, deixa mais visível, através de ações estatais nos bairros, mediadas por canais institucionais, seus contornos estatais. Isto porque o estado nunca esteve separado dos “domínios privados”, é que nos momentos em que os movimentos ganham voz na esfera pública, não apenas intensificam-se as políticas estatais nas “esferas privadas” como iluminam-se cruzamentos anteriormente estabelecidos.

Dentro do Bairro do Lagamar, como observamos nas análises subseqüentes, a relação entre Estado e Movimentos Sociais é mais ou menos direta, assumindo faces diferenciadas, em conjunturas diversas, como também entre organizações diferenciadas no Bairro, dentro de um mesmo momento específico. Cada face particular desta relação gesta identidades políticas diferenciadas. Esta “identidade política” reflete a qualidade que cada ator dentro do movimento de bairros imprime à relação.

No próximo segmento analisaremos as várias relações que se consubstanciam entre Estado e os movimentos de bairros no Lagamar.

ESTADO E MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS: