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e a escuridão da noite

encobriu com rápidas

pinceladas de nanquim

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O assombro que fala de dentro do fazer.

Como na fala da psicanálise, o de repente do despencar. O abismo, a garganta, o buraco para onde tudo converge. Por que o assombro? Medo de cair?

Não. No buraco da gravidade zero não se cai. Levito no vazio, (não) lugar onde dualidades convivem, linhas já não rasgam, tudo é inteiro. Luz para enxergar o negro, peso que se faz leve ao flutuar no denso das águas.

Imagens que vagam itinerantes, dentro de meu próprio

deslocamento por luas, sóis, folhas, flores. Tudo é passagem, tudo é impermanência de uma matéria a outra. Da pele que toco ao parir flores na água, da pétala que murcha no correr dos dias, do sol que não se cansa de levantar, apesar de tudo. Da noite nanquim de Bashô, do vento que corto ao percorrer as sendas. Assombro, a eloquência do assombro...

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Me entendo feita de abismos. O sol que queima a pele nua, vento e chuva que acariciam e ferem. A noite, a lua, a sombra, o incômodo da sombra.

Vida e morte me habitam, convivo com o todo. Leveza e peso a um só tempo. É difícil ser inteira, não querer evitar a dor, não fugir de si.

Mas sou afortunada. De dentro da verticalidade que me diz Lygia Clark, esse fazer que me ensina sobre o interno. Vejo este aproximar-se chegando de quando ainda não era nascida. Por fotos longínquas, me aproximei. O foco da objetiva do outro não foi suficiente. Havia o não dito, o querer perscrutar, o virar do avesso de Barthes.

Continuei a trajetória.

O contato com álbum de família refotografado.

Do olho da câmera do outro à artesania de fazer minha esta imagem. O contato da foto feita por mim, forjada em luz e sombra.

A lente macro. Mais perto. Ainda insuficiente.

Retirei a caixa-preta que se interpunha entre corpo e substrato. O pigmento tocou a pele, a pegada do primitivo se fez.

O sol tocou a pele deste contato, a eternizou. O céu refletido em azuis.

Toque, pureza, síntese. Ganho a partir da perda. A dor de estar fincada ao chão. A liberdade e a leveza da transcendência. Colocar-se vulnerável a si, deixar que o mundo externo atravesse a espessura da carne. SER.

“[...] a pureza é descoberta dentro da maior conturbação de uma crise. É o ponto luminoso dentro da maior escuridão.” Lygia Clark

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A fotografia sem câmera.

A textura terrosa do referente-rastro em contato direto. Uma camada frágil, numa matriz perdida, não passível de outras cópias. A argila se fragmentando em

partículas, em pó: uma alegoria de nós mesmos.

No entanto, o registro se fez. A busca humana por eternidade, por se inscrever de forma definitiva no tempo. Alguém viu aquelas mãos decalcadas nas cavernas, alguém quis imaginar como teria sido a efemeridade daquela vida. O que imaginamos quando olhamos para estas imagens e fechamos os olhos? O que sabemos de nós através destas imagens-vestígio?

Não é verossimilhante esta imagem que enxergo. Estranhamente, a vejo como se atravessasse a carne, como a um esqueleto. Fantasmagórica, assustadora. O interno que nem sempre é belo sem máscaras. Enxergar por debaixo da pele, enxergar-se no outro numa imagem espelho. Minha origem vista de perto. Tão perto que assusta.

Produzo pretéritos para serem vistos no futuro. Gestos que me conectam ao presente de me sentir viva. Me pergunto do que me lembrarei quando olhar para este sítio arqueológico fotográfico, para todas estas intenções de memória. Serei outra,

andando por outros continentes, outros trechos da travessia. E os desassossegos, serão os mesmos?

Sigo itinerante sob as luas e sóis de Bashô: subindo montanhas, atravessando pântanos e desertos, dormindo sobre folhas ao relento, pés nus sobre a terra, deixando pegadas sob as estrelas que dizem sobre meu ontem, minha essência, meu destino.

Compulsiva, continuo fabricando rastros, fotografando o que mal vejo, mas que sinto intenso. Sigo vulnerável a mim mesma.

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9 ] A P Ê N D I C E | G L O S S á R I O

FOTOGRAFIA

CALÓTIPO Processo de captura fotográfica a base de prata descoberto em 1839 pelo inglês William

Henry Fox-Talbot (1800-1877). Foi um dos primeiros processos fotográficos a explorar a reprodutibilida- de pelo sistema negativo-positivo utilizando matrizes em papel.

CIANOTIPIA Processo de impressão fotográfica por contato descoberto pelo inglês Sir John Herschel em

1842. É um processo a base de sais de ferro sensíveis à radiação ultravioleta, positivando imagens com a característica cor azul. Foi comercialmente utilizado a partir de 1876 para fazer cópias de projetos de engenharia, as famosas blueprints.

DAGUERREÓTIPO Processo de captura fotográfica descoberto pelo francês Louis Jacques Mandé Da-

guerre (1787-1851), anunciado e disponibilizado ao público pelo governo francês em 1839, o que garantiu sua popularização. Utiliza chapas de metal (geralmente cobre) recobertas de uma camada de prata onde será formada a imagem que se mostra positiva ou negativa de acordo com a incidência de luz sobre sua superfície. É um processo não reprodutível.

EADWEARD JAMES MUYBRIDGE (1830-1904) Um dos precursores da invenção do cinema. Desen-

volveu um dos primeiros obturadores para câmeras fotográficas, fato que possibilitou o automatismo no registro fotográfico. Desafiado a fotografar um cavalo de corrida em pleno “voo” durante o galope, foi com seu sistema de obturadores automatizados que conseguiu mostrar que o animal tinha todas as patas suspensas do solo quando se encontravam recolhidas em direção ao ventre do animal, e não abertas em pleno “voo” como era representado em pinturas. A partir destes experimentos, que contavam com uma numerosa sequência fotos de várias etapas do movimento, desenvolveu o zootropo, aparelho giratório passava as imagens em rotação linear criando a ilusão de movimento. Com um invento deriva- do, o zoogiroscopio ou zoopraxiscopio, Muybridge projetou suas imagens em movimento sobre uma tela, dando início ao que seria o cinema.

FOTOGRAMA Fotografia capturada sem o uso de câmeras. O objeto é posicionado sobre uma super-

fície fotossensível e exposto à luz. As áreas com incidência de luz capturam seus contornos pela ação fotoquímica.

GOMA BICROMATADA Processo de impressão fotográfica por contato que faz uso de pigmentos de cor

aliados a químicos fotossensíveis da família dos dicromatos (ou bicromatos), permitindo maior estabi- lidade da imagem nas cópias do que as positivações em processos a base de prata do período e uma grande margem para intervenção do fotógrafo na revelação da imagem.

HELIOGRAFIA Processo descoberto por Niépce em 1827, que faz uso de um composto a base de betume

da judeia, um derivado do petróleo sensível à luz, utilizado por gravadores para cobrir as placas de cobre, possibilitando desenhar sobre elas antes de mergulhá-las em ácido para aprofundamento dos traços na gravura. Era um processo pouco sensível, com exposições de até 8 horas.

JOSEPH NICéPHORE NIéPCE (1765-1833) Inventor francês considerado o autor de uma das primei-

ras imagens fotográficas feitas com uso de câmera de que se tem notícia, realizada em 1927 e chama- das por ele de heliografias. Associou-se a Daguerre, provavelmente em busca de melhores resultados em suas pesquisas.

LOUIS JACqUES MANDé DAGUERRE (1787-1851) Foi um pintor, cenógrafo, físico e inventor francês,

famoso na história da fotografia por ser o criador do daguerreótipo, processo de captura fotográfica que utiliza chapas de metal como suporte em imagens únicas, não-reprodutíveis. Antes da descoberta, conduziu pesquisas junto a Niépce, já falecido à época que o governo francês lhe outorga o mérito pela descoberta. Dividiu a pensão vitalícia recebida pelo feito com o filho de Niépce.

MUNGO PONTON (1801-1880) Foi o descobridor das propriedades fotossensíveis dos dicromatos, em

1839, que possibilitou seu uso na técnica da goma bicromatada. O processo foi aperfeiçoado e em 1858, John Pouncy fez uso da cor aliado à goma arábica e ao dicromato, caracterizando o processo como o conhecemos.

Time-lapse Técnica cinematográfica onde o intervalo entre os frames de uma cena é pré-determinado

e maior do que num filme comum, resultando num número reduzido de frames em relação a um vídeo comum, ocasionando uma reprodução que parece estar “acelerada”. É frequentemente utilizado para registrar acontecimentos de longa duração, imperceptíveis à observação normal, e onde seria inviável a utilização de uma câmera de vídeo capturando continuamente uma cena por dias – como no movimento dos astros ou no crescimento de plantas, por exemplo.

VaN DYKe BROWN Processo de impressão fotográfica por contato a base de sais de prata combinados

a sais de ferro (citrato férrico amoniacal, o mesmo utilizado na cianotipia), sensível à radiação ultravio- leta. Foi descoberto em 1840, em pesquisas de Sir. John Herschel com processos a base de prata. Suas imagens possuem um característico tom amarronzado que originou seu nome, inspirado nos marrons utilizados pelo pintor flamengo Anthony van Dyck (1599-1641).

WILLIAM HENRY FOx-TALBOT (1800-1877) Cientista inglês, descobridor dos calótipos e autor de um dos

primeiros livros com fotografias, The pencil of Nature, produzido artesanalmente a partir de negativos em papel. Chamava suas fotografias de “desenhos fotogênicos.”

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POESIA

HAIBUN Texto em prosa que rodeia um grupo de haikais.

HAIkAIS OU HAIkU Poema japonês de 17 sílabas, em esquemas silábicos de 5-7-5 sílabas que frequen-

temente faz alusão à natureza ou estações do ano.

MATSUO BASHÔ (1644 - Ueno, 1694 - Osaka) Poeta japonês famoso por seus diários poéticos de

viagem, compostos por narrativas em prosa, haibun, rodeando grupos de haikais. Seu pai era um sa- murai que vivia como professor de caligrafia. Aos nove anos torna-se amigo do jovem Todo Yoshimada, herdeiro do poderoso clã Todo. Bashô adota o nome literário de Sobo e seu companheiro o de Sengin. Estudam a caligrafia, a poesia japonesa e o verso clássico chinês. Com a morte de Sengin em 1666, Bashô se aprofunda na arte do haikai, trilhando um caminho poético próprio. Em 1681 inicia a prática do zazen, que influenciaria sua poesia de forma definitiva. Em 1682, depois de um retiro na periferia de Edo, despoja-se da obrigações mundanas e adota o exótico nome Bashô (bananeira). Passa a pe- regrinar errante com um grupo de discípulos, escrevendo conjuntamente seus relatos, dentre eles Visita

ao Santuário de Kashima (1687), Visita a Sarashima (1688) e Trilha Estreita ao Confim (1689). Em

1694 adoece gravemente depois de uma caminhada até Osaka. Morre cercado de amigos e alunos. É enterrado às margens do lago de Biwa, no jardim do templo Yoshinaka, à sombra de uma bananeira.

RENGA Tankas ou wakas encadeados pelo tema da estação.

TANkA OU WAkA Poemas curtos encontrados na poesia japonesa, compostos em esquemas de 5-7-5-7-

7 sílabas, divididos em um terceto de versos imparissilábicos e um dístico parissilábico: 5-7-5/7-7, sendo a primeira estrofe posteriormente constituinte dos conhecidos haikais. Foram muito utilizados na poesia das antologias imperiais dos séculos X e XII e correntes até o século XVI.

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