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Quanto ao conceito de servidão, valemo-nos agora da Convenção

COMENTÁRIO

II. Quanto ao conceito de servidão, valemo-nos agora da Convenção

Suplementar relativa à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, concluída 30 anos volvidos, em

setembro de 1956, e que veio a incorporar72 medidas de abolição da servidão

(ou servidões, como depois veremos), e de práticas análogas à escravatura, refletindo, assim, a orientação da Convenção sobre o trabalho forçado (1930) e da DUDH (em especial, e como é óbvio, o artigo 4.º, de que estamos a tratar). Cumpre não confundir trabalho forçado com servidão: ainda que possa haver alguma convergência de significados, o trabalho forçado ou obrigatório

compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente (artigo 2.º

da Convenção sobre o trabalho forçado), enquanto que por servidão devemos

entender73 o conjunto de práticas de condição servil (podendo eventualmente

consubstanciar trabalho forçado). Para clarificar melhor, eis o elenco de práticas servis dado pelo artigo 1.º da citada Convenção Suplementar:

a) Servidão por dívidas: condição que resulta do facto de um devedor se ter

comprometido a prestar serviços pessoais, ou os de alguém sobre quem exerça autoridade, como garantia de uma dívida, se os serviços prestados e justamente avaliados não se destinarem ao pagamento da dívida, ou se não se delimitar a sua duração ou não se definir a natureza dos referidos serviços.

70 Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 80, nota 8. 71 Aliás, a definição dicionarística aponta para este binómio condição-tráfico, conforme o

Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, I, Lisboa, 2001, p. 1504.

72 Não obstante ter, em 1924, a Comissão Temporária sobre a Escravatura, do Conselho da Sociedade das Nações, elaborado um relatório em que reunia diferentes formas de escravatura, servidão e trabalho forçado.

Há algo na proibição desta prática servil que nos faz recordar o jurista grego Sólon, e a sua lei Seisachtheia, que abolia a escravidão para aque- les que se encontrassem de tal modo endividados que não conseguis- sem quitar as suas dívidas… De todo o modo, o que hemos de relevar é o caráter de garantia creditória que é dado (enfim, inexoravelmente) à liberdade e autodeterminação de um indivíduo, de maneira totalmente invasiva e ablativa dos direitos pessoais mais intrínsecos, rectius direitos humanos.

b) Servidão da gleba: condição da pessoa que é obrigada por lei, pelo cos-

tume ou por contrato a viver e trabalhar numa terra pertencente a ou- trem e a prestar-lhe, mediante remuneração ou gratuitamente, determi- nados serviços, sem liberdade para mudar de condição.

Em nosso entender, estamos perante um instituto jurídico de raízes lon- gevas, concretamente medievais. Grosso modo podemos dizer que o servo da gleba é aquele que se encontra adstrito a uma propriedade agrícola, e a um duplo dever: a nela trabalhar para seu sustento, e a en- tregar parte dos frutos ao proprietário da terra, ou a prestar-lhe deter-

minados serviços74. Apresentando algumas similitudes com esta prática,

foram proibidas, entre nós, ex vi artigo 96.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), os institutos do aforamento (enfiteuse) e da colonia. Porém, apenas a permanência e dependência do fundus agrícola é são semelhanças, já que o aforamento e a colonia constituíam contratos civis de fonte consuetudinária, onde a liberdade das partes, ainda que onera- da, existia.

c) Transmissibilidade de pessoas: práticas em virtude das quais um homem

tem um poder jurídico sobre uma mulher, mediante o qual a dá ou pro- mete em casamento a terceiro, ou a cede a terceiro, ou, morrendo, passa a integrar o conjunto de coisas a transmitir por herança. A ideia que sub-

74 É esta a lição de Paulo Merêa in Estudos de História de Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, pp. 129 e ss.: “(…) servidão da gleba (…) consistia em não poder o servo ser separado, por venda, doação ou qualquer outra forma, da terra a que estava adscrito. Esta circunstância fazia dos servos da gleba uma categoria relativamente beneficiada, visto que, por muito onerosa que fosse a sua condição, tinham ao menos a vantagem de saber que o torrão que cultivavam continuaria assegurando a subsistência da sua família e geração. O colono servil cultivava à sua custa a respectiva gleba, entregando em regra ao senhor uma parte mais ou menos considerável dos frutos. Além disso, pagava-lhe tributos vários e prestava em seu favor serviços pessoais de vária ordem. Cumpre não esquecer que muitos servos acumulavam as tarefas agrícolas com trabalhos industriais e mecânicos.”

jaz é a de uma patrimonialização da mulher, segundo a qual esta pode ser transmitida como se de uma coisa se tratasse.

Para acabar com estas práticas, preceitua o artigo 2.º da Convenção Su- plementar: “os Estados Partes comprometem-se a prescrever, sempre que for necessário, idades mínimas apropriadas para o casamento, a fomen- tar a adoção de um processo que permita a ambos os futuros cônjuges exprimir livremente o seu consentimento no casamento, em presença de uma autoridade civil ou religiosa competente e a fomentar o registo dos casamentos”.

d) Dação de filhos menores para exploração75: prática em virtude da qual

um filho menor de 18 anos é dado pelos pais, ou tutor, mediante re- muneração ou não, a um terceiro com o fim de o explorar pessoal e/ou laboralmente.

Vimos então que, ao lado da escravatura, se inscrevem variadíssimas práticas análogas que partilham do mesmo denominador comum: a negação da dignidade da pessoa humana, e a esfera de direitos que lhe é inerente, a certos indivíduos. Mas retomando o conceito de escravatura, importa ainda esclarecer as suas características, mormente as da escravatura atual, posto que em relação à escravatura dita tradicional, ou histórica, a noção dada pela Convenção de 1926 é clara quanto ao seu maior atributo: a reificação. É neste sentido que o Alto

Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos vem enunciar76 três

características que, hoje em dia, permitem identificar situações de escravatura: restrições à liberdade de circulação; controlo sobre bens pessoais; existência de um consentimento dado em situação de conhecimento de causa e pleno entendimento da natureza das relações entre as partes.

Estas características revelam-se grandemente nas modalidades de

escravatura que atualmente grassam: a escravatura sexual e infantil77. A primeira

tipologia é tratada do ponto de vista da prostituição78 pela Convenção para a

75 Quer na alínea c), quer na alínea d), os termos indicativos são utilizados segundo critério próprio.

76 Publicação de 2002: Abolir l’esclavage et ses formes contemporaines – David Weissbrodt

et la Société anti-esclavagiste internationale, p. 7, consultável em https://www.ohchr.org/ Documents/Publications/slaveryfr.pdf, último acesso em 16 de abril de 2019.

77 O n.º 2 do artigo 7.º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, ao definir o conceito de escravidão, dá particular destaque ao exercício dos poderes de sujeição à escravatura no âmbito do tráfico de mulheres e crianças.

Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem (1950), que, nos termos do seu artigo 1.º, estatui que mesmo consentindo um individuo na sua sujeição à prostituição em benefício do aliciador, este deve, ainda assim, ser punido.. No ordenamento jurídico português, esta prática encerra o tipo legal do crime de lenocínio, previsto e punido pelo Código Penal no artigo 169.º, que assim dispõe: “Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos”. A segunda tipologia é desenvolvida pela Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), cujos artigos 32.º, 34.º, 35.º e 36.º visam que os Estados protejam a criança de

todas as formas de exploração, incluindo a venda de crianças, a prostituição e

pornografia infantil, e a exploração de trabalho infantil. Entre nós, relativamente à exploração sexual de menores, o Código Penal criminaliza tais práticas nos artigos 174.º e seguintes. Para além da escravatura sexual e infantil, outras violações de direitos humanos são enquadradas pela Organização das Nações Unidas como práticas subsumíveis a um conceito amplo de escravatura, tais como: a mutilação genital de crianças do sexo feminino, utilização de crianças em conflitos armados, tráfico de órgãos humanos, e determinadas práticas levadas a cabo em regimes de apartheid.

III. Note-se que a escravidão (entendemos nós: escravatura em sentido

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